Da distância segura de um oceano, o tabloide britânico Daily Star(li a notícia na versão impressa do jornal) destacou três pontos sobre a Copa do Mundo que começou no Brasil, em 12 de junho de 2014: o pesado esquema de segurança – policial e militar – que cerca a seleção inglesa, uma das 32 que disputarão o torneio (furado, no entanto, por alguns torcedores que conseguiram postar selfies com três jogadores do English Team no Instagram); a corrupção na entidade organizadora da Copa, a Fifa (segundo o jornal britânico, estaria sendo investigada pelo FBI dos Estados Unidos); e a falta de entusiasmo dos brasileiros com a Copa do Mundo (algo inusitado, no país da seleção famosa entre os britânicos por seu beautiful game).
Dos três itens, o desencanto brasileiro com a Copa mereceu maior destaque. Why? A maior festa do futebol mundial, realizada no autointitulado País do Futebol, não despertou entusiasmo nos habitantes locais. Tampouco nos turistas, em época de bicuda crise econômica mundial – 80% dos ingressos foram vendidos para brasileiros.
Corte para a TV estatal inglesa, a BBC. Imagens do Rio de Janeiro e São Paulo e estatísticas referentes aos gastos da Copa. Pergunta para o correspondente britânico: “Is everything ready for the opening ceremony?” “Not really, but almost.” A resposta se refere ao estádio construído em Itaquera, São Paulo, para a abertura da Copa. Mas bem poderia resumir o estado de alma dos brasileiros sobre a Copa.
Pergunta inquietante
Os mesmos três elementos fazem parte do dia a dia dos brasileiros. Um ostensivo esquema de segurança policial e militar ocupa partes das 12 cidades brasileiras que sediarão jogos da Copa – para dissuadir ou reprimir manifestações. A corrupção na Fifa é assunto farto nas páginas dos jornais e colunas dos cadernos de esporte. E a falta de entusiasmo dos brasileiros com a Copa preocupa o governo – que declarou estar realizando a “Copa das Copas” e lançou extensa campanha propagandística ressaltando os “legados” da Copa e os benefícios auferidos pelos investimentos feitos com dinheiro público nas 12 cidades-sede. As estatísticas televisionadas pela BBC apontaram gastos de 6,5 bilhões de libras (25 bilhões de reais) na realização da Copa.
Corte para o Rio de Janeiro. Uma manifestação de crítica aos gastos da Copa e à restrição da mobilidade urbana ocorre diante dos “territórios da Fifa” na cidade – alguns quilômetros ao redor do estádio do Maracanã e as áreas de praia adjacentes ao local da Fifa Fan Fest. Camisas dos principais clubes de futebol facilmente reconhecíveis em grande número (de várias épocas) deitam por terra (ou areia) um dos pontos enfatizados pelas vozes que se pronunciaram a favor da Copa – que protestos seriam obra de uma minoria de brasileiros mal-humorados que não gosta de futebol (ilegítimos, não-representativos) que estariam atrapalhando a festa dos demais.
O cerco ostensivo policial-militar ao distante, diminuto Maracanã em contraste com as camisas dos manifestantes (não se viram máscaras) poderia começar a responder “por quê?” os brasileiros não demonstram, em 2014, o mesmo apreço pela Copa do Mundo de outras épocas. Pergunta que inquieta jornalistas ingleses e atemoriza o governo brasileiro, que investiu pesadamente na Copa em termos financeiros e nos termos da eleição que se aproxima.
Slogans que marcaram 2013
As obras inacabadas de infraestrutura para a Copa foram aceleradas, a toque de caixa, nos últimos 12 meses. Exatamente o período que coincidiu com aumentos simultâneos de tarifas de transportes públicos nas 12 cidades-parceiras da Fifa.
O contraste entre os eventos – gastos bilionários, truculência no trato da população durante as obras para a Copa, aumento de tarifas públicas – se alastrou como um rastro de pólvora. Levou milhares, em seguida milhões, de brasileiros às ruas numa cascata de demandas que principiou na redução ou eliminação das tarifas de transporte público, seguiu com demandas por saúde e educação “padrão-Fifa” (o ex-jogador Ronaldo, integrante do Comitê Organizador da Copa, dissera que o evento precisava de estádios, e não de hospitais; ver aqui) e culminou em críticas ao evento e aos políticos brasileiros que buscavam promovê-lo: prefeitos, governadores e a presidenta Dilma Rousseff (cuja popularidade caiu de níveis recordes para pouco mais de 30% das intenções de voto à época; ver aqui).
Duramente reprimidas pela polícia com apoio do Exército, as manifestações ocuparam as ruas e avenidas das principais cidades brasileiras (inclusive as que estão fora da lista da Fifa), além de prédios públicos, incluindo o Congresso Nacional (ver aqui) e o Palácio Itamaraty, em Brasília (aqui), e porções dos “territórios da Fifa” inaugurados em 2013, no evento-preparatório Copa das Confederações. Dois slogans marcaram as jornadas de 2013: “Vem pra rua” e “Não vai ter Copa”.
A qualidade de vida
Desde então, as ruas ficaram mais vazias. E o entusiasmo dos brasileiros pela Copa – expectativa do governo brasileiro e dos jornalistas britânicos (e turistas que aguardam o início dos jogos) – também murchou.
Esse estado de ânimo – refreamento do ímpeto dos protestos, melancolia e desencanto com a Copa do Mundo, expectativas divergentes – corresponde ao estado de “ansiedade” (ver aqui) descrito pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, típico de sociedades na Modernidade tardia – como o Brasil (e a Grã-Bretanha).
Há cerca de um mês, a imprensa brasileira (e o governo) divulgou os resultados do último relatório referente às Metas do Milênio. O Brasil integra seleto grupo de países que obteve melhorias notáveis na maior parte dos indicadores de desenvolvimento social e econômico nos últimos 25 anos. Nesse período (1990-2014) foram realizados três megaeventos no país, todos na cidade do Rio de Janeiro (a conferência ECO 92 em 1992, os Jogos Pan-Americanos em 2007, a conferência Rio+20 em 2012). O impacto desses eventos na melhoria da qualidade de vida dos brasileiros (e cariocas) é duvidoso. Uma das Metas do Milênio na qual o Brasil menos avançou foi a Meta 7, referente ao Meio Ambiente (tema de dois dos três megaeventos realizados aqui).
Nada indica que a Copa mudará significativamente a qualidade de vida da população – algo enfatizado pelas manifestações em 2013 demandando “padrão Fifa” nos serviços públicos – ou padrões internacionais de qualidade de vida medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.
Repúdio ao imediatismo
Nesse sentido, o mal-estar com a Copa é menos eleitoreiro e imediatista do que imaginam analistas brasileiros e overseas. Afrouxaram-se os laços entre promessas de curto prazo (“Copa das Copas”) e percepções de futuro (incerteza quanto ao futuro pós-Copa-eleições). Amadurecem imagens do futuro, nem sempre satisfatórios. O presente fica suspenso, diante de um passado traumático e de um futuro imaginado como insatisfatório. Que país os brasileiros terão? Tal questão não se responde nem com “vai ter Copa”, tampouco com “não vai ter”. A complexidade da pergunta – proporcional à complexidade da sociedade brasileira atual – não se satisfaz com a realização de um megaevento, a Copa. Ou dois, a Olimpíada de 2016. Tampouco com três, os que tivemos nos últimos 25 anos.
Bauman aponta a violência (não apenas de ultranacionalistas, fascistas, neonazistas que ressurgem na Europa; ver aqui) como tentativa de fuga dos dilemas da ansiedade contemporânea. Soluções violentas apelam para um passado (idealizado) ou para um futuro (não-sujeito a contestação) para evitar contradições presentes (e decisivas).
Cerca de 200 mil pessoas removidas de suas habitações com as obras para a Copa (ver aqui) e uma centena de mortos durante e após as manifestações em todo o país (aqui) nas mãos de agentes públicos (policiais e militares) tornam mais dramáticas as expectativas sobre o futuro pós-Copa.
