Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Polarização mata jornalismo

 

É muito difícil confirmar um boato que circulou insistentemente em redações jornalísticas e em outros ambientes de São Paulo na segunda quinzena de agosto: negociações para a compra do Grupo Estado e da Rede Record por amigos do governo, que começavam a chegar a termo, ficaram em compasso de espera a partir do momento em que deixou de estar garantida a reeleição da presidente Dilma Rousseff. No caso do Estadão, falou-se especificamente no grupo JBS (Friboi), já detentor do Canal Rural, que a RBS lhe vendeu em 2013. A tentativa de venda do Estadão é algo de que se fala há anos.

À la Kirchner

Se e quando for possível saber mais sobre o assunto, e ficar configurado um plano do governo de formar uma “mídia amiga” – grande imprensa, não veículos mais ou menos alternativos, blogueiros e demais integrantes do PIG, Partido da Imprensa Governista, denunciador do PIG, Partido da Imprensa Golpista –, a Argentina pode exemplificar o risco para a democracia embutido nessa ideia, por sinal ideia que não é nenhuma novidade no Brasil (a política estadual e municipal funciona praticamente toda assim) e alhures.

A jornalista argentina Graciela Mochkofsky foi, no dia 5/8, a convidada de um debate em forma de entrevista organizado pelo Polo de Pensamento Contemporâneo (POP), do Rio de Janeiro, onde passou alguns dias após sua participação na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty.

Graciela, deduz-se de seus relatos, como na autobiografia profissional precoce “Ilusões perdidas“, publicada na revista piauí, é honesta demais, conscienciosa demais, sofisticada demais para caber na grande imprensa argentina atual. Sua última passagem por uma redação foi no jornal La Nación. Pautada para fazer uma cobertura que considerou desequilibrada, saiu do jornal, foi escrever livros, criou um site de jornalismo reflexivo (www.eslpuercoespin.com.ar), ganhou uma bolsa de estudos que a mantém, em Nova York, com o marido, o jornalista Gabriel Pasquini, e um filho pequeno.

No evento do POP, ela narrou como o casal Kirchner, seguindo uma trilha inaugurada na província de Santa Cruz, que Néstor governou, decidiu dividir a mídia jornalística em amiga e inimiga. Contou que o Clarín, principal grupo de mídia argentino, eleito inicialmente amigo privilegiado da Casa Rosada, caiu em desgraça posteriormente.

Graciela abordou diferentes questões, sintetizadas na reportagem abaixo, mas possivelmente a maior lição que sua narrativa deixa é que o bom jornalismo ficou sem lugar no cenário dominado por amigos e inimigos do rei. “Infelizmente, os meios de comunicação aceitaram esses papéis. O amigo aceitou ser amigo e o inimigo aceitou ser inimigo. E no meio não ficou nada.”

“E no meio não ficou nada.” A mídia jornalística brasileira ainda está preservada de uma polarização tão feroz, tão autoritária, tão redutora da política a um confronto entre “bons” e “maus”, mas o contexto político do país faz com que caminhe nessa direção. A lição argentina merece ser meditada.

Eis os trechos principais da fala de Graciela Mochkofsky:

Trajetória de uma geração

Minha trajetória é a trajetória de uma geração, não só na Argentina mas em boa parte do mundo, porque eu nasci na profissão no começo dos anos 1990. Foi um momento em que se estavam configurando os grandes conglomerados de multimídia nos Estados Unidos, na América Latina – a Argentina foi nisso um dos primeiros países da região –, em vários países. Era um momento em que o jornalismo tradicional, os periódicos generalistas que vinham do século 19, agora modernizados, e além disso convertidos em corporações empresariais – na Argentina, o Clarín –, e inclusive as mídias que estavam ao redor desse sistema, davam a impressão de que o jornalismo era algo muito sólido.

Nós, jornalistas, acreditávamos que, como nossos antecessores, iríamos ter uma longa vida na qual essa profissão se manteria basicamente a mesma. Que conseguiríamos crescer em nossas redações – minha ambição era ser um dia uma das melhores colunistas de política da Argentina e em algum momento assumir a direção de uma redação, se fosse isso que me parecesse bom. Havia claramente uma ideologia, um final que não estava em questão.

Momento especial

Nesses anos havia, ademais, muito dinheiro no jornalismo. Houve nos Estados Unidos e na Argentina. O processo de profissionalização dos jornalistas já havia começado (na Argentina, começara nos anos 1970). Tradicionalmente, em meu país, os jornalistas eram artistas, escritores, até poetas que queriam fazer sua arte: o jornalismo era o que lhes permitia viver, mas não uma profissão em si mesma. Até que houve processos nos quais o jornalismo se converte em profissão em si mesma. Começa a haver escolas de jornalismo, que nunca antes tinha havido, não só na Argentina mas, creio, tampouco em boa parte da América Latina.

Eu sempre quis ser jornalista, embora meu pai seja engenheiro e minha mãe, bioquímica. Quando eu tinha 8 anos fiz minha primeira revista, e isso era o que eu acreditava que seria durante toda a minha vida.

O momento em que chego ao jornalismo, nos anos 1990, é na Argentina um momento muito entusiasmante para fazer jornalismo, primeiro porque havia recursos e uma mística do jornalismo. Minha redação, especialmente, era a de um pequeno diário chamado Página/12, que continua existindo, mas é uma sombra do que foi naquele momento, um jornal que modernizou o jornalismo argentino.

Página/12 combinava a ambição de investigação do jornalismo americano, o modelo do watchdog, o jornalismo que controla o poder, faz denúncias de corrupção etc. E ao mesmo tempo tinha uma posição ideológica, na tradição europeia, porque no seu início foi o diário que se apresentou à sociedade como o que estava contra o regime militar, regime que havia torturado e matado pessoas nos anos 1970, e Página/12 iria lutar para que, digamos, se fizesse justiça, se identificava com a luta pelos direitos humanos na Argentina. E, além do mais, faria new journalism, no sentido de que os textos fossem escritos com ferramentas literárias.

“Salário ambiente”

Eram muitas coisas, embora fosse um jornal muito pequeno, que tinha escassos recursos. Criou uma geração de jornalistas nesse momento muito jovens – tínhamos vinte e poucos anos, mas mesmo os editores eram muito jovens.

Todos acreditávamos que o que estávamos fazendo nesse jornal era importante e estávamos dispostos a fazê-lo por muito menos do que se pagava no mercado, porque havia aí um orgulho de fazer parte desse projeto, que não existia no resto do mercado. Mas era parte desse ecossistema que tinha, em geral, um respaldo econômico que parecia muito sólido.

Foram os anos dourados do jornalismo, no sentido de que não havia na época nenhuma instituição na Argentina com tanto prestígio quanto o jornalismo. Até o fim dos anos 1990 o jornalismo tinha uma imagem muito melhor do que a igreja, os sindicatos, a política. Todas essas instituições começaram a cair num desprestígio que terminou numa crise muito grande, em 2001.

Durante muito tempo o jornalismo se manteve muito respeitado pela sociedade, que colocou em nós, jornalistas, a esperança de que fôssemos fiscais, de que encontrássemos a verdade, fizéssemos justiça, substituíssemos as outras instituições, que não funcionavam.

Inspirar temor

Esse foi o ambiente em que vivi como jornalista. Não sei se dizer isso soa cínico, mas telefonar para um ministro que tinha 60 anos de idade e coisas mais importantes na agenda, e perceber que a voz dele tremia quando se dizia que era do Página/12, dava a importância, o valor do trabalho que se fazia.

Vinte anos mais tarde, passamos a uma situação na qual o jornalismo também caiu num grande descrédito, participou de modo muito aberto, descaradamente, da luta política direta, se tornou praticamente um partido político.

Sobre a abundância de recursos, posso dizer que vinham jornalistas europeus e americanos, e nossos salários, mesmo no meu caso e no do meu marido, Gabriel Pasquini, que estávamos no Página/12 e tínhamos um salário baixo para o mercado jornalístico nesse momento – no Clarín se ganhava três vezes mais –, ganhávamos mais do que os jornalistas europeus e, em alguns casos, do que os americanos.

Hoje, só tristeza

Vinte anos depois, muitos jornalistas da minha geração saíram dessas mídias decididos a não regressar, e quem ficou está muito triste, ou se tornou cínico e está tirando vantagem das possibilidades criadas por muita corrupção nas redações, ou permanece encostado. Uma parte da minha geração encontrou refúgio, para fazer jornalismo de qualidade, em livros e na internet.

O paradigma do jornalismo ocidental, ou de boa parte dele, foi feito em pedaços nos últimos dez ou quinze anos pela revolução digital. O modelo de negócios do jornalismo-sensação, os diários de papel, está agonizando em boa parte do mundo.

Todos os jornalistas e todas as pessoas a quem essa profissão interessa procuram entender qual é o futuro, que não é claro. Tem-se a impressão, agora, de que vai haver não um único modelo para exercer essa profissão, mas uma grande quantidade de modelos diferentes, e que se pode fazer jornalismo de modos que nunca tinham sido feitos antes. Há quem considere jornalismo uma pessoa com uma conta no Twitter. Na maior parte dos casos é só ruído, mas há pessoas que apenas com isso têm a possibilidade de ter seu próprio meio, de fazer algo melhor do que a mídia de sua cidade. Esse é um sistema completamente diferente.

Polarização nefasta

A ideia de independência e liberdade total de escrever em um periódico não existiu nunca em lugar nenhum do mundo. Cada um sabe que um jornal ou revista tem uma ideologia, ainda que se diga independente, tem uma série de regras sobre o que se pode ou não abordar. Isso não significa que não se possa publicar uma informação, trazida por um de seus jornalistas, que desagrade o periódico.

Em alguns jornais ou revistas, mais profissionais, o que se faz é não colocar essa informação na capa, mas publicá-las nas páginas interiores. Ela é dada, nem que seja porque o periódico entende que tem que dar todas as informações, sabe que será denunciado caso deixe de dá-la, que o custo público será, nesse caso, maior do que o custo de publicar. Além disso, existe uma tradição, desde há muito tempo, de ditaduras militares e de censura direta e de autocensura das mídias, e casos de jornais que foram fechados por generais. Mudar essa cultura leva tempo, e Página/12 foi um jornal que ajudou a mudá-la, porque apresentou um modelo bem diferente.

Mídia e poder

Um dos temas de investigação de toda a minha carreira foi a relação da mídia com o poder. É um assunto que me interessa muito. Na Argentina houve basicamente um padrão marcado por censura e ausência de independência e de liberdade para contar a verdade como se pode contá-la jornalisticamente.

Mas houve momentos extraordinários em que algo aconteceu – em geral, o surgimento de um jornal alternativo –, momentos nos quais havia redações em que se podia contar quase tudo, e de modo brilhante. Isso ocorreu uma vez nos anos 1960, uma vez nos 70, mais uma vez nos 80 e 90. E aconteceu de novo no fim dos 90 num jornal chamado La Nación, tradicional, conservador, de direita, digamos, quando seus donos quiseram imitar o Washington Post e se criou algo muito interessante lá dentro. Depois, essa janela se fechou.

Crise arrastou jornais

A última janela se fechou com a crise de 2001. A Argentina, não sei se todos aqui sabem – todo mundo sabe tudo sobre a Argentina, porque somos o centro do mundo… – passou em 2001 por uma das piores crises econômicas, políticas, sociais desde os anos 1930. Ainda não nos recuperamos totalmente. E o jornalismo, era natural que ocorresse, caiu, a exemplo de todas as instituições, e não se recuperou depois. O jornalismo argentino está pior do que era antes da crise.

Os jornais, durante o regime de paridade do peso com o dólar, haviam se modernizado comprando grandes rotativas, equipamentos – importados, porque não são produzidos na Argentina –, haviam contraído dívidas em dólares com bancos estrangeiros, e de repente, em 2001, houve uma desvalorização, o peso caiu para quatro por um, a publicidade derreteu-se. O La Nación, por exemplo, devia US$ 100 milhões, continuava faturando em pesos e sua receita se reduziu 45%. E para cada dólar que devia agora só tinha, digamos, 30 centavos.

Cobertura recusada

Foi uma grave crise econômica e diários como o Clarín pensaram que poderiam ter que fechar, e se aterrorizaram. Essa foi minha última experiência como colunista política. Eu escrevia sobre governo e sobre política e era uma das jornalistas mais conhecidas do La Nación, porque cobria o presidente da República. E de repente os meios de imprensa fizeram um acordo com o novo presidente, que comandou a transição após a crise [Eduardo Duhalde, 2002-3].

O presidente decidiu ajudar os jornais, mas em troca de que não fossem críticos. Foram encerradas as apurações e aos que éramos conhecidos como jornalistas críticos nos mandaram escrever sobre outros temas. No meu caso, sobre a esquerda, sobre um movimento político específico surgido na Argentina, integrado por desempregados que faziam piquetes, os piqueteiros. Esse movimento agora tem outro sentido, mas naquele momento o desemprego apresentava índices muito altos e era o problema central.

Mandaram-me cobrir essa gente, que estava em aliança com a classe média. Era algo muito novo. O jornal era contra esses grupos e queria que eu fizesse watchdog journalism em cima deles, que não tinham nenhum poder. Eu não tinha problema em olhar criticamente esse setor, mas ninguém mais ia olhar criticamente os setores adversários dele. Isso criaria um desequilíbrio e me pareceu indesejável.

Só amigos ou inimigos

Nesse momento tinham acabado de chegar ao poder Néstor e Cristina Kirchner. E, como haviam feito em Santa Cruz, decidiram dividir a mídia em amigos e inimigos. Decidiram que o Clarín, principal grupo de mídia da Argentina, seria amigo, e que La Nación seria o inimigo, não porque fosse ideologicamente o inimigo, mas porque a política, em seu modo de ver, exigia um inimigo com que se confrontar.

O que aconteceu é que, infelizmente, os meios de comunicação aceitaram esses papéis. O amigo aceitou ser amigo e o inimigo aceitou ser inimigo. E no meio não ficou nada.

O panorama da mídia desde então ficou praticamente assim: oficialistas, que se autodenominam “militantes”, e os opositores, que se chamam “independentes”. Em nenhuma das duas facções há espaço para ser crítico da facção apoiada.

Isso se traduz no fato de que não há boa informação sobre a Argentina. Quem, por exemplo, quer saber o que acontece com o default, que o governo diz que não é um default… Para La Nación, a Argentina está em default, o país se acabou, vai de novo mergulhar de cabeça numa grande crise. Se alguém lê os diários oficialistas – por exemplo, Página/12, agora –, não há default: a Argentina irá às cortes internacionais e destruirá esse “corno americano” [o juiz Thomas Griesa], que, evidentemente, é louco.

As cifras num grupo de mídia e no outro são diferentes. Não se pode conseguir uma ideia inteira sobre a Argentina juntando as duas versões dos fatos, que são completamente divergentes. Como estou fora e escrevi sobre política, sempre me procuram jornalistas estrangeiros, correspondentes, do New York Times, da Folha, do Estado, para saber o que ler, e eu digo: “Não, você tem que conseguir sua informação própria. Se você ler os jornais, não vai entender o que está acontecendo”.

Poder e empresários

Não adianta atribuir ao governo a responsabilidade maior pela situação. Isso não é responsabilidade do governo. O governo fez o que todo governo do mundo, desde que existem jornais, tenta fazer. Há um livro na Argentina, Un mundo sin periodistas [Horacio Verbitsky; o título completo é Un mundo sin periodistas: las tortuosas relaciones de Menem con la prensa, la ley y la verdad], que retrata o ideal de qualquer presidente. Se eu fosse presidente, iria querer que não existissem jornalistas. Quem quer jornalistas, ou melhor, bons jornalistas?

