A jornalista Vera Guimarães Martins, ombudsman da Folha de S. Paulo, publicou na edição de domingo (14/09/2014, p. A6) uma coluna das mais relevantes, do ponto de vista do papel da mídia tradicional nas eleições em curso. A pauta era nada mais nada menos que a “bombástica” denúncia da revista Veja, que publicara em sua edição passada (5/9/2014) reportagem de capa intitulada “O delator fala”, anunciando um novo escândalo envolvendo a Petrobras (com uma suposta lista de três governadores, seis senadores, um ministro e 25 deputados federais). O texto de Vera é uma crítica contundente à forma pela qual a Folha “mesmerizou” a tal “reporcagem” citada: “Além da unanimidade das manchetes, havia conformidade na origem”, registrou.
Li e procurei observar diferentes análises a respeito do tema, tanto no Observatório da Imprensa quanto em blogs cujo objeto é a crítica de mídia. “Como era de se esperar, o texto não tem nem uma mísera prova e está jogado naquele apagão de fontes que, desde 2003, caracteriza o jornalismo denunciativo de boa parte da mídia nacional”, escreveu Leandro Fortes, no Portal Viomundo (leia a íntegra aqui). Para Fortes, “a matéria elenca números e nomes sem que nenhum documento seja apresentado ao leitor, de forma a dar ao infeliz assinante uma mínima chance de acreditar naquilo que está escrito. Nada. Nem uma fotocópia do cabeçalho do inquérito da Polícia Federal” (fonte cit.).
A análise de Fortes coincide com a visão crítica do jornalista Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa: “Inconcebível e indesculpável é que o grosso da grande imprensa tenha embarcado cegamente numa perigosa aventura em que o seu prestígio e credibilidade podem ficar seriamente comprometidos. Com o grosseiro compartilhamento de informações desprovido de qualquer complemento investigativo, a fina flor da nossa mídia atrelou-se a um modus operandi que em seminários e ágapes corporativos geralmente desaprova. Nivelou-se por baixo sem constrangimento e sem vacilações” (ver aqui).
“Sucessão de escândalos”
Em sua coluna, a ombudsman assinalou com transparência:
“O texto da Folha teve o cuidado de registrar a falta de provas documentais. Na terça (09/09), o principal editorial recomendava cautela e apontava as fragilidades das informações. Ainda assim, foi manchete. Por quê? (leia a íntegra aqui).
Vera Guimarães vai ao detalhe técnico, apontando que nesse tipo de situação a prática do jornal é dar chamada na capa, sem jamais atribuir o peso de uma manchete de cinco colunas. Em sua leitura, um tanto contraditória, se o interesse da mídia corporativa foi prejudicar as candidaturas Dilma Rousseff e Marina Silva, acabou dando um tiro n’água. A par de reconhecer o que ela chama de “luta pelo protagonismo noticioso” (a mística do “furo”), Vera arremata:
“Minha avaliação é que faltou cautela. Se, como disse o editorial, a pilhagem da Petrobras é plausível, o malogro de investigações potencialmente explosivas como esta costuma ser ainda mais plausível” (fonte cit.).
É óbvio que a ombudsman não avançaria além da linha de sobrevivência de seu veículo, considerando a deterioração de um ativo indispensável à existência da imprensa na sociedade contemporânea: a credibilidade. Uma pesquisa realizada pelo European Communication Monitor, que ouviu 2.777 profissionais de comunicação organizacional de 42 países do continente, aponta que “a grande imprensa cada vez mais se torna menos relevante para esses profissionais” (leia a íntegra da notícia aqui). O estudo coordenado pelo Ansgar Zerfass, da Universidade Leipzig, foi divulgado em julho passado, e traz uma conclusão contundente que dialoga com esse tipo de situação aqui criticada por Fortes e Dines: “A principal razão para a perda de relevância da grande imprensa está mesmo na sua falta progressiva de credibilidade” (fonte cit.).
Nesse sentido, Fortes também conclui sem meias palavras:
“O esqueminha de repercussão, aliás, continua o mesmo: sai na Veja, escorre para o Jornal Nacional e segue pela rede de esgoto dos jornalões diretamente para as penas alugadas de uma triste tropa de colunistas. Embrulhado o pacote, os suspeitos de sempre da oposição se revezam em manifestações indignadas e em pedidos de CPI (fonte cit.)”.
Dines acrescenta:
“A sucessão de escândalos envolvendo a Petrobras não pode servir de paradigma para um vale-tudo que empurra o nosso jornalismo para os padrões das redes sociais, e dos quais dificilmente se libertará”.
Três semanas
O “jornalismo padrão redes sociais”, ao qual se refere o decano Alberto Dines, tem servido para abrigar toda sorte de desatinos que, a médio e longo prazo, dilapidam a imprensa como patrimônio cultural e político da sociedade. Ao preferir o jogo político, agindo como se fora um partido político e jogando sobre a mesa todo o seu ativo de credibilidade pública, a imprensa como instituição presta, dia após dia, um desserviço à sociedade e ao futuro da democracia.
Afinal, pelo menos em tese, vivemos em um Estado de Direito, no qual vale o princípio da presunção de inocência: ao acusador (no caso Veja e demais veículos a reboque), o ônus da prova. Ainda temos três semanas até o primeiro turno e muita lama ainda vai passar nesse esgoto a céu aberto chamado mídia tradicional. A ver.
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Samuel Lima é jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).