“Uma coisa é fazer fofoca ou reclamar do seu chefe, outra bem diferente é assistir à sua cabeça ser decepada em plena luz do dia”. Assim descreveu o jornalista David Carr a surpreendente demissão da editora-executiva do “New York Times”, Jill Abramson, no último dia 14 de maio.
A notícia, anunciada pelo próprio publisher do jornal, Arthur Sulzberger Jr., correu o mundo da mídia de modo instantâneo, e ganhou dramaticidade quando Abramson decidiu responder, acusando de sexista –ela teria alegado ganhar menos do que um de seus subordinados por ser mulher.
No cargo por pouco mais de dois anos, ela foi a primeira mulher a editar o jornal em 160 anos de história. Em seu lugar, o publisher alçou o jornalista Dean Baquet, então vice de Abramson e agora primeiro negro a comandar a redação do “New York Times”.
“Como foi que de repente nosso local de trabalho se transformou num episódio sangrento de Game of Thrones’?”, perguntou Carr em um artigo publicado pelo próprio “New York Times”, colocando lenha na fogueira ao enumerar o que considerava erros do próprio Sulzberger.
O caso ganhou repercussão imediata e se transformou numa novela midiática, acelerado pelas redes sociais e levantando um debate sobre o machismo nas redações, o poder dos donos dos grandes meios e a própria reinvenção da mídia tradicional em tempos de internet –Abramson tocava uma reformulação da estratégia digital do jornal.
“A repercussão diz muito sobre o lugar que o Times’ tem no mundo da informação, mas também sobre o imenso peso que as intrigas de poder têm para as pessoas que consomem notícias’”, disse o jornalista, em entrevista à Folha, por telefone.
A publicação levou o tema a suas páginas, e Carr afirma que não teve problemas para escrever o que pensava sobre a crise no próprio jornal.
Porta-voz
Carr, 57, é um dos convidados da próxima Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece no litoral fluminense entre os dias 30 de julho e 3 de agosto. No evento, participará da mesa “Narradores do Poder”, no dia 2/8, ao lado da jornalista argentina Graciela Mochkofsky.
Além de colunista de mídia e repórter de cultura do “NYT”, ele é uma espécie de porta-voz informal do jornal.
Foi um dos principais personagens retratados no documentário “Page One – Inside the New York Times” (2011), de Andrew Rossi.
Ele diz não ser pessimista em relação ao jornalismo e aos problemas que enfrenta devido à queda de circulação dos diários impressos e a competição com a internet.
“Pelo contrário, é uma época estimulante para estar no jornalismo. As pessoas vivem me perguntando se há futuro para o ofício, e eu respondo que, se alguém me dissesse há alguns anos que um blogueiro do [jornal britânico] Guardian daria o furo do século, não acreditaria”, diz Carr.
“Um fenômeno como o Wikileaks surgiu e precisou de jornais tradicionais para dar forma ao seu conteúdo. E, ainda, o dono da Amazon acaba de comprar o Washington Post’. Não me interesso tanto pelo futuro mais distante, mas sim pelo que vai acontecer agora, e o panorama é estimulante”, defende.
Ativo em blog e no Twitter, por outro lado, Carr admite que há um risco na perda de leitores dos jornais impressos, embora reafirme a importância dos grandes jornais.
“Há métodos e modos de tratar certos assuntos, de cobrir os bastidores da política, que não vão ser suplantados por posts no Facebook ou tuítes. Considero ainda importante que existam grandes organizações por trás do ofício.”
Para Carr, porém, discutir se o digital matará o impresso é uma abordagem equivocada. “Esses dois mundos já caminham juntos. E já há uma maneira de imaginar novas estratégias, de mudar a relação com o consumidor de notícias e com a produção de conteúdos, integrando novos atores e organizações.”
Acrescenta, ainda, que considera as novas gerações muito bem informadas. “Eu convivo com gente jovem, tenho filhas, dou aulas. Eles sabem muito. Pode-se questionar a qualidade, mas não há como negar que a informação tem lugar importante na nossa sociedade”, afirma.
Também fã de cinema e de minisséries, Carr cobriu a cerimônia do Oscar por vários anos seguidos, mas agora prefere acompanhar os bastidores da briga entre o canal pago HBO e o serviço sob demanda Netflix pelos novos formatos de se fazer televisão.
Após a visita ao Brasil, Carr irá dar aulas de jornalismo na Universidade de Boston, mas seguirá escrevendo sua coluna semanal sobre mídia e participando do blog sobre o assunto, ambos no “NYT”.
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Vício em cocaína foi tema de livro de Carr
David Carr teve seu livro “A Noite da Arma” (2008) lançado no Brasil pela editora Record em 2012. É uma autobiografia, porém investigada e escrita de modo jornalístico.
Para reconstruir o próprio passado de viciado em cocaína, Carr ouviu mais de 60 pessoas e buscou evidências de sua participação nos próprios atos, dos quais não tinha memória clara por causa do vício. Sua história envolve venda e consumo ilegal de drogas, a luta pela guarda de suas duas filhas, o modo como sobreviveu a um câncer, até a chegada ao “NYT”.
“Se você olhar para a minha vida dirá que mereço uma morte solitária, doente, com problemas financeiros. Eu não mereço a vida que tenho hoje. Mas até mesmo por isso eu queria saber como foi que aquele cara’ se transformou nesse cara’”, explica.
No começo, conta que estava “muito envergonhado” ao revelar seu passado, e que sabia que não tinha sido bom para algumas pessoas, que relutaram em colaborar.
“Mas foi importante sentar-me diante delas para entrevistá-las e questionar meus atos e minhas memórias. Sabia que, se contasse a verdade, nada poderia dar errado”, diz.
Acrescenta que quis ir adiante principalmente por suas filhas.
Hoje “limpo”, novamente casado e vivendo em Nova Jersey, Carr tem planos de transformar a obra num filme. (S.C.)
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Sylvia Colombo, da Folha de S.Paulo