Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando não ter novidade pode ser a boa notícia

Em razão da minha pesquisa de doutorado, desde que foi divulgado o quarto relatório de avaliação (AR-4) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês), em 2007, acompanho, de forma continuada, a cobertura do aquecimento global na mídia, com especial atenção para os principais jornais, revistas e portais de notícia do Brasil. Naquela ocasião, quando os cientistas afirmaram, com 95% de confiança, que a ação humana estava alterando o clima da Terra, houve um reconhecimento político e público de que a situação era realmente crítica, e o tema ganhou um apelo midiático de grande proporção em nível mundial.

Para melhor entendimento, farei aqui uma breve recapitulação. Basicamente, o AR-4 concluiu que houve um considerável incremento das concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera, consequência principalmente da queima de combustíveis fósseis e das mudanças no uso da terra, como o avanço do desmatamento nas regiões tropicais. Essas atividades provocam o aumento nas emissões de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso (gases que, em altas concentrações, intensificam o efeito estufa natural) e colocam o homem na incômoda posição de responsável direto pelo aquecimento global, segundo a avaliação do IPCC.

Com a ampla divulgação do AR-4 na mídia, o alerta científico rapidamente repercutiu na esfera política, e o debate ganhou contornos de embate. No cerne das discussões, a responsabilidade individual (e) de cada nação, desvelada na polarização entre os países já desenvolvidos e os que seguem em desenvolvimento. Afinal, quem vai pagar a conta dos custos de redução de emissões e da adaptação necessária às mudanças climáticas globais? Essa discussão e seus corolários elevaram o tema a um dos mais importantes na agenda-setting mundial. No Brasil, em particular, o espaço dedicado às questões do clima, em diferentes vieses, é notadamente exponencial.

O interesse da nossa mídia se explica, em grande medida, pelo fato de que, na última década, o Brasil definitivamente consolidou um papel de liderança no cenário internacional, no âmbito das políticas econômicas e ambientais para as mudanças climáticas. Por sua vez, o IPCC assumiu o status de principal referência na avaliação da literatura científica sobre o tema e profissionalizou a sua comunicação em todos os níveis. Também contribui o fato de termos vários cientistas brasileiros integrando diferentes grupos do IPCC, o que, sem dúvida, facilita o acesso às informações. Todos esses aspectos devem ser considerados em qualquer análise quantitativa e qualitativa.

Fontes pouco confiáveis

No que diz respeito às controvérsias científicas, vale ressaltar um aspecto diferencial da cobertura no Brasil em relação a outros países: aqui, a imprensa costuma dar voz aos chamados “céticos” do aquecimento “antropogênico”. Nesse particular, a relação com as fontes ainda é uma das vulnerabilidades do nosso jornalismo. É que, na ânsia de abrir espaço para o contraditório, um dos princípios basilares da práxis jornalística, muitas vezes o jornalista deixa de observar (ou considerar, o que é mais grave) que a fonte escolhida não possui sequer publicação na área. Fomenta-se uma “polêmica” que não reflete as questões científicas de modo apropriado e balanceado.

Ou seja, dar voz a quem discorda ou contesta o IPCC não é o problema, ao contrário – porque, afinal, o debate é o motor para o avanço da ciência e, mais do que isso, é constitutivo do processo de produção do conhecimento. O que eu defendo é que a escolha da fonte deve observar com rigor alguns indicativos, a especialidade e publicações na área, pelo menos. Buscar o contraditório, portanto, só faz sentido se existir minimamente uma relação de paridade de certos critérios científicos entre as vozes dissonantes. Já vi cientista refutar o papel da Floresta Amazônica como reguladora do clima global sem nunca ter pesquisado ou publicado sobre a Amazônia.

Outra característica importante que observo na nossa imprensa é a dificuldade de incorporar as incertezas inerentes ao método científico. Se, por um lado, é inegável o amadurecimento do jornalismo especializado em ciência, por outro, a cobertura continua deslizando nesse objeto. Uma razão pode estar no fato de que a estrutura canônica do jornalismo preconiza exatidão, e formulações sugerindo uma ciência absolutamente precisa sejam uma maneira de (tentar) resguardar o jornalista. O problema é quando surgem dados novos e eventualmente conflitantes, que são interpretados – e alardeados – como “erros”, não como aprimoramento da ciência.

Ciência do apocalipse

Foi com alarde, aliás, que a mídia noticiou as conclusões do AR-4. De um movimento interpretativo sem precedentes na cobertura de ciência sobre meio ambiente, anunciou um futuro “sombrio” e “catastrófico” para a Terra. Segundo as “previsões”, muito mais dos jornalistas do que dos cientistas, estava decretado o apocalipse (página dupla da revista Veja falou em “Apocalipse Já”, para citar um exemplo). O que o AR-4 do IPCC denominou de processo “inequívoco” (a responsabilidade do homem pelo aquecimento do planeta), a mídia leu e deu a ler como “irreversível”, deslizando para sentidos como “sombrio”, “catastrófico” e outros correlatos.

O teor alarmista, e muitas vezes sensacionalista, predominou na cobertura pós-2007 até a divulgação do AR-5, em setembro do ano passado. Havia grande expectativa de que este fosse ainda mais contundente em suas conclusões. Não foi, e tivemos uma repercussão insossa e pouco analítica. Porque, para determinada concepção de notícia, o AR-5 “não trouxe novidades”. E eis aqui o ponto que eu gostaria de ver debatido no campo jornalístico: o fato de não termos tirado proveito desse aspecto, na minha opinião, positivo, das conclusões do AR-5. O que deixamos de explorar ao limitar a importância de dado acontecimento àquilo que é “novidade”?

Vamos por partes. A ciência do clima avançou muito de 2007 para cá. Para ter uma ideia, no AR-5 foram utilizados 47 modelos climáticos, cada um deles muito mais sofisticado do que os 17 usados no AR-4. Verificou-
se que os valores calculados para o aumento de temperatura são muito similares entre um relatório e outro, o que indica solidez nas projeções já feitas em 2007, com a vantagem de um grau maior de sofisticação das análises (talvez isso explique a redução do espaço aos céticos). Obviamente, isso não quer dizer que as conclusões do IPCC são definitivas. Até porque os fenômenos naturais também podem sofrer mudanças ao longo do tempo.

Mas por que, afinal, eu vejo a “ausência do novo” como positiva? Porque nos instiga, como jornalistas, a uma reflexão sobre a concepção de (e da) notícia e o seu impacto social. A similaridade dos valores em ambos os relatórios aponta para uma situação que carece de mobilização e medidas globais, e é sim um indicativo de robustez do atual estágio do conhecimento sobre o clima da Terra. Nesse caso, no news, good news. Seja como for, interpretar dados científicos é ter (e, no caso da mídia, promover) a compreensão de que a ciência, como processo em construção, não tem o dever nem o poder de ser irreparável e imutável. Quando vencermos essa etapa, a cobertura jornalística dará um grande salto.

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Ana Paula Freire é jornalista e analista em C&T no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN-CNEN/MCTI), doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)