Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um cadinho de história

Já não acreditava que mais alguém fosse se interessar por mim. Estive durante anos guardado em estantes de antigos colaboradores, relegado ao esquecimento quase total, despertando interesse apenas esporádico em entes próximos dos meus outrora jovens assinantes e escritores. Para que a passagem dos anos seja posta em perspectiva: venho do tempo em que, estando em São Paulo, o modo mais lógico de se chegar às localidades era se tomar o bonde elétrico. Por isso mesmo, pude conhecer os pormenores dos bairros mais diferentes desta então pulsante metrópole. Os anos são cruéis com a memória e já começo a desviar-me do assunto principal deste meu talvez derradeiro texto histórico.

Minha graça, senhores, é O Crisol. Nasci na capital paulista, terra de gente laboriosa. Entrementes, fui assim batizado por um gaúcho de nome Homero Mazarem Brum, meu criador, idealista, redator e editor. Assim, já no início de minha apresentação, peço desculpas por minha escrita, pois seria impossível emular a verve e o estilo com que Homero conclamava jovens e crianças para nosso sonho comum em seus editoriais. Desde minha criação, procurei com afinco, determinação e humildade, fazer-me presente em todos os lares em que habitassem meninos e meninas interessados nas coisas do Brasil e do mundo. Por isso, foi também com ardor que busquei ser a principal revista infantil desta nação. Aquela que teria a capacidade de difundir um ideal de estudo, amor e progresso entre as crianças brasileiras.

“O Homero passava de porta em porta para vender O Crisol e ia perguntando: onde é que tem criança que vai à escola e gosta de ler? Um vizinho indicava outro e assim ele ia fazendo freguesia”, contou recentemente o Sylvio Ferraz Mello, um antigo colaborador meu. Só acrescentaria uma informação à lembrança dele: é que nessas andanças atrás de novos assinantes, Homero também ia plantando a semente da leitura, da escrita e do estudo nos meninos. O que, na verdade, era o ideal por trás de minhas páginas. Com exceção de algumas colunas, escritas por professores e amigos próximos de Homero, elas eram preenchidas por textos dos próprios assinantes mirins. Como forma de soldo, os colaboradores ganhavam livros escolhidos a dedo por meu editor.

O Sylvio não tem na palavra o foco de seu trabalho, mas diz que eu tive proveitosa influência em sua vida. Prova disso é que em março de 1954, quando ele tinha apenas 16 anos, escreveu um pequeno texto sobre o Cruzeiro do Sul, “uma constelação austral formada por 54 estrelas dispostas em forma de cruz, sendo visíveis a olho nu somente cinco”. Hoje, Sylvio é astrônomo, professor emérito da Universidade de São Paulo, doutor honoris causa do Observatório de Paris, tem uma série de livros publicados e viu um asteroide, descoberto em 1983, ser batizado Ferraz-Mello em sua homenagem.

Salões de sinuca

Eu morava em uma Vila particular no Belém, a duas quadras de onde hoje é o Sesc Belenzinho. “Todo mês o Homero passava com a maletinha dele. Conhecia outras crianças do bairro que assinavam O Crisol e todos escreviam para ganhar livros”, Sylvio relembra, e isso dá ideia de como eu andei pela metrópole paulista. O Homero era forçosamente meio nômade – nunca fui um negócio propriamente lucrativo –, a vida era apertada financeiramente e nós dois mudamos de endereço inúmeras vezes. Na época em que conheci o Sylvio, por exemplo, estava muito provavelmente sediado no bairro de Moema, zona sul da cidade. Para chegar até o Belém, na zona leste, era uma viagem que se iniciava tomando o bonde da linha Santo Amaro.

De 1946 até 1961 essa foi nossa rotina. O Homero me levava em maletas, me apresentava a pais, professores de grupos escolares, bibliotecas, colégios. As edições eram montadas nas casas em que morávamos – o que, muitas vezes, se resumia a quartos de pensão. No começo, minha criação foi ligada à Igreja Metodista – da qual meu editor fazia parte – e os primeiros números serviam como Órgão da Classe de Escoteiros da Escola Dominical de Vila Isolina, em Santana. Aliás, publicações desenvolvidas em escolas e grupos escolares eram recorrentes na época, estimuladas pelas correntes da Escola Nova, em voga nos princípios do século 20. Entrementes, logo nos meus primeiros números fui registrado como revista infantojuvenil, aberto a todas as crianças interessadas.

Mas minha rede de leitores e colaboradores ia muito além das fronteiras da metrópole. Em Bebedouro, no interior paulista, por exemplo, residia um de meus mais contumazes colaboradores, o hoje anestesiologista José Roberto Nociti. “Eu mandava colaborações para quase todos os números d’O Crisol, foi lá que aprendi a escrever. Além disso, ficava responsável por angariar novas assinaturas na minha cidade”, lembra. O expediente de usar colaboradores e pais de assinantes como meus difusores era comum e o Nociti era um dos mais empenhados nessa rede que foi se formando aos poucos. Apesar da proximidade, só nos conhecemos pessoalmente quando ele veio a São Paulo estudar medicina e fez uma visita ao casarão, no Bexiga, em que eu e Homero morávamos num quarto alugado. Com os anos perdemos contato, mas meu editor nunca deixou de sentir orgulho pelas conquistas profissionais do Nociti.

A rede de assinaturas e colaborações se estendia a outros Estados, e assim ia se expandindo minha fama. Era o caso dos irmãos Rudy e Claudius Ceccon, que enviavam colaborações do Rio e depois, com a mudança da família, do Rio Grande do Sul. O Rudy era um leitor e escritor assíduo, não faltava a uma edição minha. O Claudius não aparecia muito, se bem me lembro, enviou apenas uma ou duas ilustrações. Mas às vezes o pouco é muito. Recentemente ele emudeceu no telefone. “Como você sabe sobre O Crisol?”, perguntou ao interlocutor com certo espanto. “Minha estada em Garibaldi (RS) aconteceu entre 1948 e 1949. A certa altura começaram a chegar exemplares d’O Crisol e minha tia Stella, uma mulher extraordinária, me estimulou a enviar desenhos à revista. Lembro da emoção com que recebi o número em que meu desenho havia sido publicado”, lembrou o Claudius que, anos mais tarde, seria um dos fundadores d’O Pasquim.

Saindo bimestralmente, iniciei com tiragem de apenas 200 exemplares e terminei com 10 mil. Nunca custei mais de 40 cruzeiros anuais ao meus assinantes. Ao todo, foram 93 números. Só parei de ser editado, a contragosto do Homero, por causa de um aumento no preço do papel decorrente da Instrução 204 da Sumoc, adotada no início do governo do presidente Jânio Quadros, que fez uma reforma cambial baseada na adoção de uma taxa livre de conversão de dólares em cruzeiros. Com isso, o preço das importações cresceu abruptamente.

Até 1948, eu não era muito diferente de um jornalzinho amador. A partir desse ano, no entanto, minha capa passou a ser colorida e ilustrada por um artista gráfico de nome Hamilton de Souza. Foi ele quem deu uma identidade especial para mim. As capas, sempre mimeografadas em duas ou três cores, eram ilustrações características que evocavam lendas, heróis nacionais e datas comemorativas.

Àquela época, o ilustrador era um dos colaboradores do Voz Infantil, outro jornalzinho mirim, editado pela Biblioteca Monteiro Lobato, que durou de 1936 a 1950. Nós dois tínhamos algumas coisas em comum. O fato de termos textos assinados por crianças era uma. Outra, hoje percebo, era o forte teor nacionalista de nosso conteúdo. Vivia-se, então, a expectativa do desenvolvimento brasileiro, o País tornando-se urbano, a industrialização. Os sonhos eram muitos, os ideais também. Homero não me batizou ao acaso. Crisol é um recipiente usado para fundir metais em alta temperatura. Ora, minhas páginas, para meu editor, deveriam servir como um espaço de fundição de uma nova geração de brasileiros: um crisol de personalidades.

