Durante a Copa do Mundo, entre o dia 11 de junho e 13 de julho, mais de 18 mil jornalistas estrangeiros vieram ao Brasil cobrir o evento. Não só para acompanhar a competição esportiva, mas também para descrever ao público estrangeiro esse Brasil anfitrião em todas as suas dimensões.
Estudar o olhar da imprensa estrangeira é importante sob vários aspectos. Primeiro porque, devido ao interesse, cultura e lógica de raciocínio diferentes dos públicos desses veículos, as matérias não focam necessariamente a mesma agenda que a imprensa local e vão enfatizando ou amenizando determinados temas. Segundo porque, não sendo envolvida nos debates e confrontações nacionais entre mídia independente e mídia dominante, ou mídia de esquerda e de direita, a imprensa estrangeira pode também trazer uma interpretação alternativa à análise do contexto local. Mas não podemos esquecer, todavia, que a mídia estrangeira pode também padecer de certo etnocentrismo que tende a desviar em algumas circunstâncias, o entendimento da realidade local.
Tendo em mente essas considerações prévias, nossa proposta é analisar e comparar as coberturas feitas por diversos jornais estrangeiros ao longo do mês futebolístico, principalmente o francês de centro-esquerda Le Monde, o democrata norte-americano New York Times e o conservador espanhol El País. Nosso estudo se guiou pelas seguintes indagações:
>> Como foi a evolução da cobertura no decorrer do evento?
>> Quais pontos foram destacados?
>> De que forma interpretaram o contexto político?
>> Como comparar com a cobertura nacional?
Os três jornais realizaram uma ampla cobertura durante o período, com correspondentes permanentes, repórteres especiais e colunistas e uma média de 500 a 600 artigos, reportagens e editoriais relativos ao Brasil publicados. A maioria das matérias diretamente relacionadas ao campeonato, mas muitos outros textos dedicados à descrição dos movimentos sociais, das cidades sedes dos jogos, das culturas populares, das realidades socioeconômicas etc.
De maneira geral, a mídia internacional demonstrou a princípio certa apreensão em relação ao evento. Preocupação quanto à organização, os preparativos e a possível retomada das manifestações. Vemos claramente que a tensão se dispersa após a primeira semana devido à propagação da festa. No entanto, a crítica se mantém em relação a vários aspectos, o que tende a variar em função de cada jornal.
Le Monde: entre o fantasma das manifestações e a magia da festa à brasileira, o tom permanece positivo mas objetivamente crítico
A cobertura do francês Le Monde exemplifica essa evolução. No dia 12/06 o jornal publica o seguinte editorial “A Copa num Brasil desencantado“. Um mês depois, em 14/07 o editorial se torna “Mundial, sucesso merecido do Brasil“. Durante a semana que precede a abertura da Copa o jornal publicou diversas matérias descrevendo os problemas de gestão nas obras dos estádios, a morosidade da economia nacional, e a complexidade do diálogo social. No artigo de 11/06, “Um Brasil “com raiva de si próprio” recebe a Copa“, o correspondente regional Nicolas Bourcier utiliza uma citação do conservador Arnaldo Jabor para descrever o descontentamento do povo brasileiro em relação a um evento que se esperava como a consagração do “país do futebol”. Levantando pesquisas que indicam que 70% dos brasileiros consideram-se descontentes com a situação do país, Bourcier também frisa que nos últimos meses o Brasil perdeu a avaliação positiva da imprensa internacional que até pouco tempo ainda era “quase eufórica, mas que hoje prefere apontar os problemas estruturais do país. […] O Brasil permanece um país simpático, mas que ninguém leva a sério”.
Além disso, Le Monde demostra uma forte expectativa quanto à possível retomada das manifestações, com vários artigos sobre a pauta das contestações, uma entrevista de integrantes dos Black Blocks, e outra matéria sobre a mobilização online. “A agitação por enquanto limitada, ameaça se expandir, reiterando em tamanho real as manifestações históricas de junho 2013, durante a Copa das Confederações”, diz matéria da Agence France Presse no dia 12/06. Esse contexto se mantém até o fim da primeira semana do torneio. Com a confirmação de que não haveria reedição das manifestações esperadas, o jornal muda o tom e entra na festa.
A matéria do dia 21/06 “A improvisação à brasileira, na altura das expectativas“, descreve certa surpresa em relação ao “milagre brasileiro” da improvisação. Elogia o jeitinho e a alegria à brasileira que fazem esquecer as imperfeições na finalização dos preparativos. O artigo é citado pela Brasil 24/7 como prova da avaliação positiva da imprensa estrangeira, mas não deixa de frisar os problemas estruturais persistentes. De fato, em paralelo à descrição da competição esportiva, Le Monde é o jornal que mais produziu matérias temáticas sobre a situação social, cultural, ambiental e econômica do país. Essas tendem a enfatizar a permanência das desigualdades sociais e da injustiça racial, além de evidenciar contrastes entre herança colonial e desenvolvimento econômico: a prostituição infantil em Fortaleza, a história da escravidão na Bahia, a devoção religiosa em Recife, a exploração do capital estrangeiro na zona franca de Manaus, o agronegócio insustentável são alguns exemplos. O conjunto de reportagens apresenta um Brasil que, apesar do sucesso da festa, enfrenta ainda profundos problemas estruturais.
Com a derrota da seleção brasileira poucos dias após o lançamento da campanha eleitoral, os assuntos políticos, o descontentamento social e a possível retomada das manifestações voltam a ser pautados. A matéria de 9/07 “Grande tapa na cara do Brasil e da Presidenta Dilma“ cita depoimentos críticos ao governo Dilma como um ressurgimento da lucidez dos brasileiros que acordaram da ilusão festiva. Outras matérias discutem, com abordagens diferentes, o quanto essa derrota poderia afetar a campanha eleitoral da presidenta-candidata, mantendo, no entanto, um ponto de vista neutro sobre a questão.
Além das matérias romantizadas, frequentes na linha editorial do Le Monde, sobre os dias de ressaca ao final da festa, o jornal traz uma avaliação positiva ainda que objetivamente crítica sobre o Brasil na Copa e distingue claramente a magia e alegria da festa bem sucedida por um lado e, por outro lado, os problemas estruturais (estádios elefantes brancos, dúvidas sobre os benefícios econômicos, etc.) que o país vai ter que levar para frente.
New York Times: avaliação neutra da Copa e discussão sobre as desigualdades sociais
O norte-americano democrata New York Times segue mais ou menos a mesma tendência que Le Monde. Exceto o “Guia de sobrevivência no Brasil“ do colunista Roger Cohen, onde alerta seus leitores da especificidade da cultura brasileira do jeitinho, do costume de “empurrar com a barriga”, do atraso, do “tudo bem”, da eterna simpatia, etc., o jornal se destaca por matérias objetivas, neutras e com certa frieza em relação aos fatos. A análise do contexto sócio-político foca igualmente sobre dois questionamentos centrais: as expectativas de manifestações no início do campeonato e após a derrota da seleção brasileira, e o impacto político da derrota na campanha eleitoral.
Mas diferentemente do jornal francês, a cobertura do New York Times traz duas abordagens distintas que vale a pena serem ressaltadas aqui. A primeira é relativa ao entendimento das fraturas sociais internas no Brasil e seus impactos na análise dos fatos de agitação social, como as manifestações e as vaias à Presidenta. Enquanto Le Monde sempre tratou o assunto usando a única expressão “classe média brasileira”, sugerindo um grupo homogêneo, as análises do correspondente no Brasil, Simon Romero, mostram por um lado que a terminologia “classe média” permanece ambígua e internamente desigual e, por outro lado, que mesmo sem manifestações de rua, os rachas sociais da sociedade brasileira foram transferidos para os estádios, criando uma tensão polarizada. Dessa maneira Romero entende que as vaias à presidenta na abertura da Copa não vêm da “população em geral”, como Le Monde omitiu de detalhar, mas de um grupo específico da elite brasileira. A contusão de Neymar causada pelo colombiano e negro Zuñiga também é analisada como a prova da difícil contenção do racismo no Brasil.
Outra abordagem diferenciada aparece na avaliação final do evento. Enquanto Le Monde e El País (mesmo com outro olhar, como veremos a seguir), concluem a cobertura da Copa com elementos avaliativos sobre o êxito do Brasil na realização do torneio, o New York Times se destaca com um editorial de 14/07 focado sobre a FIFA. Após uma singela frase introdutória alegando que “o Brasil pode se orgulhar da Copa que organizou”, o artigo questiona os duvidosos e pouco transparentes métodos de gerenciamento da FIFA, alegando potenciais escândalos de corrupção e frisando a necessidade de implantar novas regras para garantir um jogo mais ético e seguro.
El País: uma tentativa de entendimento da sociedade brasileira sob um olhar conservador
O espanhol El País, por sua vez, faz uma cobertura bem distinta do evento. Provavelmente pelo fato de a Espanha ter cultural e historicamente maior proximidade com a América Latina, o jornal faz, por um lado, uma análise muito mais fina sobre a sociedade brasileira. Mas, por outro lado, a linha editorial conservadora do jornal frisa sua desaprovação ao governo petista de maneira muito mais subjetiva que os dois outros jornais.
