Segunda maior economia do Mercosul e terceira da América Latina, a Argentina foi posta em xeque por um juiz federal de Nova York, figura desconhecida para a maior parte do público. Sua decisão deixou o país muito perto de um novo calote: o governo argentino só poderia continuar pagando a dívida reestruturada se entregasse também US$ 1,3 bilhão a credores litigiosos. Esses credores, os holdouts, nunca aceitaram os acordos de renegociação concluídos em 2005 e 2010. Se o mesmo direito fosse estendido a mais credores na mesma situação, o custo poderia chegar a uns US$ 15 bilhões, mais de metade da reserva cambial argentina, cerca de US$ 28 bilhões.
A presidente Cristina Kirchner chamou de extorsão a sentença favorável aos holdouts, também conhecidos, no jargão argentino, como “fundos abutres”. Governos sul-americanos, incluído o brasileiro, manifestaram-se a favor da Argentina. O mais famoso colunista do Financial Times, Martin Wolf, economista com passagem pelo Banco Mundial, escreveu um artigo contra a decisão do juiz americano. Outros formularam uma pergunta aparentemente inquietante: como pode um juiz, americano, ou de qualquer outra nacionalidade, tomar uma decisão com potencial para pôr de joelhos um Estado soberano e ainda afetar o mercado internacional?
O assunto ainda pode valer boas discussões, embora nenhum Estado, é sempre bom lembrar, seja dispensado de cumprir contratos por ser um ente soberano. Mas o caso argentino poderia ficar um pouco mais claro com alguma informação adicional sobre o currículo do juiz Thomas Poole Griesa e seu envolvimento nessa história. Essa informação apareceu no Estado de S.Paulo no último sábado de junho (28/6).
Cobertura de qualidade
O juiz Griesa é provavelmente um estranho para a maior parte do público internacional, mas é um velho conhecido das autoridades argentinas e sua história profissional está longe de ser obscura. O governo argentino anunciou o calote no fim de 2001. Nos primeiros anos depois dessa decisão, o juiz americano impediu embargos pedidos pelos credores. Além disso, rejeitou ações de holdouts contra a reestruturação em 2005 e em 2010. Segundo o Estadão, Griesa ainda tentou “estabelecer um canal de negociação entre os holdouts e a administração Kirchner”, mas “a Casa Rosada ignorou as tentativas” e isso “gradualmente levou o juiz a assumir uma posição dura com o governo”.
Esse mesmo juiz, segundo o jornal, condenou o FBI por infiltrar agentes no Partido Socialista dos Trabalhadores e obrigou o escritório federal a pagar uma indenização de US$ 250 mil. Sua biografia inclui também uma investigação sobre a Loja Maçônica P-2, envolvida no escândalo do Banco Ambrosiano, e suas ligações com o governo do presidente Juan Domingo Perón.
Esse perfil, apresentado numa pequena matéria de duas colunas, no meio da página 5 do caderno de Economia, é importante para qualquer avaliação do juiz Griesa e de seu envolvimento no problema argentino. Não responde às questões sobre o poder de um juiz nacional para por em xeque um Estado soberano nem sobre as consequências mais amplas de uma decisão sobre os interesses de um pequeno grupo de credores. Mas fornece elementos importantes para o entendimento mais completo do caso. Muito mais que uma boa sacada, material desse tipo marca a diferença entre a cobertura rotineira – o acompanhamento mesmo competente dos fatos – e o esforço para fornecer a informação mais ampla e esclarecedora.
Esse detalhe vale um destaque, mas na mesma semana a maior parte dos grandes jornais produziu material de alta qualidade sobre os fatos mais importantes. Além de acompanhar com eficiência o problema argentino, a imprensa tratou de forma competente o novo acordo entre governo e Petrobras, a piora das contas do Tesouro, as novas projeções econômicas do Banco Central e o décimo balanço do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Ao noticiar o balanço do PAC, por exemplo, o Estadão destacou a classificação do projeto do trem-bala como “em dia”. Prometido inicialmente para este ano, esse projeto nem sequer foi licitado. O Globo chamou a atenção para outro detalhe: “PAC: 53% das obras são de programa habitacional”. A Folha de S.Paulo marcou um ponto ao noticiar, no sábado (28), a falência da Giroflex, uma velha conhecida dos cidadãos, digamos, um pouco mais maduros. Para os dessa geração, Giroflex e móveis de escritório eram quase sinônimos. Ainda valeria a pena examinar como os concorrentes estrangeiros têm conseguido, como informou a matéria, pôr no mercado nacional móveis até 40% mais baratos que os da empresa brasileira.
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Rolf Kuntz é jornalista