“Se fosse ficcionista, basearia um personagem em Homero. Ele era um tipo alto, esguio e de fala muito mansa. Extremamente educado. Fazia da revista seu trabalho e vivia rodeado por crianças”, disse o Sylvio Ferraz. E é assim que eu também lembro dele. Natural de São Sepé (RS), Homero veio para São Paulo em 1940. No início trabalhou na Imprensa Metodista, mas durante os 15 anos de minha existência se dedicou quase integralmente a nosso projeto. Depois que parei de ser editado, Homero mudou-se para Joinville, em 1968, com a mulher, Else Brum. “Ele era muito idealista e até o fim da vida preocupou-se com o futuro das novas gerações”, ela conta. Homero morreu em 1996 e em suas últimas fotografias, aparece ainda esguio e rodeado de crianças que passavam os dias ouvindo seus trava-línguas, curiosidades e histórias de um passado brasileiro já longínquo.

Se o Sylvio não é ficcionista, o João Antônio foi. “De um lado a outro da cidade pedalando a minha magrela, chispa, trim-trim, firme envergo o lombo do selim para o cano, ganho, são duas horas voadas no selim, a redação do jornalzinho infantojuvenil, num quartinho de fundos de uma casa em Moema, Avenida Juriti, onde começo a escrever. Ou antes, a exortar, em patriotadas, a elevação das honras de heróis no fragor de batalhas que nem entendo. Mas imagino”, escreveu o autor no conto memorialístico “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, de 1982. Ao longo de toda sua carreira, João Antônio lembrou de mim e da importância que suas colaborações tiveram para ela. “Comecei então a tomar conhecimento da literatura, a ler tudo. Aprendi a usar dicionário. Lia Monteiro Lobato, Viriato Correia”, disse ele a Edla Van Steen em entrevista registrada no livro Viver & Escrever 1.

“O João Antônio preocupava o Homero”, lembra Else. “Ele comentava que o menino já começava a se revelar um boemiozinho.” Realmente. Ganhador de dois Jabutis – melhor livro de contos e melhor autor estreante – com Malagueta, Perus e Bacanaço, em 1963, o João Antônio não era fácil. Muito ao contrário do que minhas páginas recomendavam – uma vida de estudo, obediência aos pais e hábitos saudáveis para o corpo e espírito –, ele já começava a se interessar pelos salões de sinuca e malandros de São Paulo.

História peculiar

Apesar das preocupações, o escritor foi um de meus mais ilustres colaboradores, tendo assinado textos de 1948 a 1955. Um deles, escrito aos 13 anos, foi um conto sobre a situação dos negros na sociedade, o que já revelava seu tema predileto: os menos favorecidos. Em 1954, em uma espécie de mea-culpa, narra a história de um menino que abandona os estudos para fazer gazeta, mas, arrependido, retoma o caminho da disciplina. Quem dera o mesmo tivesse acontecido com ele! Três meses depois da morte de Homero, a vida desregrada de João Antônio cobraria a fatura. Quase 20 anos mais novo que meu editor, o escritor morreria em outubro de 1996, aos 59 anos.

Hoje, vendo em retrospecto, chega a ser inusitado pensar nas trajetórias de meu editor e do escritor. O Homero, como todo homem de ideais das décadas de 1940 e 1950, também tinha suas preferências políticas. Bem ao encontro do meu teor patriótico, ele vestia camisa cáqui e saudava anauê. Amigo de Loureiro Júnior, genro de Plínio Salgado, flertou com o integralismo durante anos. Era uma época em que optar por ser isso ou aquilo era essencial para o próximo passo da nação. Hoje, com as águas passadas da história já tendo esfriado ânimos, é engraçado imaginar que das minhas páginas saíram um boêmio contumaz e um fundador d’O Pasquim.

Conforme eu ia crescendo, a meu redor surgiam outras ações relacionadas aos infantes brasileiros. Meus colaboradores mais assíduos, por exemplo, faziam parte das Academias Juvenil e Infantil de Letras. Vez ou outra, alguns acadêmicos se reuniam para deliberar sobre mudanças e melhorias em meu conteúdo. No final dos anos 1950, também eram realizados saraus organizados em colaboração com escolas paulistanas, como o Instituto de Educação Caetano de Campos. Com os avanços técnicos, eu ia adquirindo mais robustez e, até minha definitiva interrupção, passaram por mim mais de uma centena de colaboradores mirins. Daquela época, todos envelheceram ou morreram, uma indústria toda voltada para a criança surgiu, mas minhas páginas ainda estão aqui para contar essa história peculiar de meninos que cresceram e comigo aprenderam.

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André de Oliveira, para o Estado de S.Paulo