Foi no auge da maior campanha de imprensa sobre uma hidrelétrica no Brasil, 30 anos atrás, que Pedro Rogério, repórter da TV Globo, deixou a carta, que publico a seguir, para Romulo Maiorana, na redação de O Liberal. O centro da questão era o fechamento das comportas da barragem para o início do enchimento do reservatório da usina de Tucuruí, que viria a ser o segundo maior lago artificial do Brasil, com área de três mil quilômetros quadrados.
Iniciei a campanha de debates sobre a obra ao retornar dos Estados Unidos. A partir de abril de 1984, escrevi dezenas de artigos na minha coluna diária no jornal e reportagens especiais, principalmente sobre os efeitos do represamento abaixo da barragem, até a foz do rio Tocantins e o estuário do Pará. Várias pessoas se incorporaram à polêmica, incluindo a Eletronorte. A contragosto, a empresa respondia aos questionamentos e investia contra os críticos.
Irritada pelo rumo da discussão, tentou me calar através de contato com Romulo, que não aceitou me tirar a tribuna. A estatal que se manifestasse. À medida que a pressão cresceu, Romulo foi me passando os bilhetes e outras mensagens que lhe eram dirigidos, dentre as quais a de Pedro Rogério, na época um repórter influente e com largo trânsito pelo mundo oficial, inclusive na presidência da república.
Inteligente, trabalhador, simpático e audacioso, ele singrava pela invisível linha demarcatória do jornalismo e do lobby, sempre uma via tentadora para os jornalistas, sobretudo os que conseguem ter acesso à cúpula da imprensa.
Toda a diretoria da Eletronorte foi ao gabinete de Romulo, mas ele não atendeu o que eles queriam: evitar que eu continuasse a criticar a hidrelétrica, mesmo reproduzindo integralmente as respostas da empresa. Depois de três meses de artigos diários, eu estava disposto a reduzir esse volume ao acompanhamento das novidades que fossem surgindo no processo do enchimento do reservatório e no que foi o grande produto da campanha: os estudos dos efeitos do represamento abaixo do rio Tocantins, os primeiros feitos previamente (embora a apenas sete meses do fechamento das comportas) no Brasil. A Eletronorte se comprometeu a informar em tempo sobre o início da formação do lago, mas se “esqueceu”. Mesmo assim, alertado por fonte local, eu fui para Tucuruí em condições ainda de testemunhar esse momento histórico.
Retomando a remexida no baú de repórter, dele extraí esse documento, um dos muitos que permanecem inéditos. Com ele, procuro mostrar que a celeuma das hidrelétricas é antiga e nem sempre se renova, para infelicidade do país. Seu principal entrave é a intolerância entre as partes. O desejo de vencer, que supera o de convencer, compromete e compreensão da qustão.
A carta de Rogério não está datada, mas é do primeiro semestre de 1984.
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Querido Romulo,
Passei aqui para te abraçar, mas infelizmente você estava no Iate. O que faz muito bem: pernas para o ar porque ninguém é de ferro. Estou de passagem, vindo de São Luiz do Maranhão; regresso agora à tarde a Brasília. Percorri os 590 quilômetros já prontos da Estrada de Ferro de Carajás, a bordo de uma possante locomotiva diesel. É uma beleza de ferrovia. Em outubro, o trem vai passar em cima de exuberante ponte de 2,6 km sobre o Tocantins; em março, 15 dias antes de deixar o Governo, o Figueiredo vai inaugurar essa obra importantíssima para a Amazônia.
Estou muito preocupado é com o tom dramático com que figuras respeitáveis do Pará contestam a Eletronorte na questão do fechamento das comportas de Tucuruí. Leio sempre lá em Brasília o nosso Liberal, e as [às] vezes tenho lido alguns artigos que beiram o terrorismo ecológico. Acho que o caminho não é esse; a Eletronorte é uma empresa séria, com homens sérios; não iriam de forma alguma projetar e executar uma obra que provocasse alterações ambientais que pudessem causar prejuízos irreversíveis. Pensar de modo contrário é revogar o bom senso e a inteligência de eficientes engenheiros, técnicos e cientistas da Eletronorte e do nunca assaz louvado Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o INPA, instituição respeitada internacionalmente.
Pois o INPA pesquisou aquilo tudo, apontou os perigos e aconselhou as correções. Não é possível que vá acontecer a ecatombe [hecatombe] que vejo descrita nas páginas do nosso jornal. Acho que o melhor caminho não é o do puro terrorismo ecológico para se preservar essa região; os técnicos que estão contradizendo Tucuruí deveriam propor um diálogo inteligente com o pessoal da Eletronorte, para a discussão da polêmica. Todos sairiam ganhando com isso. Não tenho procuração da Eletronorte, nem este é o meu objetivo. Busco apenas o clarear da verdade. Acompanhei, como repórter, a construção da hidrelétrica desde o início; ao vê-la, agora, quase pronta, a sensação que tenho é de otimismo no futuro da Amazônia e do Brasil. O País precisa de crescer, precisamos sair não só do atoleiro político em que nos meteram, mas também, e principalmente, do atoleiro econômico e social. E Tucuruí é um caminho para isso.
Um grande abraço do amigo
Pedro Rogério
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)