Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Arma de papel

A existência de imprensa livre e independente é um dos pilares da democracia. Só o regime do pluripartidarismo, da alternância no poder através da manifestação direta do povo, da tolerância às minorias, da amplitude ideológica e do direito à informação e à crítica convive com a imprensa como veículo da opinião pública. As ditaduras a detestam.

Mas pode acontecer de em plena democracia a imprensa se desnaturar, transformando-se na gazua simbólica que, na sua forma concreta, os meliantes manejam para sujas ações ofensivas. Quando acha que tudo pode e que não deve satisfação dos seus atos a ninguém, nem à sua própria história, a imprensa se torna um perigo para a democracia. Seu maior objetivo é satisfazer os interesses particulares dos seus donos e manobrar a opinião pública para enganá-la, impedindo-a de ver os fatos, de discernir a verdade.

É a situação da grande imprensa no Pará dos nossos dias. Ela busca obsessivamente conquistar mais poder, passando por cima de todas as barreiras pelo caminho e se empenhando em esmagar os adversários ou até os personagens realmente independentes, dispostos a mostrar a nudez do rei se o rei está efetivamente sem roupa.

Não há muita surpresa em que o Diário do Pará se comporte como um veículo de partido. Seus dirigentes e editores bem que tentam a profissionalização da empresa, mas quando o poder da família Barbalho está em jogo numa eleição, o jornal passa a ser o abre-alas da política familiar. Sucumbe à vontade soberana do seu dono principal, o senador Jader Barbalho, do PMDB. Chega aos limites da resistência como empresa de mercado e, argolado pela imposição do patrão, passa a depender de uma vitória eleitoral para recuperar forças e ir em frente.

O Liberal podia se transformar no polo oposto, no antípoda. Desde 1966 não é um jornal partidário. Quaisquer que tenham sido e continuem a ser os recursos que utilizou, tornou-se uma empresa. Mas sem estar ligado a um político (e que político!), como o seu concorrente, O Liberal é um órgão governista, só menos competente do que o Diário Oficial do Estado.

Seu principal executivo, Romulo Maiorana Júnior, quer ser um potentado, não apenas um empresário merecedor de respeito e admiração por sua capacidade de empreendedor. Ele quer que todos os poderosos o consultem e os demais o temam; que sua palavra seja recebida como ordem ou condição. Parece jamais ter absorvido o fracasso como político, que tentou ser, ainda jovem, filiando-se ao PMDB sob o patrocínio do governador Jader Barbalho, no seu primeiro mandato, vejam só! O notório tino comercial de Romulo Jr. não se estendeu à política – e, talvez, a nada mais. Ele, no entanto, insiste em ser tratado por estadista, luminar, homem poderoso.

Nas matérias a seguir, mostro exemplos das atitudes do jornal incompatíveis com sua razão de ser e com o importante papel que podia desempenhar na conjuntura paraense como publicação autônoma, capaz de realizar aquilo que está ao seu alcance: a aproximação dos seus leitores da realidade do cotidiano e da consciência da história. Pelo contrário: O Liberal e Diário do Pará, nascidos nas mesmas entranhas baratistas, são faces da mesma moeda, como a seguir se verá.

1. A submissão dos Yamada

O “Repórter 70”, a principal coluna de O Liberal, deu uma lição, na edição dominical do dia 17 de agosto, de como o jornalismo pode ser reduzido a instrumento a serviço dos interesses dos donos da empresa jornalística, sem a menor consideração pela opinião pública.

A lição começa logo com a nota de abertura da coluna:

“Não passam de boatos os rumores sobre a suposta venda do Grupo Yamada, que, ao longo dos seus 64 anos, mantém solidez comprovada, no mercado paraense e nacional, como a primeira e maior empresa de varejo da região Norte. Para os inescrupulosos de plantão, vale lembrar que o grupo hoje contribui para o crescimento do PIB do Estado e ainda gera 8 mil empregos diretos”.