Supõe-se que o jornalismo cumpre uma função de controle. O jornalista está aí para impedir que a fantasia do político se torne realidade. Se os empresários de jornalismo aceitam as regras do jogo feitas pelo poder, não fica claro seu papel social.

No começo, o jornalismo não era isso, era partidário. O jornal tradicional surge como porta-voz de partidos, e na Europa continua assim. La Nación foi fundado por um presidente da República [Bartolomé Mitre, 1862-68]. O jornal era uma tribuna de doutrina. O modelo do bom jornalismo crítico é o que me interessa. Na Argentina, todos os jornais dizem que esse é o seu modelo, porque esse modelo parecia ter adquirido a consagração diante da sociedade, pelo menos na Argentina. “Temos que existir porque somos críticos do poder”, dizem, mesmo que nunca tenham sido críticos do poder.

Militância explícita

O que leva um jornalista a querer exercer esse papel social? Depende do jornalista. Há, por exemplo, uma tradição muito interessante de outro jornalismo, partidário, partidista, ou militante. Houve um grande homem, que admiro muito, Rodolfo Walsh [1927-1977], assassinado pela ditadura militar, que, como boa parte de sua geração, tinha uma ideia política a respeito da Argentina e acreditava que o jornalismo era o modo de conseguir levá-la à prática. Ele terminou sendo guerrilheiro de um grupo revolucionário armado, os Montoneros, no fim dos anos 1960 e nos 70, e tinha o jornalismo como identidade política.

Da mesma maneira que a esquerda peronista revolucionária armada, ele considerava ter essa missão, que eu não compartilho, e isso terminou tragicamente, ele pagou com a vida. Mas ele era um homem honesto que queria isso e deu sua vida para isso.

Tenho amigos jornalistas que creem genuinamente que o governo de Néstor e Cristina Kirchner foi um dos melhores da história argentina, e têm muitas razões para crê-lo. Depende de como cada um interpreta a realidade e quais são as possibilidades que ela comporta. E esses amigos são honestos.

Falsa objetividade

O que traça a linha divisória é a honestidade. Se alguém defende um ou outro paradigma, a primeira coisa que deve fazer é deixar claro que é isso que está fazendo. Ao mesmo tempo, não creio que o jornalismo possa ser neutro. Nunca as versões das histórias importantes são iguais. Há uma verdade, e o trabalho do jornalista é escutar as versões e decidir quem tem razão.

Houve um caso muito escandaloso na Argentina. Um jornalista do Washington Post, no fim dos anos 1990, quando os militares da ditadura foram perdoados com uma medida legal e havia muitas tentativas na Justiça de voltar a julgá-los, foi cobrir um caso em La Plata. Não era possível condenar os culpados, mas decidiu-se ouvir testemunhas e acusados, porque se acreditava que escutar a verdade tinha um grande valor, e de fato tinha.

O jornalista de Washington caiu lá de paraquedas e foi cobrir com a ideia de neutralidade do jornalista. Escutou uma vítima que fora torturada, escapou por milagre de morrer, esteve num campo clandestino na Argentina, e escutou o militar que comandava esse campo. Essa mulher contou o que lhe tinha acontecido e o militar disse que era tudo mentira, não admitiu nada, como fizeram sempre os militares argentinos.

Então, o jornalista escreveu: “Bem, aqui tem uma mulher que disse que lhe aconteceu isso, e um militar que disse que não fez nada. São as duas versões”. Isso não é jornalismo! Havia muitas provas de que o militar havia mentido. Sempre me pareceu um grande exemplo de que essa neutralidade não é o nosso trabalho. Existe uma subjetividade. Jornalistas que não têm uma formação política, que não têm uma ideologia, ou pelo menos uma ideia sobre o mundo, é melhor que não exerçam essa profissão.

“Odeio quem se pretende herói”

Há uma visão muito egoísta, a do jornalista como herói, que se dá grande importância. Eu odeio os jornalistas que entendem o seu trabalho assim. Creio que o que move muitos bons jornalistas são outras coisas. Uma é não gostar que mintam para nós.

É uma espécie de jogo. Há uma certa sensação de controle e justiça, mas sem seguir o idealismo que está em muitos de nós. Há ótimos jornalistas que são muito cínicos e más pessoas, fazem bom jornalismo para ganhar dinheiro, e porque não querem que os outros se deem bem – a competição faz parte desse enredo.

Eu gosto de contar histórias, a realidade me interessa muito e gosto de entendê-la. E sempre que entendo algo que está acontecendo, e o entendo como parte de minha história, meu contexto, quero contar a alguém. E quero imaginar que a pessoa a quem conto mudou de algum modo sua maneira de pensar, sua surpresa, esse momento em que o outro compreende algo que não podia explicar e, subitamente, adquire sentido.

Cobri vários governos e vi que vários jornalistas, pelo menos era assim na minha época, acreditando fazer jornalismo militante, eram usados abertamente por políticos para continuar mentindo, roubando e levando o país a se desfazer.

