Cinquenta anos atrás, em 7 de abril de 1964, os jornais estampavam duas tragédias.
A primeira, o noticiário sobre o golpe de Estado que acabara de depor o presidente constitucional João Goulart. A segunda, a bênção do jornalismo à ditadura que desabrochava.
Naquele mesmo dia, eu nasci no Rio (a fórceps, como a ditadura). Tremendo pé-frio, vá lá. Meio século mais tarde, quando me torno cinquentão, o Brasil é muito melhor do que nas sombrias jornadas da primeira semana de abril de 1964.
Já o jornalismo, não sei. O que sei é que o jornalismo e os jornalistas jamais viveram – vivemos – tamanha crise como hoje. É a espécie mais devastadora de crise, a crise de identidade, existencial.
A crise nos corrói porque põe em xeque nossa razão de viver. Isso acontece porque se costuma ignorar que o jornalismo constitui serviço público – mesmo se exercido por companhias privadas –, cuja essência é colher, processar e difundir informações.
Eis a nossa função social: informar.
Enquanto a sociedade a reconhecer como necessária, sobreviveremos.
Relevância e encantamento
Outra impressão decorrente de astigmatismo e miopia é supor que o inédito volume de informações em circulação seria terra a cobrir nossa sepultura.
Ocorre o contrário: nunca o jornalismo foi tão indispensável, para organizar, hierarquizar, contextualizar e dar sentido à caótica overdose informativa. Diante do futuro, temos mais pinta de bebê do que de defunto.
Em meio à enxurrada de informações, desgraçadamente a propaganda se confunde com jornalismo e o contamina e descaracteriza.
No mundo inteiro, a opinião sufoca a informação.
O futuro do jornalismo, que já não detém o monopólio do debate público, concentra-se na reportagem, seu gênero mais valioso. Desde que a reportagem, em tempos de vale-tudo, conserve os valores consagrados do jornalismo de qualidade, a começar pelos escrúpulos.
Preservar os padrões de decência, mas em novo cenário. Como agonizam a estrutura jornalística e o modelo de negócios estabelecidos no século 20, a vida do jornalista também muda, como descobrimos colegas de todas as gerações.
Antes, a perspectiva mais comum era nos juntarmos a corporações nas quais exerceríamos nosso ofício. Cada vez mais, para o bem e para o mal, o jornalista é sozinho um “conglomerado” de ideias e empreitadas, produzindo jornalismo em diversos gêneros e plataformas, para numerosos patrões ou sendo seu próprio patrão.
Uma aposta para o futuro: a despeito da multiplicação de operações jornalísticas profissionais num sem-número de mídias, a palavra vicejará como a pepita mais cobiçada do garimpo.
No blog, na tevê, na rádio, no livro digital e de papel, nos dispositivos móveis, nos jornais e revistas impressos e na internet, quem dominar os mistérios da palavra e do idioma terá seu lugar.
Pois o jornalismo, serviço público também destinado a fiscalizar o poder, é instrumento para escavar e narrar a história.
Podem anotar: enquanto as histórias contadas pelos jornalistas tiverem relevância pública e encantarem o público, nosso obituário continuará na gaveta.
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Mário Magalhães é blogueiro do UOL, ex-ombudsman da Folha de S. Paulo e autor da biografia Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras)