Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sobre deturpações e reparações adequadas

As ações que o advogado João Tancredo move contra a editora Abril, contestando matérias difamatórias publicadas pela Veja em março deste ano, provocaram a previsível reação da revista, que em 3/7 protestou contra o que seria um cerceamento à liberdade de imprensa e mesmo um ato de censura prévia [veja aqui]. O fato repercutiu na semana passada, pelo menos em dois grandes jornais – Folha de S.Paulo e O Globo – e no Portal Imprensa.

O protesto diz respeito ao teor das liminares, que, além de determinarem a publicação de um texto como direito de resposta, mandam retirar imediatamente dos endereços eletrônicos as matérias ofensivas.

Entretanto, será esta a melhor maneira de se reparar um erro – ou, no caso, uma ofensa? Ou o melhor, e mais eficaz, seria obrigar a revista a incluir, em destaque, nos textos contestados, uma informação sobre a falsidade das acusações?

Os fatos

Fundador da ONG Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), João Tancredo atuou em vários casos de repercussão nacional, entre eles o do pedreiro Amarildo de Souza, morador da favela da Rocinha que, em junho de 2013, foi levado para a sede da UPP local e ali torturado até a morte. Seu corpo continua desaparecido.

O contexto em que o fato ocorreu, em meio às manifestações populares do ano passado, e a existência de episódios semelhantes levaram um grupo de pessoas a propor o projeto “Somos Todos Amarildo”, que seria coordenado pelo DDH.

Como João Tancredo detalhana inicial da ação, a produtora Paula Lavigne sugeriu a realização de um jantar em sua casa, com convites pagos, seguido de leilão de obras doadas por diversos artistas, além da realização de atividades culturais, para levantar recursos com o objetivo de comprar uma casa para a família de Amarildo – tendo em vista a sua situação de extrema pobreza – e “desenvolver um projeto em torno do desaparecimento forçado de pessoas”. O objetivo seria traçar os perfis desses desaparecidos e incentivar a criação de uma rede de contatos entre as famílias envolvidas e instituições que possam ajudá-las.

O jantar ocorreu no dia 8/10/2013 e foi amplamente noticiado pela imprensa.

A deturpação dos fatos

Em março deste ano, porém, a Veja resolveu insinuar que havia outro “desaparecido” no caso e publicou matéria intitulada “Cadê o (dinheiro do) Amarildo?”. Quem lesse o texto e não soubesse da história ficaria convencido de que a família do pedreiro foi ludibriada: que os recursos obtidos no jantar e nas demais atividades deveriam ser destinados exclusivamente a ela, e que o advogado, espertamente, embolsou a maior parte, para um “projeto ainda indefinido”.

A matéria foi reproduzida no blog de Reinaldo Azevedo, que, bem ao seu estilo, se esmerou em acusações e insinuações desmoralizantes para o advogado. A deputada Cidinha Campos (PDT-RJ) tomou esse texto como base para anunciar uma representação ao Ministério Público “contra essa ONG e toda essa nojeira”.

Esta foi a matéria de maior impacto negativo. A outra foi uma nota na coluna Radar, em abril deste ano, sobre a família de Cláudia Silva Ferreira, morta e arrastada na caçamba de um camburão da PM, que estaria sendo “alvo de espertalhões”. O “espertalhão” seria João Tancredo, que teria interesse em atuar no caso, mas teria sido desautorizado pela família. O advogado afirma que não houve qualquer conflito com a família de Cláudia, que simplesmente preferiu ser representada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

A melhor reparação

Quem conhece os métodos da Veja e de muitos de seus colaboradores não se surpreenderia com esse episódio, mais um entre tantos de flagrante distorção dos fatos. Poucos, entretanto, acabam resultando em ação judicial. João Tancredo resolveu reclamar e obteve as duas liminares. A revista, como é de seu direito, vai recorrer.

O problema não é discutir se há cerceamento à liberdade de imprensa, porque evidentemente nenhuma liberdade é absoluta: todo abuso exige reparação. O problema é a forma escolhida para isto.

Em recentes artigos mencionei a relevância da pesquisa de mestrado da jornalista e professora Lívia Vieira sobre a ausência de uma política de correção de erros no jornalismo online. Ela mostra que simplesmente apagar o erro não é o melhor caminho, pois, uma vez publicado, qualquer texto produz efeitos, e sempre haverá alguma forma de recuperá-lo na web. O mais correto, por isso, seria explicitar as correções no próprio texto original.

Lívia não trata de casos como o da Veja, que não se poderia chamar de erro, pelo menos no sentido comum que se atribui à palavra: algo involuntário, fruto de incompetência, incúria ou imperícia. Mas, talvez ainda mais justificadamente, o raciocínio poderia ser aplicado nessa situação. Pois, como é evidente, as matérias difamatórias produziram efeitos deletérios sobre a imagem do advogado e, mesmo que retiradas do ar, podem ser recuperadas por quem se interessar e entender algo sobre mecanismos de busca.

Preservar a memória

Portanto, pedir a pura e simples eliminação de seus links, como se o fato nunca tivesse ocorrido, não é apenas pouco eficaz para os fins pretendidos. Mais que isso – e além de ser uma medida inaplicável a um meio impresso –, é um equívoco. Pelo contrário, exigir que o texto continue lá, com o devido alerta de que se trata de uma fraude, é uma forma de gravar permanentemente os responsáveis por ela e preservar a memória do jornalismo também nos casos eticamente condenáveis.

Mas essas questões, a rigor, apenas demonstram o quanto seria importante a elaboração de uma nova Lei de Imprensa, capaz de regular a atividade jornalística e definir sanções adequadas em casos como este.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)