Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa amadureceu após Escola Base

A imprensa amadureceu após o caso Escola Base, que completa 20 anos nesta semana. Esta é a principal conclusão da ombudsman da Folha, Suzana Singer, em seminário realizado anteontem [quarta, 26/3] para toda a Redação, na sede do jornal, em São Paulo.

O episódio, que consistiu na divulgação de denúncias de abuso sexual de crianças da Escola de Educação Infantil Base, no bairro da Aclimação, na capital paulista, ficou conhecido como um dos mais marcantes erros cometidos pela imprensa.

A partir de acusações precipitadas, feitas por um delegado de polícia e reproduzidas amplamente na imprensa, a escola foi depredada e depois fechou.

O objetivo do seminário, aberto a todos os jornalistas da Redação, foi discutir o tratamento dado ao episódio pelos veículos de comunicação e como o caso mudou as práticas de apuração de reportagens semelhantes.

Na época, Suzana era editora do caderno “Cotidiano” da Folha, que noticiou a investigação policial.

Para Suzana e outros jornalistas presentes, a mídia está mais preocupada em preservar a identidade de crianças em temas sensíveis e em checar declarações e informações de autoridades.

Mas, durante o debate, também houve consenso em apontar que o aperfeiçoamento desses mecanismos de apuração não livrou a imprensa de erros, ainda que ocorram em menor escala.

O caso

A primeira notícia sobre a Escola Base foi veiculada em 29 de março de 1994, em reportagem do “Jornal Nacional”, da Rede Globo.

A história veio à tona após duas mães procurarem uma delegacia queixando-se de que seus filhos, de 4 anos, haviam sido vítimas de abuso.

Elas acusaram os proprietários da escola –Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada– de abuso sexual de crianças.

Também foram citados o perueiro Maurício Alvarenga, e sua mulher, Paula Milhem, professora e sócia da escola, e o casal Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França Nunes, pais de um aluno.

Com exceção do extinto jornal “Diário Popular”, que desconfiou da investigação policial, toda a imprensa noticiou o caso dando a ele grande destaque.

Dias depois, o inquérito foi arquivado por falta de provas e todos os acusados foram inocentados.

Em 2003, os proprietários da Escola Base ajuizaram ações judiciais de indenização contra o governo do Estado e empresas de comunicação, alegando terem sofrido “linchamento moral”.

Em várias decisões, a Justiça entendeu que houve omissão ou negligência da imprensa na averiguação das informações oficiais.

Para Suzana, um dos grandes erros da imprensa foi confiar demais nos dados fornecidos pela polícia.

A ombudsman citou como exemplo o laudo preliminar do IML (Instituto Médico Legal), um telex divulgado pelo delegado Edélcio Lemos.

O documento indicava que uma das crianças tinha lesões anais compatíveis com “atos libidinosos”. Dias depois, o IML produziu o laudo final, que era inconclusivo.

As lesões poderiam ser resultado de abusos, mas também ter sido provocadas por problemas intestinais.

‘Frieza’

Durante a investigação, canais de TV veicularam entrevistas com supostas vítimas, mal cobrindo seus rostos.

Suzana observou que hoje a imprensa dá mais atenção ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), conjunto de leis para proteger menores de idade. Após o caso, cresceu na mídia o respeito ao estatuto, evitando a exposição dos jovens.

Durante o debate, jornalistas disseram que um possível caminho para evitar injustiças contra acusados de crimes é “manter a frieza mesmo diante de fatos chocantes”, como abuso sexual de crianças ou assassinatos.

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“Eles não querem falar mais sobre isso”, diz advogado

O advogado Kalil Rocha Abdalla, que representa o casal Shimada e Maurício Alvarenga, proprietários da Escola Base, afirma que seus clientes continuam traumatizados com a exposição do caso.

“Eles não querem falar mais sobre isso”, diz.

Icushiro Shimada vive em São Paulo e, em 1994, sofreu um infarto do miocárdio.

Sua mulher, Maria Aparecida Shimada, morreu de câncer em 2007. Depois do caso, ela viveu à base de calmantes e de tratamento psicológico, segundo Abdalla.

Maurício Alvarenga vendeu os negócios que tinha em São Paulo, separou-se de Paula Milhem e foi viver no interior paulista. A Folha não localizou Richard Pedicini.

Segundo o advogado, a indenização a ser paga pelo Estado está na fila dos precatórios. “Estamos na fila, aguardando o pagamento”.

Os processos pleiteavam, somados, indenizações de R$ 13,5 milhões (R$ 26 milhões, corrigidos pela inflação). A Justiça deu ganho de causa aos donos em muitos deles, mas outros ainda aguardam a análise de recursos.

O valor total já recebido por eles não foi revelado. “Não me lembro e, mesmo se me lembrasse, não contaria. Isso não é relevante”, diz o advogado.

Os proprietários do colégio pediam, em valores da época, R$ 7,5 milhões ao governo do Estado e R$ 1 milhão a cada uma das empresas que veicularam as acusações, entre elas Folha da Manhã, que edita a Folha, “O Estado de S. Paulo”, Editora Abril, TV Globo, TV Bandeirantes e SBT.

Em outubro de 2006, a Folha firmou acordo e pagou indenização.

Em dezembro último, a 3ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) concluiu que o Estado foi o causador direto dos danos aos donos.

Ao julgar recurso do SBT em ação de indenização, concordou com o voto da ministra Nancy Andrighi, para quem a notícia teve origem em inquérito policial e no teor das entrevistas dadas pelo delegado Edélcio Lemos.

Segundo a ministra, “não é difícil imaginar o sofrimento dos injustamente acusados de pedofilia e abuso sexual de seus alunos”. Mas “é preciso distinguir o efetivo responsável pela informação inverídica desabonadora, daqueles que apenas contribuem para sua disseminação”.

A turma do STJ reduziu o valor da indenização a ser paga pelo SBT, de R$ 300 mil para R$ 100 mil para cada proprietário. Considerou que não seria “razoável” impor à empresa o pagamento de indenização em valor superior ao determinado ao governo de São Paulo (R$ 250 mil para cada).

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Em 1984, caso similar mudou mídia e investigações nos Estados Unidos

A mesma história em outro endereço: em março de 1984, os professores e os donos de um escola chamada McMartin, na Califórnia, foram acusados de abusar sexualmente de alunos que tinham a partir de dois anos de idade.

Assim como na de São Paulo, nessa investigação não havia provas, a não ser relatos de crianças em idade pré-escolar, mas isso não impediu que sete pessoas fossem acusadas pelo abuso de 300 vítimas.

Os jornais e as TVs norte-americanas deram amplo espaço às acusações sem o ceticismo necessário, afirma Richard Beck, um jornalista que está escrevendo um livro sobre a história.

O caso começou com uma mãe que chamou a polícia porque seu filho relatava ter pesadelos e dificuldade para se sentar.

A mulher acusava um professor. Ele foi logo inocentado, mas os investigadores resolveram escrever cartas aos pais, pedindo para que eles sondassem seus filhos e ficassem atentos a possíveis relatos sobre sexo oral, sexo anal e carícias excessivas.

Os pais começaram a conversar entre eles e surgiram os relatos. A polícia decidiu contratar terapeutas para entrevistar as crianças.

Mais de 400 alunos foram ouvidos e o resultado dessas entrevistas era a principal prova contra os acusados. Beck leu as transcrições. Ele diz que as terapeutas induziam as crianças até que essas confirmassem a história.

“A controvérsia que emergiu depois do caso nos deu protocolos sobre como deve se conduzir uma entrevista investigativa com crianças pequenas. Hoje, os investigadores são obrigados a obedecer diretrizes para evitar perguntas que induzam a resposta.”

Dos sete acusados inicialmente, cinco foram inocentados após oito meses. Os outros dois foram julgados pela Justiça da Califórnia e inocentados em 1990.

Beck conta que os donos da escola e os funcionários processaram o Estado com sucesso, mas o juiz determinou que a compensação por perdas em US$ 1.

Ele aponta que esse caso foi um dos responsáveis por uma mudança na mídia.

“Jornais, principalmente os locais, eram pouco céticos em relação a acusações. As coisas melhoraram no fim dos anos 1980 e começo dos 1990, à medida que os jornalistas ficaram mais atentos ao olhar como os casos surgiam.”

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Ações por danos morais ainda não foram concluídas

Os processos movidos pelos proprietários da Escola de Educação Infantil Base pleiteavam, somados, indenizações por danos morais de cerca de R$ 13,5 milhões (R$ 26 milhões em valores corrigidos pela inflação).

A Justiça deu ganho de causa aos donos em muitos deles, mas outros ainda não foram concluídos e ainda dependem da análise de recursos, 20 anos depois.

O advogado que os representa, Kalil Rocha Abdalla, diz não saber o valor efetivamente pago. “Não me lembro e, mesmo se me lembrasse, não contaria. Isso não é relevante”, disse ele.

Nas ações, os donos da Escola Base pediam, em valores da época, R$ 7,5 milhões ao governo do Estado, ainda não pagos, e R$ 1 milhão a cada uma das empresas que veicularam as acusações, entre elas Folha da Manhã, que edita a Folha, “O Estado de S. Paulo”, Editora Abril, TV Globo, TV Bandeirantes e SBT.

Em outubro de 2006, a Folha da Manhã firmou acordo, pagando indenização a três proprietários.

Em dezembro último, a 3ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) concluiu que o Estado foi o causador direto dos danos aos donos.

Ao julgar recurso do SBT em ação de indenização, concordou com o voto da ministra Nancy Andrighi, para quem a notícia teve origem em inquérito policial e do teor das entrevistas dadas pelo delegado Edélcio Lemos.

Segundo a ministra, “não é difícil imaginar o sofrimento dos [autores da ação] injustamente acusados de pedofilia e abuso sexual de seus alunos”. Mas “é preciso distinguir o efetivo responsável pela informação inverídica desabonadora, daqueles que apenas contribuem para sua disseminação”.

Para Andrighi, “não houve propriamente a publicação de notícia mentirosa”, mas “o abuso do direito de informar, transformando a ocorrência num espetáculo midiático, por meio de manchetes sensacionalistas e extrapolação dos fatos”.

Em decisão excepcional, a Turma do STJ reduziu o valor da indenização a ser paga pelo SBT. Considerou que não seria “razoável” impor à empresa o pagamento de indenização “em valor superior àquele ao qual foi condenado o causador direto do dano”, o governo.

O valor a ser pago pelo Estado foi fixado pelo STJ em R$ 250 mil por autor. A indenização a ser paga pelo SBT foi reduzida de R$ 300 mil para R$ 100 mil por autor. Os donos da escola ainda recorrem.