O 3º Seminário Brasil-Argentina de Pesquisa e Investigação em Jornalismo, realizado este ano na Universidade Nacional de Rio Negro, em Viedma, Argentina, em 23 e 24 de abril, teve como tema central “O papel do jornalismo na sociedade do conhecimento”. Depois de duas edições em Florianópolis, a de 2014 sinalizou algumas temáticas e encruzilhadas técnicas e morais para o profissional da informação. Uma das mesas, das quais participei, abordava o tema “Quando as audiências fazem jornalismo”.
O tema, desafiador e complexo, remete a várias discussões e dilemas. O primeiro deles é que o próprio tema pode concluir, em seu título, com um ponto de exclamação mas também pode pedir um ponto de interrogação. Estariam as audiências fazendo efetivamente jornalismo ou estariam elas produzindo informação – de qualquer tipo – a ser tratada pela especificidade jornalística?
Talvez a própria pergunta conduza a uma desconfiança. Ou, reformulando-a… médicos, motoristas de ônibus, engenheiros, garis, arquitetos, ascensoristas e outras tantas profissões e ocupações fazem jornalismo como audiência ou contribuem para informações rápidas que podem ou não pautar a imprensa? Fazem isso habitualmente, como determinadas rotinas cotidianas, ou episodicamente? O tempo de vida utilizado diariamente é significativo ou é esporádico, alguns minutos? As audiências abordam acontecimentos com o reconhecimento da relevância do entorno, com os métodos de apuração rigorosos e com as narrativas que seguem padrões de clareza e eficácia?
Mesmo os desempregados, com grande tempo disponível, teriam preocupação mais com a produção jornalística ou ela seria secundária diante da necessidade de busca pela sobrevivência? Ou, então, a audiência que produziria jornalismo seria formada por diletantes abonados, cuja tarefa central da vida seria informar, pautar a imprensa, ter rigor nos processos de busca, investigação e narração compatíveis com o que esperam determinados públicos? Estariam as audiências presentes nos tribunais, no Parlamento, no Executivo, nos setores onde se produz ciência, lazer e cultura da mesma forma que um profissional que lá habita sistematicamente a partir da lógica de produção jornalística e com o testemunho simultaneamente desconfiado e verificador?
Regras básicas
O segundo aspecto é quanto à circulação de mensagens. É notório que a informação rápida, produzida por quaisquer cidadãos, pode ser extremamente útil e até agendar a mídia. É notório que há muitas mensagens e informações muito próximas do jornalismo e que despertam tanto curiosidade quanto profundo interesse social, dado que não se pode colocar um jornalista por metro quadrado no planeta e que fatos inesperados podem e devem ser conhecidos por meio do registro imediato de qualquer cidadão.
No entanto, ainda estamos longe de um sistema, desde a perspectiva de uma hegemonia social, que torne equivalente as informações das redes sociais com aquelas compartilhadas imediatamente para 80 ou 100 milhões de pessoas, tal como grandes redes televisivas que mapeiam presencial e simultaneamente todo um território nacional. Assim, ainda que a audiência contribua para o jornalismo, necessita dele como rede que comparta fatos, temas e agende um debate coletivo sobre o que se passa. E isso vale para a circulação ou para a sonegação de informações que deveriam ser mais acessíveis e debatidas.
Talvez isso explique um pouco porque o “mensalão” do PT teve agendamento público permanente e chegou ao Supremo Tribunal Federal e o “mensalão” do PSDB dificilmente chegará ao STF – se chegar – com a mesma intensidade e agendamento do anterior. O reiterado caminho jornalístico para um deles se dilui, como rede, agenda e interesse dependendo dos atores envolvidos, e sobretudo no âmbito daqueles que comentam e decidem sobre o futuro do país do ponto de vista constitucional.
O terceiro aspecto é quanto à durabilidade e à articulação do presente. Há enorme potencialidade nas redes sociais e, de fato, parece haver mudanças no cenário da confecção do jornalismo. Um dos principais é a capacidade crescente de fiscalizar a própria mídia, os jornalistas e seus erros e oferecer informações reparadoras, que podem ou não circular via grandes redes. Mas é importante este cenário pela força que potencializa a exposição pública do próprio jornalismo e da mídia como um todo, não para liquidá-la, mas para que – se a partir de dentro não é possível – de fora para dentro tentar perceber mais a dinâmica e os interesses do próprio jornalismo e dos sistemas empresariais, combinados com outros ramos de produção, por onde emerge o grande volume informativo compartilhado e comentado diariamente hoje.
Um quarto aspecto é o poder das fontes, que produzem informações para seus públicos preferenciais e segmentados diretamente e, simultaneamente, tentam ocupar o espaço tradicional da apuração jornalística, entregando produtos acabados com as regras básicas do jornalismo, em termos de técnica e estética, e incluindo certo espaço de divergência que caracteriza o contraditório, base para um certo padrão ético que confere credibilidade.
Problemas e esperanças
Ao mesmo tempo – embora isto signifique a morte da opinião livre – o pagamento a veículos e a jornalistas/colunistas, por meio de agências de comunicação, para que alguns assuntos e personagens entrem na agenda positiva e na durabilidade de cobertura mais que outros, atesta que a apuração com certo grau de isenção e de destemor caracteriza um jornalismo que ainda precisa, e muito, ser feita… e por muito tempo. É, no caso do “jornalismo indireto”, a audiência pagando para se ver… e valorizar perante os outros, de acordo com os dividendos políticos, econômicos e ideológicos. Claro que se deve elogiar , em muitas situações, o bom jornalismo prestado por assessorias, meios públicos e alternativos, que colocam temas como aborto, maioridade penal, desemprego, xenofobia, adoção e outros com muito mais propriedade jornalística do que em vários veículos televisivos, revistas e jornais brasileiros, onde às vezes encontramos assessoria de anunciantes , de acionistas e de determinadas fontes no lugar do efetivo jornalismo…
Deve-se observar, ainda, que no cenário da era de conglomerados midiáticos, em que a informação jornalística é apenas um dos muitos produtos vendidos diariamente – dentro do amplo espectro de negócios da empresa – o sistema geral de credibilidade corre riscos. Se é necessário um público heterogêneo para consumir ideias diversificadas, há um agendamento e tematização sistemáticos que permitem considerar, ainda, um campo hegemônico de ideias que , obviamente, prevalece no direcionamento a partir de ensaios baseados em fatos mas nos quais, lamentavelmente, a opinião de analistas, comentaristas, “especialistas” é apenas um apêndice de teses previamente estabelecidas. Ou seja, a controvérsia mais genuína acaba abalada pela força dos pressupostos que as embalam, as hierarquizam, as definem e encaminham como agenda a ser debatida por muitos. É quando, por exemplo, depois de um árduo trabalho dos repórteres que apuram, chegam os comentaristas que se tornam quase “assassinos” dos fatos.
No entanto, há uma contradição e uma esperança, ao menos. Se a eficácia das mensagens, ideias e debates não corresponde ao mundo vivido, certamente há tendência de fuga de audiências para outros campos em que tais audiências conseguem se enxergar melhor. Neste aspecto, até que ponto as audiências, quando não correspondidas ao universo do mundo vivido, terão interesse na empresa jornalística tradicional e em seus produtos, incluindo a informação necessária às suas vidas? Isso supõe que a tão comentada crise do jornalismo pode estar, efetivamente, diluída na crise do modelo tradicional de negócios, e que há uma vertente jornalística que ainda não se esgotou.
Talvez, e aí sim, as audiências estejam falando mais consigo mesmas, com suas especificidades. O amplo espectro do jornalismo segmentado, em muitos casos confundido com assessorias de imprensa simples, está conseguindo conversar com características jornalísticas com o público interessado sobre algo que signifique muito para suas vidas. E com o padrão antes restrito ao modelo jornalístico tradicional, tanto em sua técnica e estética, quando em sua ética e nos diferentes suportes tecnológicos por onde circula o mundo vivido. E é quando a força da audiência pode ajudar a esclarecer e a pautar, mas talvez não substituir integralmente, o jornalismo que apura e narra de forma mais rigorosa e credível.
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Francisco José Castilhos Karam é professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do objETHOS