Mesmo quando esses políticos tenham feito coisas boas, precisa haver alguém, ao menos um grupo de jornalistas capazes de deixá-los a descoberto, tratando de entender o que, na verdade, está fazendo um político, ou um grupo que está no poder, não apenas os políticos, também grupos econômicos, os poderes do país, porque é muito difícil para a sociedade ter acesso a essas informações, mas as pessoas precisam delas para tomar decisões. Essa é uma das tradições e um dos papéis do jornalismo, e que me interessa.

Corrupção é a casca

Dito isso, há muito mais a fazer. Na Argentina se entende que o jornalista tem que investigar a corrupção. Me parece que isso não serviu para nada no país. Porque o que resulta disso é colocar a corrupção como um mal moral, quando ela o é também, mas não só.

Lembro-me de uma entrevista que fiz com um ministro do Paraguai, país que vive de contrabando e onde há todo um folclore em torno da corrupção – minha mãe é paraguaia, digo-o para ressaltar que não vai aqui nenhum preconceito. Perguntei a esse ministro sobre a corrupção e ele me disse: “Ah, querida, a corrupção é humana”.

Se não há controles, as pessoas… O poder corrompe as pessoas. Se alguém acha que são só os políticos, que tem que mostrar que tal ministro está roubando… Não digo que não seja necessário mostrá-lo, mas a única coisa que se consegue é que ele seja tirado e venha outro ministro igual, porque existe um sistema que funciona desse modo. E é preciso contar isso. Há um nível de profundidade que se precisa alcançar, ao qual não se chega apenas denunciando quantos apartamentos [o corrupto] tem. Muitos pensam assim: se não roubassem, o país estaria bem. A verdade é que não. Não somente.

Jornalismo de m…

Minha conclusão a respeito da mídia jornalística na Argentina é que durante a maior parte do tempo ela foi uma merda, com perdão da palavra. Houve apenas alguns momentos em que fez bem seu trabalho. Na maior parte do tempo, não fez seu trabalho direito.

Os últimos dez anos são um grande exemplo. Boa parte dos países da América Latina, Argentina inclusive, sofreram transformações culturais, econômicas, muito dramáticas. Disso resulta uma quantidade extraordinária de histórias para contar. A mídia fez um trabalho horrível e não contou nenhuma dessas histórias, ou mentiu sobre elas.

Havia um modelo no qual uma elite realizava, por delegação da sociedade, o trabalho de entender e explicar a realidade. Isso foi criado com um sentido de missão devida à sociedade e se converteu numa elite com um sentimento de autoimportância e separada da sociedade. Havia muitos bons jornalistas dentro das estruturas, e houve momentos em que elas funcionavam bem, mas em geral essas estruturas aspiraram a ser parte do poder. O que as fascinou foi enriquecer, ou ter poder político.

Mandar no presidente

O que isso significa, no caso do Clarín? O CEO do jornal [Héctor Magnetto] queria sentar-se com o presidente da República, sentir que tinha mais poder do que o presidente e dizer-lhe o que ele tinha que fazer, e ao mesmo tempo tornar-se milionário graças a essa possibilidade. Tudo isso é uma merda, na minha opinião. Serve muito bem para esse homem, serve muito bem à empresa, e muitos jornalistas tinham uma fonte de emprego. Mas depois… Meu pai lia o Clarín, como boa parte dos argentinos, e quando lhe perguntavam como sabia algo dizia: li no Clarín. Acreditava no que lia no Clarín. E muitas vezes era mentira.

Alguém disse que a verdade não existe. Mas a mentira com certeza existe!…

Isso não quer dizer que esses meios vão desaparecer. Continuarão a existir. Mas não poderão continuar generalistas. Talvez tenham que escolher que parte da realidade vão contar. Política e economia, por exemplo. Ou especializar-se. Em diferentes lugares do mundo, de acordo com as características locais das economias, haverá experiências muito diferentes.

Ecossistema variado

Hoje existe a possibilidade de que o ecossistema seja muito variado. E isso não pode ser mau. Agora que estamos numa transição, jornalistas dizem que é um desastre qualquer pessoa fazer o papel de jornalista. Pessoas sem experiência de jornalista dão uma notícia no Twitter e erram, porque não sabem como verificá-la. E há um procedimento, que para mim continua sendo muito eficiente, quando seguido, de como conseguir uma informação, checá-la, fazer uma interpretação, resultando daí uma versão que se aproxima da verdade.

Mas não se trata de todo mundo no Twitter, ou com um blogue, escrever sobre o governo. Cobrir o poder continuará sendo tarefa de pessoas com uma formação e com acesso. A presidente da República não vai contar o que pensa para um cidadão com uma conta no Twitter.

Nós vivemos num capitalismo de Terceiro Mundo, onde a mídia não obedece ao mercado, como nos Estados Unidos. Na Grande Buenos Aires, com 13 milhões de pessoas, há 18 jornais impressos, 55 canais de televisão, se não me falha a memória, e centenas de emissoras de rádio. Se um estrangeiro chega e toma conhecimento desses números, diz: “Como leem os argentinos! Como estão informados, que mercado de comunicação”.

