Se uma foto vale mil palavras, poucas valeram nesta Copa como o joelhaço exposto na foto do lateral colombiano Zúñiga montado nas costas de Neymar enquanto segurava sua cabeça e dava o coice que nos custou o começo do fim. Poucas fotos valem mil legendas como a de Neymar caído de bruços aos berros de dor, chorando sem se importar com a imagem de campeão, divulgada em toda imprensa durante e na CartaCapital desta semana. E raras comovem um país inteiro como a capa da Veja na semana da contusão, com Neymar contorcido, o braço esquerdo tentando tocar a vértebra quebrada. Mas a mesma revista intriga com a foto das “Páginas Amarelas” (9/7) e a capa desta semana.
Na primeira, o economista Roberto Giannetti da Fonseca dá um sorriso aberto como se ridicularizasse as próprias palavras sobre o risco do país, bastante alto. Não há na entrevista um único parágrafo capaz de fazer o entrevistado ou o leitor sorrir. A entrevista trata da armadilha jurídica da Argentina que beira o calote, os efeitos catastróficos para o comércio brasileiro, o fracasso do acordo com a União Europeia, a queda da exportação dos carros nacionais, a falta de emprego, a falta de perspectiva… e lá está o economista na foto, rindo aberto.
Na segunda, a capa de Veja desta semana, Dilma Rousseff ri tranquila enquanto pululam notícias do Brasil implodido na Copa, da inflação acima dos 6,5% batendo os 10%, dos juros dos bancos nas alturas. Mas, aconteça o que acontecer, o mundo desaba e Dilma sorri bem maquilada, bem vestida, clonando a leveza de Lula sem chegar a tanto – às vezes é preciso reler o texto que traz a foto estampada para entender que se trata do mesmo assunto.
O desafio é encontrar alguma foto da chanceler alemã Angela Merkel que não exiba uma ruga na testa, um franzido de preocupação na boca, uma sombra nos olhos duros – e não é que a Alemanha é a melhor economia da União Europeia?
Pelo menos o final da Copa e a vitória da Alemanha serviram para inverter as imagens. Dilma esteve sempre séria cumprimentando os vencedores. Angela Merkel, sorrindo, beijando os atletas.
A Época desta semana simbolizou melhor do que ninguém a melancolia que corrói o Brasil. Cores, para quê? A capa e a matéria principal da Copa vieram em preto e branco, triste como está o Brasil, e mesmo com Dilma sorrindo, mas em preto e branco.
O candidato ao governo do Distrito Federal José Roberto Arruda saía nas fotos sorrindo, sua imagem recebendo dinheiro indevido não comprometeriam a campanha… até que ele resolveu juntar as mãos em prece toda vez que uma câmera focava seu rosto. Não mudou sua condição de “ficha suja”. Custou mas ajustou comportamento ao texto (Época, pág. 10).
Em diagonal
A presidente da Petrobras Graça Foster aparece sempre com o rosto crispado induzindo ao choro e contrariando as palavras de que nada foi tão grave assim, haverá saída honrosa, como todos os depoentes querem fazer crer.
A vice-presidente do PSB, Marina Silva, anuncia um maravilhoso mundo novo e melhor, sem agrotóxicos, poluição ou energia nociva, mas, ao contrário do economista Giannetti da Fonseca, ela nunca sorri. O mesmo com o candidato do PV, Eduardo Jorge, prenúncio do verde sobre o cinza que vem consumindo nossos pulmões, mas diz tudo isso com uma expressão séria, fechada, cinzenta mesmo. Já Aécio Neves fala de todas as desgraças que pretende sanar, e na opinião dele são muitas, mas o sorriso está sempre ali, as covinhas no mesmo lugar.
As fotos negam as palavras como na coluna “Conte algo que não sei” (Globo, 2/7), onde a jornalista e escritora italiana Concita de Gregorio anunciou que o momento do país [Brasil] é parecido com o pós-guerra na Europa ao lado de uma foto luminosa com sorriso angelical, quase uma esquizofrenia jornalística. O texto trata do momento brasileiro de sair do trauma, mas, ao mesmo tempo em que fala da dificuldade e da pobreza, traz a alegria contagiante e percebe a contradição: a realidade das coisas é bastante diferente do que se desenha.