Boatos sobre a venda do grupo circulam pela cidade há meses, mas foi o mesmo “Repórter 70” o primeiro a lhe dar forma impressa. Até anunciou o valor da transação, de 1,5 bilhão de reais, em uma nota sem o mesmo destaque. Um jornal sério teria procurado informações junto aos donos da corporação ou seus porta-vozes. Dispondo de uma boa fonte independente, poderia ter aprofundado o assunto, que é de relevante interesse público. Mas O Liberal se limitou a morder. Até surgir, agora, a oportunidade para soprar.

A nova nota apenas reproduziu alguns dos dados publicados adiante, na mesma edição, em anúncio de meia página (faturado, portanto), no qual o grupo Yamada afirma que “não está à venda”. Assim, desmente “o boato que circulou nos últimos dias sobre uma suposta venda da empresa”. E garante: “Jamais houve negociação nesse sentido. Nenhuma empresa do Grupo Yamada está à venda”.

O boato circula há muito mais tempo do que informa o anúncio. E ao sair no “Repórter 70”, passou a ter existência formal. Por que só agora a corporação se manifestou a respeito? Não levou muito tempo para reagir? É por defender “a verdade acima de tudo”? Ou há fatores que não foram trazidos a público, que, segundo a peça publicitária, inclui os impressionantes “mais de 2 milhões de clientes do Cartão Yamada”?

Eu podia interpretar a iniciativa dos Yamada como resposta a uma matéria publicada na edição 565, da 2ª (saiu erroneamente como uma inexistente 5ª) quinzena de julho do Jornal Pessoal, que começa assim:

“Uma onda de boatos sustenta que o grupo Yamada, o maior de varejo do Pará, estaria sendo comercializado com compradores de fora. Dentre eles, o Carrefour, Magazine Luíza e Casas Bahia. O valor da venda seria de 1,5 bilhão de reais, segundo nota publicada em O Liberal. O jornal dos Maiorana vem espicaçando os Yamada, talvez mirando em Hiroshi, por seu relacionamento próximo aos Barbalho”.

Na mesma matéria informo que os sócios decidiram se manter fora da política, em decisão tomada na última assembleia geral extraordinária,. A diretriz contrastava com a candidatura do seu segundo principal executivo, Fernando, vice-presidente do grupo, de participar da eleição deste ano como primeiro suplente do ex-vice-governador Helenilson Pontes, que disputa a vaga única do Senado pelo PSD, com o apoio de Simão Jatene.

Haveria, assim, uma relação de causa e efeito entre a notícia deste jornal e a reação dos Yamada? Talvez, mas nem tanto. Nenhum dos dirigentes da empresa, se leu o JP, como parece, teve a gentileza de mandar o anúncio para este jornal, que o noticiaria sem cobrar qualquer coisa, já que é diretriz editorial desta “casa” não aceitar publicidade.

Como a matéria aqui publicada fazia referência à nota anterior de O Liberal, seria prova de apreço pela verdade entre as partes que o jornal não atribuísse a terceiros metafísicos o que é de sua responsabilidade, como se nada tivesse a ver com a epidemia de boatos. A empresa não poderia ignorar quem serviu de fonte para a multiplicação de boatos por ela considerados infundados.

As duas partes se contradisseram e negaram o que afirmaram. Logo, sua credibilidade deixa de ser absoluta. Precisa continuar a ser questionada até que todas as informações estejam disponíveis e se saiba a verdade e as suas circunstâncias, provavelmente ocultadas por ambas.

Até por uma questão de autodefesa, O Liberal devia ter checado o que já divulgara como nota solta. Preferiu, como sempre, parar no anúncio pago. Já o grupo Yamada conseguirá estancar os boatos com seu prolongado silêncio? Os boateiros não poderão interpretar que só decidiu desmentir as notícias sobre a venda porque os entendimentos não deram certo?

O tema é melindroso, mas seu interesse para os paraenses se justifica por se tratar do 1º e maior grupo varejista em supermercado do Estado, maior contribuinte de impostos do comércio, com faturamento de 1,8 bilhão de reais por ano em suas 36 lojas, com 8 mil funcionários. São números de impressionar, especialmente ao declarar que mais de dois milhões de clientes possuem o cartão de crédito exclusivo da empresa.