Mamando nas tetas

Mas as cifras mostram outra coisa. A tiragem dos 140 periódicos que se vendem no país é 1,3 milhão de exemplares. Sessenta por cento vendem menos de 1.000 exemplares por edição. Na maioria, vivem de dois tipos de financiamento: pelo Estado, nos planos nacional, estadual e municipal, ou pertencem a empreendedores oportunistas, há um monte deles agora, que lançam periódicos ou para receber dinheiro do governo, ou para levar adiante uma batalha política, ou defender um interesse específico. São subvencionados pela política. Por isso existem tantos na Argentina.

Na Argentina começam a surgir na internet, mas ainda não surgiram propriamente, boas mídias sobre política. O que existe tem o mesmo modelo econômico que os outros. Mas acho inevitável que surjam, porque se abre um espaço, a sociedade continuará a necessitar de informação para tomar decisões. Isso é humano, é social, é parte da maneira como funciona uma sociedade. Agora são sociedades mais sofisticadas, com mais acesso à informação, então sempre haverá necessidade de se informar e saber o que acontece.

Muitos jornalistas se sentem como eu me sentia, muito frustrados fazendo o que fazem. Há muita gente capaz. Fizeram livros, por exemplo. As melhores histórias sobre a Argentina nesses dez anos foram contadas em livros e não na mídia jornalística. Se alguém quer conhecer a realidade, tem como conhecê-la.

Baixaria

Nos Estados Unidos há exemplos muito bons de pessoas que sozinhas, em sua casa, criaram sua própria mídia e conseguiram financiá-lo. Os melhores exemplos são os daqueles que conseguem ser financiados por seu público e só a ele obedecem. Mas nos Estados Unidos há uma tradição protestante de filantropia, e, além de todo mundo pagar por tudo – tudo é pago, e isso é visto com bons olhos –, há muita gente disposta a pagar para que essa mídia exista, e a pagar diretamente a quem a produz.

Na América Latina, se alguém lança um meio de comunicação e pede dinheiro, pensam que está roubando. “Você fez esse veículo para arranjar dinheiro. Por que não o faz de graça?” Produzir informação de qualidade custa muito dinheiro e o espírito da internet é que a informação é livre, gratuita. É mais fácil fazer mau jornalismo, e fazer dinheiro, com cliques, simplesmente contando histórias cômicas, piadas, do que fazer jornalismo de qualidade. É um problema que nós, jornalistas, temos que resolver.

Os Kirchner e o Clarín

Escrevi um livro chamado Pecado Original, não traduzido, conta a história da relação do Clarín com os governos, e chega rapidamente ao tema central, o conflito do jornal com os Kirchner. Néstor morreu em 2010, foi presidente de 2003 a 2008, saiu com 70% de popularidade. Em vez de tentar a reeleição, ele e a mulher desenvolveram um plano louco, que a princípio ninguém acreditava que pudesse dar certo. Resolveram se suceder indefinidamente um ao outro na presidência, até morrerem.

Se não tivesse morrido, Néstor seria agora o presidente, e as pessoas estariam muito contentes, ou melhor, muito chateadas, porque não haveria alternativa: a oposição provou ser um desastre. Não surgiu na Argentina uma nova liderança política que supere a dos Kirchner. As pessoas que os odeiam não têm candidato.

No ano que vem Cristina termina seu segundo mandato. Nesses dez anos, que serão doze, os Kirchner tiveram uma política de imprensa muito agressiva. Na Argentina não existe censura oficial de imprensa. Há muita autocensura, que é uma herança da ditadura. Os Kirchner, como eu já disse, dividiram a imprensa em amigos e inimigos e tiveram uma política de comunicação muito eficiente para eles, de acordo com a qual todos no governo, desde o presidente até o último empregado da última repartição, estavam proibidos de falar com os jornalistas dos veículos inimigos.

Se alguém trabalha no La Nación, por exemplo, em política, os últimos dez anos foram o pior pesadelo de sua vida. Porque ninguém do governo, ninguém, de nenhum ministério, atendia um telefonema seu, nem o porta-voz. Se um funcionário violava essa regra, os Kirchner ficavam sabendo e o punham para fora. Assim, em geral as pessoas tinham muito medo e não falavam com os meios de comunicação. Só os designados pelo governo podiam falar – só com os meios oficialistas.

Devo dizer que essa é exatamente a mesma política que faz Barack Obama na presidência dos Estados Unidos. No governo de Obama há uma política deliberada de falar com a mídia que publica notícias favoráveis. E de perseguir quem publica notícias desfavoráveis. Todos conhecem o caso de Edward Snowden, Glenn Greenwald está aqui no Brasil. Espionaram jornalistas. Digo isso para que não pareça que essas coisas acontecem só no Terceiro Mundo. Na verdade, é uma posição muito habitual dos presidentes, se podem fazê-lo.

Direto ao eleitor

Se estou otimista com a internet? A participação na internet também é permitida aos presidentes e aos governos, não só aos jornalistas. Obama criou sua conta no Twitter, depois [Hugo] Chávez fez a mesma coisa, Cristina [Kirchner] também, ocorreu igualmente na Europa. Os presidentes descobriram que se eles ou seus governos tivessem uma presença em redes sociais e falassem direto a seus eleitores ou à população, não necessitavam da mediação do jornalista.

Parte da razão que lhes permite não falar com jornalistas, o que não era possível antes, é que agora têm muitos outros meios de chegar a seu público, ou à sociedade, diretamente. A internet é uma faca de dois gumes, na relação do poder com a sociedade.

Correspondentes barrados

Aqui no Brasil, pelo menos a grande imprensa pinta uma Argentina na qual há um governo autoritário, censura direta na imprensa, fecham os jornais se querem fazer oposição. E não é assim. Houve essa política, que eu, como jornalista, penso que deve ser denunciada: a informação foi racionada, o governo dividiu a mídia em amigos e inimigos, e também, o que eu escrevi no livro, que aos amigos permitiram tudo, houve muitos negócios por baixo do pano. Isso também fez parte da política, deixar que alguns se beneficiassem de sua boa relação com o governo, e esses tampouco fizeram bom jornalismo, e compõem o cenário perverso que existe agora na Argentina.

Mas creio que os correspondentes estrangeiros, daqui e de boa parte do mundo, tiveram uma visão muito estreita. Uma das decisões dos Kirchner é que o governo não dá informações aos correspondentes estrangeiros. Faz dez anos que eles não participam de entrevistas coletivas, ninguém do governo toma café com eles. Só têm a oposição e os empresários que queiram falar com eles. E os jornalistas têm que escrever alguma coisa todo dia. Se eu tivesse que escrever todo dia e ninguém falasse comigo, creio que no segundo dia me poria a chorar.

A realidade, recortes, agenda

É humanamente impossível contar toda a realidade, sempre há um recorte dessa realidade. No jornalismo existe um método e uma linguagem para fazê-lo. Um dos debates interessantes dos últimos tempos é que com a perda do monopólio da verdade jornalística pela mídia e sua volta à sociedade, se reduz a importância da agenda tradicional – o que ocorre com o governo e com poder, o que acontece na economia. Agora há veículos específicos que tratam de assuntos indígenas, ou da extração mineral, um ecossistema variado.

A Agência Pública, no Brasil, por exemplo, cobre essas pautas, que os jornais tradicionais não cobriram. Mas não só porque não correspondem a seus interesses: igualmente porque acreditam que não interessa a seu público.

Quando eu conversei com os donos do Clarín, eles disseram: “Que história nós deixamos de publicar? Publicamos essa, aquela etc”. Às vezes publicam como se estivessem sendo coagidos a isso. Perante os leitores existe desonestidade. Não dizem: “Estamos nessa guerra com o governo, estamos só atacando”. Dizem: “Somos independentes”. Ou, ao contrário: é um veículo a favor do governo que diz: “Só contamos a verdade”, mas escolhe da realidade só o que é favorável ao governo.

Se eu quero escrever a favor ou contra é muito fácil. Sempre há argumentos a favor e contra. Mas a realidade é muito mais complexa. Muitas vezes acontece também essa parcialidade porque é muito difícil fazer bom jornalismo. Não é que haja uma mente maligna nos meios de comunicação – os meios acadêmicos leem assim, que ficam armando um determinado tipo de cobertura, quando muitas vezes, na realidade, o que há é que o editor se equivoca. Às vezes é deliberado, às vezes o jornalista simplesmente foi incapaz, ninguém falou com ele e não conseguiu a história.

El Puercoespín

Graciela falou também do que a levou a criar, com seu marido, Gabriel Pasquini, o site El Puercoespín, atualmente com conteúdo estático (ver “Mídia argentina tem bons jornalistas e maus empresários“).

 

Como animais

Eis a descrição do livro Estação Terminal – Viajar e morrer como animais, de Graciela Mochkofsky [e-book, tradução brasileira de Once – Viajar y morir como animales] feita pela autora:

Creio que em boa parte da América Latina, no Brasil inclusive, os trens foram importantes num dado momento. Como em todo o mundo, entraram em decadência nos anos 1950 devido ao boom do automóvel, a construção de autoestradas. Parecia que o trem era algo vetusto e seria dispensado.

Na Argentina, as redes foram sendo destruídas, os trens ficaram abandonados, e quando na Europa, nos anos 1990, se recuperaram as estradas de ferro como transporte eficiente, mais barato – porque o preço do petróleo subiu muitíssimo e não voltará a baixar – chegou o trem-bala, constatou-se que o trem é melhor para o meio ambiente, na América Latina os trens seguem condenados a ser transporte de pobres.

Mortes banais

As pessoas podem morrer, como na Argentina – não foi o único acidente –, praticando a simples ação de tomar um trem para chegar ao trabalho, algo em que não se deveria nem pensar: se sai de casa, se chega à estação, se pega o trem, se chega ao trabalho e então se começa a pensar em alguma coisa.

Em fevereiro de 2012, esse trem de que trata o livro vai entrando na estação, diminuindo a velocidade, fica a 20 km por hora, por alguma razão que nunca se entendeu e provavelmente permanecerá um mistério para sempre, deixa de frear 200 metros antes de chegar ao destino. Bate no para-choque hidráulico da estação, que não funcionava havia 40 anos, morrem 52 pessoas, há 795 feridos. E se converte numa das maiores tragédias ferroviárias da história argentina.

Pareceu-me que era muito melhor contar a história desse trem e de como se havia produzido tal acidente. Assim ficaria muito mais claro para quem lesse o livro do que relatando que sim, nos anos anteriores o funcionário dos Transportes roubou tudo o que podia, houve um monte de ações judiciais, porque era um escândalo o tanto que roubava: transportes é, pelo menos na Argentina, uma das áreas por onde passa mais dinheiro. Mas, se eu me limitasse a explicar isso, não se entenderia nada.

