Irritados com o que consideram manipulação da mídia, vários interlocutores afirmam ter deixado de ler a publicação x ou y. Trata-se de um luxo vedado a jornalistas. Concordando ou discordando, somos permanentemente obrigados a passar os olhos, que seja, pelo maior número possível de publicações. Até para poder comentar, criticar, elogiar ou simplesmente nos informar.
Ainda assim, é difícil encarar com naturalidade a cobertura dispensada a presos do chamado mensalão. Sim, é dela mesma que eu falo: da reportagem de capa da revista de maior circulação nacional sobre a vida na cadeia do ex-ministro José Dirceu e outros condenados.
Com um tom acusatório, a revista brinda os seus leitores com frases do tipo: “Lá ele [José Dirceu] gasta o tempo em animadas conversas, especialmente com seus companheiros do mensalão [….] só interrompe as sessões de leitura para receber visitas, muitas delas fora do horário regulamentar e sem registro oficial algum, e para fazer suas refeições, especialmente preparadas para ele e os comparsas. “O cardápio? Aqui já teve até picanha e peixada feitas exclusivamente para eles’, conta um servidor”.
A lista de pretensas mordomias não tem fim, bem como o ridículo da reportagem. “Como o lugar fica longe dos olhos dos presos comuns, os mensaleiros podem desfrutar o tratamento especial sem que seus colegas de prisão reclamem. Dentro da cela, já foram recolhidos restos de lanche do McDonald’s”. Não, não escrevi errado. A transcrição está exata. Prova do tratamento diferenciado, especial, transgressor, ilegal dos presos estão “restos de lanche do McDonald’s”!
Donos do dinheiro
A coisa não fica por aí. “No banheiro, em vez da latrina encravada no chão, que os detentos chamam de boi’, há um civilizado vaso sanitário.” A reportagem não esclarece se entre os privilégios está o uso de papel higiênico. Mas Dirceu não é o único alvo. Sobra também para o ex-deputado petista José Genoino. “Numa conversa entreouvida por um servidor, um médico que atendia Genoino revelou ter escutado do próprio petista a admissão de que deixara de tomar alguns remédios para provocar uma arritmia cardíaca e, assim, poder pleitear a prisão domiciliar.”
O sigilo de fontes é salvaguarda crucial para o trabalho dos jornalistas e geralmente é usado como ponto de partida de uma investigação. Deve ser defendido incondicionalmente. Isso não isenta o autor de medir a gravidade do que escreve. O malabarismo verbal costuma ser uma defesa antecipada de quem faz denúncias impactantes sem ter como prová-las. Exemplo: “Uma conversa entreouvida por um servidor” serve de base para acusar um preso de arriscar a própria vida para ter acesso a benefícios aos quais, por sua vez, já teria direito.
Tão espantoso quanto tudo isso é o fato de, em nenhum momento, a reportagem lembrar ao distinto público que José Dirceu está preso ilegalmente. Mérito do julgamento à parte, queira-se ou não, concorde-se ou não, o ex-ministro foi condenado ao regime semiaberto. Pois bem: desde que a sentença foi promulgada, Dirceu vive em regime fechado ao arrepio da lei. “Ah, mas ele come McDonald’s”…
Cinquenta anos depois do golpe de 1º de abril de 1964, paralelos surgem de todos os lados. Um governo com rótulo de popular, lideranças conservadoras insatisfeitas com tanto tempo longe do Planalto, uma nova derrota eleitoral se desenhando no horizonte. Há diferenças importantes, contudo. Algumas: no momento presente, não se fala da estatização de empresas, reforma agrária radical e ampliação de mecanismos de poder da população. Os donos do dinheiro não têm muito do que reclamar. Agora, ficar esperto não atrapalha ninguém. Nunca é bom dar sopa para o azar.
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Ricardo Melo é colunista da Folha de S.Paulo