O Pará tem aproximadamente oito milhões de habitantes. Logo, um quarto deles é constituído por “gente boa”, com seu cartão Yamada. Quase 2,5 milhões dos paraenses têm menos de 14 anos, provavelmente sem seu cartão. A população em idade ativa é de 5,6 milhões e a verdadeiramente em atividade, de 3,4 milhões. Ou seja: dois terços dos cidadãos que trabalham e recebem remuneração circulam por aí com seu cartão Yamada. É uma façanha de dimensão nacional e internacional. Justifica-se dessa maneira a intensidade da boataria quando alguém apregoa e um jornal como O Liberal publica que essa empresa tão poderosa está sendo negociada. Ou se satisfeito.

Só a nota do dia 17 e o anúncio pago que a embasou dificilmente terão a capacidade de estancar essa hemorragia de especulações. Pode ser até que a estimulem, ainda que não mais na forma impressa do jornal, que pode ter-se exaurido.

2. A orla e o feitor imobiliário

O jornalismo como negócio (ou coisa ainda pior) é exercido na nota seguinte do “Repórter 70” dominical do dia 17/8:

“Em uma roda num restaurante do Boulevard Shopping, na sexta à noite, a ‘inércia’ do prefeito foi assunto contundente por não ter punido os culpados pela construção do edifício Premium, dentro da baía do Guajará. Um dos empresários enfatizou que ‘é uma indecência passar pela Pedro Álvares Cabral e ver aquilo’. É como construir um prédio em frente ao Copacabana Palace, nas areias de Copacabana, comparou.”

A nota é anônima, mas o estilo é conhecido e fez escola. Quando redator da mesma coluna, Hélio Gueiros era contumaz em atribuir a “uma roda” (geralmente na Assembleia paraense) comentário ou crítica que eram dele mesmo.

O que o prefeito Zenaldo Coutinho devia fazer para não merecer a condenação “contundente” do suposto empresário por sua “inércia”? Como podia punir culpados se ainda não está provada a infração e, por consequência, seus infratores? Se ainda falta a plena caracterização de o Premium ter sido construído dentro do leito da baía, o que, se existir, deixará outras construções em condição ainda pior?

O Copacabana Palace foi construído sobre as areias de Copacabana. Sobre elas foi aberta a avenida em frente ao hotel, a Atlântica, que, depois, foi alargada, sempre avançando sobre a areia, que também avançou sobre o mar, conquistando uma faixa de domínio sequer imaginável por quem circulava pelo ambiente original. Hoje a praia é mais larga do que antes, assim como a avenida e a calçada. Tudo conforme uma diretriz urbana. Diretriz que pode ser adotada em Belém.

Ela pode resultar de dois ensaios. Um: desapropriando e pondo abaixo todas as construções feitas irregularmente na extensão do litoral da cidade, com seu prolongamento a Icoaraci. O outro: admitindo a situação dada e abrindo uma nova via pela orla, que avançaria sobre a baía para permitir a total visualização do rio e seu pleno uso. Neste caso, além da verba oficial para a obra, a prefeitura cobraria uma taxa de serviço dos que já estão instalados na beirada e estabeleceria como regra um termo de compromisso com os prédios localizados mais para trás, numa faixa de 500 metros a partir da linha d’água. Eles contribuíram para financiar essa via litorânea, que, a partir daí, seria rigorosamente respeitada, sem qualquer exceção.

E a realidade se acomodaria a essa nova paisagem, como aconteceu em Copacabana, sem que a comparação indevida beneficie o dono do grupo Liberal e da incorporadora que ergue seu espigão de concreto (muito lentamente) atrás do Premium. Sem concordar em refazer o mundo para beneficiar seu empreendimento imobiliário.

3. Shopping: um deserto

O redator do “Repórter 70”, que ouviu a conversa sobre o “assunto contundente” numa sexta-feira à noite e conseguiu colocar a nota na sempre antecipada coluna de domingo, saiu do local com outra observação: “O Boulevard Shopping resolveu importar o verão de Salinas e Mosqueiro para dentro do shopping. A temperatura no local está normalmente entre 40º e 50º”.

Aí deve ter algum conhecimento de causa. Nesse shopping o diretor industrial de O Liberal, João Pojucam de Moraes Filho, possui uma franquia do café do Ponto, frequentado pelo seu chefe, Romulo Maiorana Júnior, e sua trupe. Por isso as reclamações são constantes e, se comprovadas, justificadas. Quem de direito pode ir lá no shopping com seu termômetro para ver se aquilo virou deserto?

4. Cabeça para rolar

O redator anônimo do “Repórter 70” prosseguiu, na coluna dominical, sua campanha contra a secretária de Indústria, Comércio e Mineração, Maria Amélia Enriquez, vítima de observações até deselegantes, além de agressivas. Desta vez, a alfinetada – novamente anônima – foi a seguinte:

“O que se diz é que a nomeação da empresária Ciane Barros como secretária-adjunta da Seicom foi decisão pessoal do governador Simão Jatene, depois de ouvir empreendedores da região nordeste do Pará. Eles propõem que a área de Produção do Estado se ocupe de uma estratégia definida: aumento do PIB e criar ambiente favorável e logística para atração de novos negócios. Para o governador, também é uma forma de colocar a Seicom nos trilhos”.

Ora, se o governador fez o que o jornal lhe atribui e diz que sua secretaria está fora do eixo, por que não demite a titular do órgão, ao invés de criar-lhe um cabresto? O que estaria errado na Seicom? Por que ela desagrada especificamente os empresários da região nordeste do Estado que seria o principal que seia o principal reduto eleitoral do governador??

Parece mais maldade proposital contra a secretária ou, quem sabe, idiossincrasia do dono do jornal, que eventualmente pode ter sido desagrado por algum ato de Maria Amélia. Ela é uma técnica respeitada e foi sob a sua gestão que saiu o Plano de Mineração do Estado do Pará (2014-2030), que merece uma análise especial.

Se o governador não aprova o trabalho da secretária e quer mudar a direção da Seicom, que aja às claras. Ou não deixe que O Liberal faça o seu jogo sórdido para destituí-la.

5. O Ibope está aprontando?

Por fim, na análise das perfídias e recados do “Repórter 70”, fica para o fim o final da coluna do dia 17/8: “O confiável Ibope sempre aprontando das suas…”.

“Mon Dieu”, reagiria Molière, mexendo-se na sua gloriosa sepultura. A pesquisa foi encomendada ao Ibope pela TV Liberal. Se a emissora ou o jornal da família Maiorana têm motivos para desconfiar da seriedade ou lisura da pesquisa eleitoral, por que divulgá-la? E se são obrigados – pela TV Globo – a fazer a pesquisa, a contragosto, por não satisfazer aos seus desejos e aspirações, por que não explicitar as restrições feitas numa linhazinha da coluna?

Trata-se de pura molecagem e irresponsabilidade do jornal. A opinião pública tateava às cegas entre as propagandas, discursos e informações dos candidatos, sem uma pesquisa independente e de confiança. Vem o resultado da primeira pesquisa do Ibope, divulgada no sábado pela TV Liberal e no domingo pelo jornal, e o “Repórter 70” insinua que o instituto sempre fica “aprontando das suas”?

O que entender desse modo de proceder estapafúrdio, incongruente e irresponsável por parte de quem divulga a pesquisa e logo a desacredita, de forma tão pouco profissional? O assunto é sério demais para ficar nos padrões de O Liberal, que, como visto por uma única edição do Repórter 70, perdeu o controle sobre os seus abusos e o senso elementar de realidade.

Com a palavra, para definir o caso, os analistas de comunicação social e os psiquiatras.

PS: em seguida conforme se esperava, o jornal recorreu ao instituto Sensus para tentar desacreditar ainda mais o Ibope e favorecer o governador Jatene.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal; seu blog