“Os jornalistas continuam, estou certo, tão essenciais ao debate público quanto as abelhas para a natureza. Podemos fazer nosso trabalho ainda melhor que no passado – integrando e acolhendo as novas tecnologias, em vez de resistir a elas e combatê-las.”
O autor da frase sabe do que está falando. Alan Rusbridger é o diretor de redação do jornal inglês The Guardian, de centro-esquerda, que recebeu este ano o prêmio Pulitzer por sua cobertura das revelações de Edward Snowden sobre as escutas ilegais praticadas pela NSA americana.
A confiança que Rusbridger deposita no futuro dos jornais e dos jornalistas é bem-vinda num contexto de crise de dois grandes jornais franceses de esquerda, Le Monde e Libération.
Se a imprensa europeia atravessa uma crise sem precedentes, o britânico pensa que já esteve pior há dois anos e que os proprietários devem investir não somente no jornalismo, mas também em tecnologia, pois a imprensa vive um momento marcante – a transição entre o impresso e o digital. E, segundo ele, os jornalistas são os profissionais que vão investigar “de maneira aprofundada para dar ao leitor análises sofisticadas que o Twitter e a comunicação imediata não podem dar”.
À crise do diário Libération – que já se prolonga por alguns meses depois que os jornalistas se insurgiram contra o projeto dos acionistas de transformação da sede histórica em uma espécie de centro cultural, com um café e espaço de debates – veio juntar-se uma crise de governabilidade no Le Monde, justamente no ano em que o jornal comemora 70 anos.
Na terça-feira, 6 de maio, sete dos onze editores do jornal pediram demissão por discordar dos métodos da diretora de redação Natalie Nougayrède, no posto há apenas um ano. A essas, seguiram poucos dias depois as demissões de Michel Guerrin e Vincent Giret, diretores-adjuntos de Nougayrède.
As Sociedades de Redatores do Monde (SRM) e do Monde Intéractif (SRMIA), que representam as redações do jornal impresso e do jornal online, divulgaram uma nota em que diziam viver uma perda global de confiança na direção do jornal. Pediam que os profissionais que fazem o jornal sejam ouvidos.
Em plena preparação de novo projeto gráfico para marcar os setenta anos, previsto para junho e adiado para setembro, o Le Monde vê um furacão passar na redação, que critica sua diretora por um estilo de gestão “solitário” e pouco democrático.
Testemunho da diva
A redação do Le Monde está em plena reestruturação das versões impressa e online. No projeto pilotado por Natalie Nougayrède, está prevista a transferência de 50 pessoas da redação do impresso para a redação online. Os jornalistas da web não estão de acordo com a chegada de colegas muitas vezes hostis às novas tecnologias. Entre os jornalistas do impresso, muitos veem com desconfiança a supressão prevista de algumas editorias, como meio ambiente e habitação. Entendem como uma virada à direita do grande cotidiano de referência da França.
Segundo dados da agência France Presse, Le Monde fechou 2013 com perdas de 2 milhões de euros e neste novo ano as vendas continuam a cair, ainda que menos que outros jornais impressos.
Na terça-feira, 13 de maio, os jornalistas de Libération divulgam um manifesto afirmando como querem construir o futuro do jornal. Desde fevereiro, Libé vive uma crise que se arrasta desde que foi divulgado o plano de um dos acionistas, Bruno Ledoux (que detém 26% do capital do jornal), de fazer o tal café cultural ou uma rede social, explorando a marca Libération (ver, neste Observatório, “Que futuro espera o ‘Libération’?“ e “‘Somos um jornal’“).
Desde então, a redação passou a publicar de uma a duas páginas diárias com a rubrica “Somos um jornal”, para lembrar que se opõe radicalmente ao projeto de “parque de atrações” com a marca Libération, como prevê o homem de negócios Ledoux, de quem os jornalistas discordam de A à Z.
Le Monde revelou, no fim da semana passada, uma possível associação de Ledoux com o milionário Patrick Drahi, proprietário de diversas redes de TV na França e em Israel. O aporte de capital pelo novo investidor não foi ainda confirmado.
Em Paris, desde fevereiro personalidades do mundo da cultura escrevem textos de apoio à luta dos jornalistas, publicados diariamente no Libération. Em entrevista ao Le Monde sobre seu novo filme “Dans la cour”, Catherine Deneuve foi questionada sobre a crise de Libé, o jornal mais cinéfilo da França, uma bússola para o povo mais cinéfilo do planeta. Para ela, é impensável o desaparecimento do jornal.
“Ele me exaspera às vezes, mas não posso viver sem ele. Como fazer para ajudá-los? Amo a imprensa. Estar informada sobre a complexidade das coisas é o que me permite de relativizar.”
E não será lendo tuítes que Catherine Deneuve ou quem quer que seja vai estar informado sobre a complexidade das coisas…
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EM TEMPO
Editora do Le Monde se demite após disputa de poder com equipe
Reuters # reproduzido do Globo.com, 14/5/2014
Natalie Nougayrede, primeira mulher a ocupar o cargo de editora-chefe do prestigioso jornal francês Le Monde, demitiu-se nesta quarta-feira [14/5] em meio à disputa de poder com sua equipe editorial.
Na semana passada, jornalistas da publicação protestaram contra os planos de Natalie para renovar o jornal. Na ocasião, sete editores seniores deixaram seus cargos em repúdio aos planos de um novo formato da versão impressa do jornal, uma nova edição para tablet e mudanças de pessoal.
“Os ataques pessoais e diretos contra a gestão e contra mim me impedem de executar o plano de mudanças que eu apresentei aos acionistas e que exige amplo respaldo da equipe editorial”, escreveu Nougayrede aos jornalistas em e-mail.
Natalie ficou cerca de um ano no cargo, para o qual foi eleita com apoio recorde de 80% dos funcionários. Ele substituiu Erik Izraelewicz, que morreu prematuramente vítima de ataque cardíaco na redação do jornal.
Uma correspondente estrangeira que se destacou cobrindo assuntos relacionados à Europa Oriental e à Rússia, Natalie Nougayrede ganhou prêmios por sua cobertura do conflito na Chechênia. Mas a jornalista tinha pouca experiência com a complexa estrutura de gerenciamento do “Le Monde”.
O jornal costumava ser inteiramente gerido pelo seu time editorial, mas os empresários Pierre Bergé, Xavier Niel e Matthieu Pigasse – um trio conhecido pela sigla BNP – assumiram controle acionário do grupo em 2010 para recapitalizá-lo. Nos últimos anos, o jornal esteve mergulhado em dívidas, sofrendo com a crise econômica no país e com a concorrência de sites gratuitos.
O Le Monde, vespertino cuja edição impressa é publicada no meio do dia, foi lançado no fim da ocupação nazista em 1944 e assumiu o papel de jornal de registro da França, ao lado do conservador Le Figaro.
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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris