Desenrosca a tampa, abre a garrafa, dá um microgole, põe a garrafa de volta, abre de novo, bebe mais um pouco, troca alguns papéis de lugar, senta-se na ponta da cadeira inclinado para a frente, mexe as pernas, soca a mesa quando quer enfatizar um ponto.
Não há dúvida: estamos diante de um homem elétrico. Fala com autoridade, é absurdamente articulado. Incluiu citações eruditas em meio à conversa mais informal –ao contar uma história que envolve o hospital Saint Vincent’s, de Nova York, faz questão de mencionar que ali morreu Dylan Thomas, e cita as últimas palavras do poeta: “Quinze uísques; acho que foi meu recorde”.
Está de calça cáqui e camisa azul-clara “buttoned-down”. Não usa terno nem gravata. Os cabelos brancos ondulados estão mais raros e curtos do que quando ele era famoso; ganharam um tom amarelo, penteados para a frente ao estilo do Frank Sinatra dos últimos dias.
As imagens que descrevo são de um vídeo perdido nas franjas do YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=c1XfvCTPLKo), na chamada cauda longa da web –aquela dos nichos mais obscuros. Pouco mais de 370 visualizações, quase nada.
O homem é jornalista, um dos grandes. Tem 71 anos, aparenta menos. Seu nome é Howell Raines. Por 21 meses, exerceu o que talvez seja o cargo mais prestigioso do jornalismo mundial: editor-executivo do “New York Times”.
Pouca gente se lembra de Raines. Eu me lembro e sou fã. O que, imagino, equivale a ser fã de Serge Gainsbourg, Marlon Brando ou F. Scott Fitzgerald: admira-se o talento, e dá-se graças aos céus por não ter convivido com a pessoa.
Chamado de “o último dos editores de raio e trovão”, Raines passou como uma divisão Panzer pela Redação do “New York Times”. Durou na liderança de setembro de 2001 a junho de 2003. Era o início da era da internet. Com surpresa, o jornal constatava que seu site atraía um grande público internacional. Precisava rejuvenescer e olhar para além dos limites nova-iorquinos.
Postura e firmeza
Raines detectou no “NYT” uma cultura de acomodação e pouca meritocracia. Começou a promover jovens profissionais, estimulou a competição em um ambiente que ele considerava letárgico. Mas entre os jornalistas iniciantes que começaram a brilhar havia uma figura sombria chamada Jayson Blair.
Um dos favoritos da nova liderança, conseguia “informações” que mais ninguém obtinha –claro, era tudo mentira. Plagiava, inventava reportagens. Quando Blair foi finalmente apanhado, Raines criou uma comissão independente para investigar. E, numa decisão que viria a custar-lhe o cargo, mandou publicar no jornal tudo o que esse grupo apurasse.
Aos olhos da opinião pública, da própria Redação e, em última análise, do dono do jornal, as falsificações de Blair não pareciam resultado unicamente de uma mente doentia. O clima de competição feroz instaurado por Howell Raines teria, segundo essa visão dominante, criado um caldo de cultura para que tipos como Blair prosperassem.
Como leitor (eu vivia nos EUA na época e assinava a edição impressa do “New York Times”), considero marcante o impacto da gestão de Raines. A primeira página ganhou vigor, a cobertura de cultura ficou muito mais ágil e moderna, e grandes colunistas que andavam escondidos, como Frank Rich, retomaram a merecida projeção.
Mesmo com tantos feitos (incluindo comandar a Redação na cobertura do 11 de Setembro, seis dias depois de tomar posse), Howell Raines se tornou um nome de rodapé na história do jornalismo. Só voltou à lembrança porque, semana passada, foi demitido mais um editor-executivo do “NYT” –Jill Abramson, a primeira mulher a ocupar o posto, no qual durou 32 meses.
Quando o nome de Howell Raines vem à tona, é sempre associado ao caso Jayson Blair.
Como nesse vídeo que vi no YouTube, gravado em 2013, em que ele ainda se expressa com a postura e a firmeza de quem tem uma equipe de jornalistas sob sua chefia. Só que quem está diante dele são apenas jovens estudantes da Universidade da Flórida. É uma palestra. O velho comandante lidera uma Redação que não existe mais.
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Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo