Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quem segura este homem?

A Veja São Paulo dedica esta semana a capa a um fenômeno que não acontece em São Paulo, mais que é um reflexo da vida dos paulistanos de forma similar, para dar um exemplo, às matérias sobre compras em Orlando. O texto cuja chamada de capa é “O médium do povo (e dos poderosos)” descreve o que acontece em Goiás, onde um tal João de Deus – longe de ser um João Ninguém – engana aos ricos paulistanos com as suas curas milagrosas. João Teixeira de Faria é um homem de 74 anos com medo de morrer, como ele mesmo reconhece. Porém, de alguma maneira é um gigante que Veja não teve coragem de enfrentar. Ou será um sinal de que a imprensa perdeu a consciência das consequências de seus atos?

A reportagem (ver aqui) tem um fraco tom de crítica na área que a revista domina, o dinheiro. Informa que o homem que atende 5000 pessoas por semana é dono de um avião, fazendas de garimpo de ouro, gado, soja e 28 imóveis, para mencionar apenas os que estão ao nome dele em Abadiânia (GO). O repórter testemunhou maluquices como “cirurgias” com facas e tesouras sem anestesia, mas das medidas de prevenção de infeções a matéria não fala: as técnicas do açougueiro não são o foco do texto. Como o curandeiro pede aos incautos para não deixarem os tratamentos habituais, e além disso não cobra honorários, apenas aceita doações, tudo parece bom. Mais não é. Pelo contrário, o assunto é muito grave.

Dois pesos, duas medidas

Na matéria de capa da Veja da mesma semana, na linha do “quem segura esta mulher?” (“Como Dilma Rousseff e Aécio Neves vão tentar frear Marina Silva”), pode-se ler:

“O mais espantoso não é Marina Silva fazer campanha com a promessa simplória de liderar as forças do bem… contra as do mal… O espanto está em as pessoas… acharem que vale a pena dar-lhe uma chance. Marina precisa mostrar como e com que equipe pretende administrar o Brasil.”

A pergunta que não cala é: “Quem segura este homem?” Por que não é preciso demostrar nada? Por que não se tem o mesmo cuidado com os milhares de pessoas que acreditam no falsário de Goiás? Mesmo que o jornalista mostre no texto que João de Deus está longe do desapego material, o fato é que, de forma geral, fica a ideia de que ele está autorizado a nos enganar e é perdoado porque representa o sonho de saúde de muita gente. Pelo presente e futuro do Brasil, é preciso que a imprensa aja como monitor do poder – e também dos curandeiros.

O poder dos vendedores de sonhos é muito grande. Um oncologista renomado do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, é citado na matéria, dizendo: “Cerca de 60% dos meus pacientes procuram terapias alternativas durante a quimio e a radioterapia”. Não está na hora de o jornalismo chamar à razão? Se a banalidade da corrupção não é mais aceita, se a frase “a política se faz assim, porque sempre se fez assim” já não tem mais cabimento, por que continuamos a aceitar outras mentiras? Por que não existe a condenação social dos médicos feiticeiros? Por que ninguém segura esse homem?

O assunto não é novo, e as desculpas são sempre as mesmas. Começando pelos que acreditam que cair na rede da fé é uma escolha das pessoas. Errado. As pessoas que procuram esse tipo de “ajuda” são vulneráveis, estão desesperadas. Para concretizar essa e outras curas miraculosas, muitas se endividam, colocam-se em risco. Dar ou não difusão não teria de um dilema, porque o dano de difundir inverdades é feito, em primeiro lugar, nos pacientes, mas também na sociedade toda. A imprensa deve ter um padrão único de qualidade, separando – como se propõe fazer na política – a medicina dos enganos.

O melhor do texto sobre do guru de Goiás é a confissão do autor, no último parágrafo da matéria:

“Deixei o centro com poucas certezas, mas com um desejo: não precisar retornar a Abadiânia, principalmente após as repetidas previsões de João de Deus, meio em tom de autoajuda, meio em tom de ameaça: ‘Veja lá o que vai escrever. Você ainda vai voltar aqui para tratar de um parente muito próximo’.”

O jornalista tem que superar os seus medos e dizer: “Caro leitor, cara leitora. Se tiver câncer e o seu dinheiro sobrar, não gaste os seus reais em ilusões infundadas. Faça o seu tratamento direitinho e, se quiser aumentar as chances de viver por muitos anos, procure o que esteja cientificamente comprovado. Há ainda a muito a fazer, e com menos dinheiro”.

No caso da Veja São Paulo, se a revista quiser participar da maratona da vida dos seus leitores, para dar o exemplo tem que liderar uma campanha para limpar o ar de São Paulo. Está cientificamente comprovado que nos próximos anos uma cidade menos poluída vai ser imprescindível para que as pessoas não caiam, uma após a outra, nas garras do câncer. E, logo depois, dos curandeiros.

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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia. Medicina para jornalistas – jornalismo para médicos