Cinquenta anos após o início da ditadura militar, imagens de blindados nas ruas e avenidas das maiores cidades brasileiras reproduzem memórias de horror que ainda traumatizam os brasileiros. A violência praticada por agentes públicos expõe as vulnerabilidades da autoridade na qual foram depositadas as expectativas de um futuro melhor. Aumenta a incerteza e o repúdio ao imediatismo violento simbolizado pela pouco afeita à democracia Fifa. Tentativas de atemorizar e produzir aquiescência podem produzir conscientização e amplificar a insatisfação.
Lidar com um futuro incerto, no qual as velhas regras que funcionavam numa sociedade menos complexa não correspondem às expectativas, conduz sociedades modernas tardias a estados de ânimo contraditórios. O temor do futuro é tão presente quanto a euforia do momento e a nostalgia de um passado menos contraditório (geralmente, apropriada por grupos nacionalistas e ultranacionalistas – influentes nas práticas associadas com o futebol em todo o século 20).
Num ano eleitoral, a ansiedade quanto ao futuro aumenta exponencialmente. Os atuais ocupantes das cadeiras do poder e os aspirantes a ocupá-las em breve já se sacodem, diante do olhar cada vez mais atento e exigente da sociedade. Nesse contexto, a arrogância e a cupidez da Fifa jogam gasolina no incêndio das insatisfações presentes e vindouras.
Como um sahib colonial, a Fifa assume controle exclusivo sobre porções do território brasileiro. Interdita o ir e vir dos habitantes locais, excluídos também dos jogos pelo alto preço dos ingressos (ao passo que a Fifa facilita o acesso de seus próprios agentes aos “territórios” via intervenções na malha urbana financiadas com dinheiro público). Ao arrepio das leis brasileiras, permite a venda de bebidas alcóolicas (de um de seus parceiros apenas) nos “territórios ocupados” e obtém junto ao governo local a criação de “tribunais” de exceção. Exime-se do pagamento de impostos sobre suas bilionárias atividades e de remuneração à grande maioria dos brasileiros que trabalharão pela Copa. Segundo estimativas britânicas, a Fifa lucrará 10 bilhão de dólares com a Copa de 2014 (ver aqui) – enviados integralmente para o exterior.
Essas imagens são altamente danosas para a popularidade do governo Dilma Rousseff e já têm cadeira cativa nos discursos oposicionistas – além de recorrentes acusações de ineficiência e corrupção. Não surpreendentemente, a revista Época detalhou um dos esforços mais intensos do governo nos últimos meses – contentar uma cada vez mais petulante Fifa (ver aqui).
O que está em jogo
Coube aos melhores negociadores brasileiros uma complicada tarefa: convencer uma organização não-democrática (a Fifa) de que o Brasil faria a Copa, mesmo que em condições que a Fifa não desejaria – por ser o Brasil uma democracia, por manifestações serem salutares numa democracia (nas palavras da presidenta Dilma em 2013; ver aqui) e pelos próprios dilemas do governo federal, que não sabia como se posicionar diante das manifestações – condenar ou apoiar a repressão violenta, nas mãos de governos estaduais muitas vezes oposicionistas? Contentar a Fifa ou perder o apreço dos brasileiros em vésperas de ano eleitoral?
A ansiedade se intensifica e as respostas são contraditórias. A violência (incentivada pela arrogância da Fifa e pelo calendário eleitoral) não foi legitimada pelos brasileiros. O uso da violência pelo governo brasileiro contra brasileiros, em território brasileiro, em prol da Fifa acabaria com qualquer traço de credibilidade do governo em 2014.
O advento da Copa permitiu a diversos grupos com agendas diversas articular sua insatisfação usando os canais da política formal e das manifestações de rua. Trouxe à tona diferentes agendas que estavam no background. Fechar as portas da Copa não vai silenciar as expectativas. Muito antes, o contrário. A realização da Copa amplifica essas demandas e nos faz encarar de frente as possibilidades de nossos futuros.
Ademais, num ano de efemérides (além dos 50 anos da ditadura, os 30 anos das Diretas e os 20 anos do Plano Real) memórias que pareciam esquecidas retornam com fôlego redobrado. Em 2013, “o Gigante despertou”. Em 2014, ficará diante da TV, metamorfoseado num “fuleco”? Lances decisivos para o futuro dos brasileiros virão, logo a seguir. O mundo não acaba nem começa em 12 de junho de 2014. O que está em jogo é o day after.
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Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisador CNPq