Assim é nossa leitura diária fora de sincronia. Um engana-olho ou trompe l’oeil, aquela técnica que cria ilusões óticas na arte revelando objetos, formas, pessoas que não existem. Nesse quesito, as colunas sociais são mestras: por que toda vez que salta uma coluna social colorida e deslumbrante surge a vontade cantar o samba de Nelson Cavaquinho, “A Flor e o Espinho”: “Tire os seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor..”? É um desconcerto a alegria exuberante no meio de uma imprensa dilacerada por desgraças, e como tem desgraça em todas as páginas, todas as rubricas, todos os jornais da televisão… Mas eis que de repente, como se tratasse de outro mundo, outro planeta, os personagens fotografados ali dão a maior inveja, estão imunes, a salvo. Por que vem logo na cabeça o título do livro de Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser? Um jornal inteiro pesa chumbo e uma página no mesmo dia traz champã, jatinhos, esbanjamento, quase um recreio da mídia.
Nada contra festas ou alegria, mas só pode haver algo de podre numa coluna social onde todo mundo ri, todo mundo usa o mesmo corte de cabelo, o mesmo corte de vestido ou terno, os mesmos sapatos e óculos escuros, os mesmos casais abraçadinhos; a de Monica Bergamo na Folha de S.Paulo – que de longe é a melhor – ensinando a não sorrir de frente para a câmera e sim para alguém ou algo que está ao lado, mas ninguém vê, como se todos mirassem em diagonal ao foco, nunca direto para o leitor. Mas por que todos fazem a mesma coisa sempre, pelo menos diante da câmera?
Suporte errado
Os personagens das colunas repetem aquele cacoete denunciado pelo linguista, filósofo e ativista político norte-americano Noam Chomsky nos gestos encenados pelos entrevistados diante dos repórteres de TV. Grupos fingem que cantam, dançam ou repudiam qualquer fato com veemência, mas o público mais atento sabe que a cena cessará no momento em que o cinegrafista desligar a câmera.
Inútil paisagem, porque poucas vezes surgiu na imprensa uma imagem tão impressionante como a do El País focando o ex-presidente espanhol Adolfo Suarez, que sofria de mal de Alzheimer, abraçado pelo então rei Juan Carlos, ambos caminhando de costas, sem rostos para visão do leitor – deixando no ar uma imagem rara de solidariedade. Ou outra divulgada pelas agências internacionais captando Steve Jobs em tomada patética, ao lado da cuidadora ou enfermeira, com as pernas esquálidas e uma expressão de morte à mostra – o que remetia à vida criada na Apple por este inventor mágico, capaz de revolucionar o planeta.
Fotos, fatos, fitas, foco. Há um descompasso entre o que se vê e o que se lê, como aconteceu quando a repórter da Globo News tentou descrever o acidente do viaduto despencado, junto ao Mineirão. Foi como ouvir os passos de um jantar comemorativo, sem introspecção, sem pausa. Também virou moda entre os jornalistas da Globo News e da rádio CBN conversar uns com os outros como se fossem a própria notícia que veiculam – mandamento proibido até pouco tempo no mesmo Manual de Jornalismo que reza “uma foto vale por mil palavras”. O ouvinte ou espectador é obrigado a presenciar uma conversa de amiguinhos no meio da notícia, que acaba perdendo a importância e o foco nessa sala de visitas.
Falta colocar o passarinho na gaiola como forçava um aparelhinho antigo para estrabismo, Televisex, obrigando o paciente a educar o olhar com o exercício repetido inúmeras vezes até conduzi-lo ao foco certo. Falta sincronia entre fato e foto, muita fita no sentido de engodo do trem da alegria. O leitor, ouvinte, espectador conclui que a verdade está na ficção, na arte, fora dos fatos que trariam uma suposta realidade. Fatos ou a representação dos fatos surgem na mídia num suporte errado, com peso desproporcional e dispersivo, detonando a reflexão, impedindo por mais de meio segundo a permanência na cabeça das pessoas.
Será que os jornais passaram a embrulhar o peixe – e os jornais de TVs e rádios zapeados para o espaço –muito mais rápido do que antigamente?
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Norma Couri é jornalista