Desde o início da competição até a derrota da seleção brasileira, El País se destaca pela maneira como aborda as possíveis manifestações. O editorial do 12/06 “El Mundial de la contestación“ e o artigo do correspondente local Antonio Jiménez Barca e, 11/06 “Que empiece el espetáculo (o no)“ já antecipam que a festa substituirá rapidamente a contestação. Coisa que Le Monde e New York Times reconhecerão somente na semana seguinte. Mas essa ausência de manifestações não é entendida como uma apatia popular, como o New York Times suspeita. O colunista Juan Arias explica, de fato que “a copa nos ayuda a descobrir que Brasil ya es um país normal“, ou seja, que com as manifestações de junho 2013, o Brasil deixou de ser um país diferente, “politicamente anestesiado”, e passou a pensar no seu futuro defendendo seus direitos. Outra matéria de Antonio Navalón (“La Copa o el caliz de la amargura“) avalia que com o aumento do nível educacional a população tem plena convicção de suas justas reivindicações e “que já passou da hora de o governo trocar as balas de borracha pelo diálogo social”.
Diferentemente de Le Monde, que só pauta o legado das manifestações de junho 2013 na suspeita retomada das passeatas e que prefere descrições mais tradicionais da sociedade brasileira (desigualdades sociais, religião, racismo etc.), a primeira fase da cobertura de El País sugere um Brasil voltado em direção à modernidade democrática, como vemos com a matéria sobre Recife, focada na ocupação Estelita do coletivo dos Direitos Urbanos.
Mas a derrota da seleção brasileira e o fim da competição alteram o tom do jornal. Enquanto as colunas de Juan Arias continuam com seu discurso emancipador, as matérias do chefe do setor internacional Luiz Prados, “La hora del cambio“ (10/07) e dos colunistas Miguel Ángel Bastenier, “La segunda vuelta del mundial“ (15/07) e Jorge Zepeda Patterson “El des-milagro brasileño“ não se limitam a discutir qual será o impacto da derrota na disputa eleitoral, mas insistem nos fracassos da economia durante o governo Dilma em uma tentativa de demonstrar a necessidade de mudança na gestão pública.
Mídia nacional versus mídia estrangeira: a batalha da crítica
Vimos com esses três breves exemplos que a cobertura da mídia estrangeira está longe de ser homogênea e que a abordagem de cada veículo depende muito da cultura, do posicionamento geopolítico e dos costumes sócio-políticos de cada país. Destacamos também uma breve citação do jornal burkinabê Le Pays (o país) que na véspera do lançamento da Copa diz, em relação aos estádios inacabados, que “se tal situação tivesse acontecido na África, todo mundo teria achado isso escandaloso e espalhado no mundo inteiro que os africanos são um bando de incapazes”.
Todavia, algumas tendências podem ser ressaltadas. Primeiro é que as manifestações, ainda que não tenham conseguido mobilizar conforme o esperado, criaram uma forte expectativa e o legado das mobilizações de junho do ano passado é grande. O debate sobre os possíveis impactos do resultado da seleção brasileira sobre as tensões sociais o contexto eleitoral também foi significativo.
Mas o que mais chama atenção é a comparação com o contexto midiático nacional. Enquanto a mídia brasileira de esquerda buscou amenizar as críticas sobre a Copa, pois assimiladas a uma crítica ao governo petista, os jornais de centro-esquerda Le Monde e New York Times tiveram a liberdade de desenvolver legítimas críticas sobre a organização do evento, o contexto econômico e outros problemas estruturais do país, sem apresentar significativa tendência de apoio ou rejeição ao governo atual. Percebemos claramente que a reação de autoproteção da imprensa brasileira de esquerda dificultou a emergência de uma avaliação objetiva do legado da Copa em nível nacional.
Alguns podem se queixar da eventual influência da imprensa conservadora brasileira sobre a mídia estrangeira. Afirmar que não houve é difícil, pois sabemos que essa imprensa é muito lida pelos jornalistas do mundo inteiro. É possível que a onda de pânico pré-copa tenha alguma responsabilidade quanto ao conteúdo particularmente negativo das matérias iniciais. Mas no decorrer do tempo ambos os jornais reconheceram que tais previsões tinham sido desproporcionais à realidade (El País, 21/06 “No era para tanto“, Le Monde, 13/07, “Fim do espetáculo no Maracanã“). A análise acima mostra, portanto, a utilidade dessa crítica no entendimento do evento que nos permite discernir a festa espetacular da realidade permanentee de relembrar que a Copa do Mundo envolve colossais interesses econômicos globalizados que vão bem além de simples escolhas nacionais.
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Florence Poznanski é cientista política, diretora Brasil da ONG Internet Sem Fronteiras e integrante do Centro de Estudos da Mídia Alternativa “Barão de Itararé” – MG.