Modernidade arcaica

Era preciso explicar que esse trem que estava entrando na estação havia sido comprado nos anos 60. Havia sido um dos trens mais modernos do mundo, japonês, feito nos anos 50. A Argentina o comprou quando no Japão já o estavam descartando. Mas ainda era moderno.

Naquele momento, o discurso político era o mesmo que até o momento do acidente, que os trens davam prejuízo, que o governo tinha que se desfazer deles porque lhe custavam muito dinheiro e não tinham nenhuma utilidade para a sociedade.

Desde então começou uma decadência, governo após governo, algo muito surpreendente, enquanto esse mesmo trem continuava em serviço, esses vagões que se chocaram contra a estação seguiam rodando de um lado para outro, de Moreno a Once, de Moreno a Once, de Moreno a Once, muitas vezes por dia.

De vez em quando o trem enguiçava entre estações e o condutor fugia correndo, abandonava a composição no meio do nada, com medo de ser agredido pelos passageiros. E, quando isso acontecia, o trem era remendado. A política nacional era: não se sabe o que fazer com isso. E seguida levando gente. Já tinha dado o equivalente a 165 voltas ao mundo.

Metáfora da Argentina

O trem tinha originalmente cinco freios, mas nesse momento três estavam quebrados e nunca tinham sido consertados, e um funcionava com a metade da capacidade de frenagem. Tinha, portanto, um freio e meio. Os trilhos por onde andava tinham 90 anos. O trem passava e dormentes pulavam fora. De tempos em tempos, descarrilhava.

O acúmulo de problemas era tão flagrante que, na verdade, a pergunta certa seria como é que não houve mais acidentes. O milagre era que funcionassem.

E isso era uma metáfora da Argentina, num certo sentido, embora a Argentina, que veio passando por uma decadência social e cultural de décadas, nos últimos dez anos estivesse melhor em algumas coisas, está melhor do que na época da crise de 2001, quando havia 54% de pobres; agora há 30%, embora as cifras do governo… Em todo caso, não é a mesma situação. Mas o acidente mostra uma situação institucional muito trágica.

Dramatização

A ambição do jornalista é chegar à maior quantidade possível de pessoas, ou, pelo menos, chegar a muita gente de um setor, quem compra o jornal, lê na página da internet. Aprende-se que, quando se conta uma história importante, não basta fazê-lo teoricamente.

Nesta história do trem: brilho, decadência, decadência, decadência – isto não fica na memória, se for contado desse modo. O livro tem 10 capítulos muito narrativos. Se eu conto o acidente apenas como uma ideia, não vai comover ninguém, ninguém poderá ver a dimensão do horror, da tragédia, e o que significa. Mas se falo sobre gente, se faço a descrição como um conto, não no sentido ficcional, consigo comover.

Contei a história do trem como a de um personagem. Nasceu no Japão, foi usado assim, deu tantas voltas ao mundo. O acidente é narrado por nove pessoas. A primeira foi a que viu o trem entrar na estação e se deu conta de que alguma coisa estava errada. Em seguida, um passageiro do último vagão, não se acidentou mas também percebeu que havia acontecido algo ruim e conta o que se passou onde ele estava. E vamos nos aproximando do lugar mais dramático. E termina com o garoto que morre e fica esquecido, os bombeiros esqueceram um cadáver, um garoto de 20 anos, dois dias no trem.

Se isso é contado como histórias, alguém pode se comover com esses pais que buscaram seu filho durante dois dias, os bombeiros diziam que não estava no trem, e ninguém sabia onde estava seu filho, ele havia desaparecido, aconteceu que os bombeiros não haviam procurado no lugar em que esse garoto ficou apodrecendo durante dois dias. É impossível alguém ficar sabendo da história desse rapaz e não chorar. Eu tenho um filho e só a ideia…

Foi um pouco de golpe baixo, mas essa foi a história que mais me comoveu, em meio a cenas tremendas. Mas às vezes fazem falta um rosto e um sentimento, senão as pessoas não se incomodam, e creio que esse é o sentido da busca de uma expressão mais literária, porque queremos que as histórias sensibilizem as pessoas. Há algo na natureza humana que faz com que as coisas funcionem assim. Antes eram histórias contadas oralmente, depois escritas.

Contar para viver

Há uma escritora americana muito boa, Joan Didion, cuja coletânea de textos jornalísticos se chama “Contamo-nos histórias para poder viver” (tradução livre de We Tell Ourselves Stories In Order To Live). Acho que esse é o sentido do jornalismo. Hoje há mais informação do que em qualquer período anterior. As cifras da quantidade de informação disponível são impressionantes. Contar histórias é um modo de atrair a atenção e de dar sentido a toda essa informação.

Na Argentina ressurgiu um grande interesse dos jovens. Nos anos 90 se dizia, e era verdade, que os jovens tinham se desinteressado da política, eram apolíticos e cínicos, e nos últimos anos houve um ressurgimento muito visível do interesse político entre os jovens da universidade, e com um pouco mais e menos idade, jovens desde a adolescência estão ativamente fazendo política. É claramente um modo de idealismo e de interesse. Há uma produção grande em blogues, na internet, de jovens comprometidos com as coisas que fazem.