Não, nada daquela correria atrás da notícia, da urgência em postar informações de última hora, do sufoco no fechamento. Nada de nervos à flor da pele nem de esgotamento ao fim do dia. Jornalismo hoje é algo suave, sereno, que se faz num ambiente silencioso, fechado, climatizado, com a atenção voltada para as telas de computadores, tablets, smartphones.
O vídeo que apresentou a mais recente mudança no site do Globo (ver aqui), no sábado (31/5), segue a linha de seu antecessor (aqui) que, há dois meses, anunciava o “novo ritmo da redação” e a “nova forma de produzir e publicar notícias”.
Não, quem é jornalista sabe que não é assim: os nervos continuam à flor da pele e, ao fim do dia, o esgotamento é inevitável. O que os vídeos mais revelam é exatamente o que escondem. Mostram o processo de “edição contínua”, a antecipação dos horários de reunião dos editores. Mas o que há para editar? Onde estão os repórteres?
Repórteres do Google
Essa pergunta foi feita por jornalistas veteranos – e nem tanto – à época do primeiro anúncio das mudanças. Retorna agora. E a resposta não é muito animadora.
De fato, o uso da tecnologia digital, que em tese permite ampliar enormemente a mobilidade do repórter, vem prendendo-o cada vez mais na Redação, levando-o a apurar as informações através da internet. Jornalistas que começaram a trabalhar no tempo em que lugar de repórter era na rua notam a diferença: relatam que muitos, hoje, nunca estiveram pessoalmente com suas fontes.
Mas isso é o de menos. Pior é o que a pesquisadora Lívia Vieira ouviu de um de seus entrevistados para sua dissertação de mestrado, o diretor de conteúdo do portal R7, Luiz Pimentel, que esclareceu por que chamava muitos repórteres de redatores – num sentido bem distinto do que essa palavra significava antes da internetização dos jornais:
“Tem muito pouco repórter que faz reportagem. O redator é uma prática de fazer reportagem pelo Google, de fazer a apuração pelo Google. Por essa urgência muito maior, tem muito menos espaço para o olho a olho, pra pessoa chegar e fazer uma reportagem, ter um tempo de apuração, conseguir concatenar as ideias. Hoje os jornalistas em internet são muito mais redatores do que repórteres. Por isso que eu falo redatores, porque são 80% redatores e 20% repórteres, ou mais.”
Como a coisa funciona no Globo, só uma pesquisa poderá dizer. Mas os vídeos desse making of da nova rotina da Redação sugerem que as mudanças em curso não devam ser exatamente motivo de comemoração.
Algumas surpresas
As questões mais relevantes sobre o novo site do Globo – e também do Estado de S.Paulo – foram bem resumidas neste Observatório por Luciano Martins Costa (ver “Limites da imprensa digitalizada“), que conclui com uma precisa observação sobre os dilemas e limites do jornalismo online:“Numa sociedade hipermediada, o que está em crise é justamente o papel da mediação, não a mediação no papel”.
Isto, naturalmente, é assunto para discussões mais profundas. Aqui me permito ficar em considerações pontuais a respeito da mais recente mudança do Globo: junto com a alteração da home page, o jornal convida a uma leitura mais atenta das matérias, expandindo as imagens e valorizando o texto principal numa página “limpa”, sem outros elementos além de links laterais para matérias correlatas, quando for o caso. O incentivo à concentração na leitura – ou, como querem os responsáveis pela mudança, a criação de “um ambiente de imersão” – é interessante, inclusive porque contraria a tendência à dispersão própria da navegação na rede.
Entretanto, o novo site traz alterações que só poderão ser adequadamente justificadas pelos editores, mas que desde já devem ser anotadas aqui: a perda de importância do plantão – ou “últimas”, agora “escondido” na aba “Mais”, à direita da tela – e a exclusão do link para a edição digital, agora só acessível através do ícone que reproduz a capa do dia, visível apenas depois que se rola o cursor até a metade da home.
Também causa surpresa a maneira pela qual se pretende incentivar a interatividade com o leitor, sempre valorizada no discurso do jornal: ao que tudo indica, transfere-se essa relação para o acompanhamento das mídias sociais, pois o espaço para comentar as matérias no próprio site, antes já reduzido, parece ter sido definitivamente excluído nesta nova versão.
Finalmente, mas talvez ainda mais importante, o jornal continua sem abrir um ícone para comunicação de erros.
Mudou o site. E o jornal?
Resta saber se essas mudanças expressam alguma melhoria na qualidade da informação, agora veiculada de forma mais atraente. A julgar pela edição de domingo (1/6), parece que não. A propósito da manchete de capa, o professor Sérgio Martins ironizou, em sua página no Facebook:
“Vestibular online para jornalismo, responda rápido: te entregam uma pesquisa apontando que, faltando menos de duas semanas para a abertura do mundial, no país mais fanático por futebol do mundo, na cidade-palco da final, 45% das pessoas aprovam a Copa, 40% rejeitam e 15% são indiferentes. Levando em conta o contexto mencionado acima, e o fato de que 40 + 15 = 55, e que 55 > 45, a manchete que melhor traduz o que há de relevante nesse resultado é:
a) ‘40% dos cariocas são contra a Copa’
b) ‘Apesar da paixão por futebol, Copa divide cariocas’
c) ‘Maioria dos cariocas não vai a protesto e quer ver a Copa’”.
Não precisa ser muito esperto para saber que o jornal cravou a última opção. E não por incompetência, mas porque precisa estimular o grande negócio da Copa, mesmo sabendo que leitores mais atentos perceberão a manobra.
Entre as mais notáveis mudanças pelas quais o jornalismo vem passando com a digitalização está essa nova forma de nomear a notícia, indevidamente chamada de “conteúdo” – porque “conteúdo” pode ser qualquer coisa, desde horóscopo, palavras cruzadas e frivolidades até informações da mais alta relevância. Entretanto, se pensarmos em “conteúdo” como “substância”, talvez possamos sugerir o que falta, fundamentalmente, em todas essas recentes mudanças: apostar na substância para ter o que dizer através de uma nova estética.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)