Com o espaguete do Pasquale enrolado no garfo, Eugênio Bucci provoca: “Por que você não escreve sobre as coisas que o jornalismo não pode perder, se quiser ter um futuro?” E, com a voz, sublinha o quiser, num sentido condicional e tom receoso.
Eugênio e eu conversamos bastante sobre isso. Temos os dois algo em comum: somos ao mesmo tempo muito otimistas e muito preocupados.
Sou otimista porque vejo o jornalismo se confirmar, com o passar do tempo, como uma atividade essencial – não vou nem mais dizer para a sociedade e para a democracia, mas para a vida humana, correndo aqui o risco da presunção com que somos, por vezes, rotulados.
Mas tenho estado, assim como o Eugênio, também preocupado. Devo acrescentar que mesmo minha preocupação é contaminada pelo meu otimismo. Quero dizer: o jornalismo tem, sim, brilhante futuro, desde que – e aí volta o grifo – levemos para o futuro certas coisas na bagagem.
Há uma interessante sensação ao viver nessa faixa dos 50 e poucos anos. O passado não está tão distante, embora já seja um álbum nítido e com as páginas iniciais um pouquinho amareladas. Mas cérebro e corpo sinalizam vontade e força para pensar e caminhar em direção ao futuro. O pra trás e o pra frente parecem razoavelmente simétricos. E isso numa geração que viveu o maior salto tecnológico da história – meus filhos têm dificuldade de me imaginar escrevendo numa Olivetti com três folhas de papel-carbono, ajustando com o estilete uma página no paste-up ou perfurando um maço de cartões IBM.
Esse estágio intermediário da vida traz certa sensação de poder, digamos, projetivo. Se conhecemos até aqui o gráfico das coisas, temos em tese a capacidade de arriscar ao menos para onde a curva aponta?
No campo do jornalismo, essa sensação fica reforçada com a leitura da tese-pesquisa transformada em livro, com a qual o historiador inglês Peter Burke obteve em 2002 o título de doutor pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e editada no Brasil em 2004 pela Jorge Zahar Editora sob o título Uma História Social da Mídia. Num trabalho exaustivo e minucioso, Burke mostra com clareza como se sucederam os ciclos de desenvolvimento do que hoje chamamos de mídia, desde a prensa de Gutenberg até a internet, e como certas essências se mantiveram ao longo da história.
O que parece mudar, a partir de agora, é que os ciclos estão ficando muito mais curtos. As novidades duram menos. Certas redes sociais já são tachadas de velhas. O frenético ritmo tecnológico torna os early-adopters insaciáveis.
Os ciclos cada vez mais curtos irão contribuir para confirmar ainda mais as essências, consolidando a nossa convicção de que há mesmo um conjunto de coisas que nunca, com grifo, deveriam mudar? Ou tudo isso aqui é mais um claro sintoma de que somos, na verdade, resistentes, e seremos rapidamente ultrapassados?
Fica essa dúvida, mas vale o desafio do espaguete:
1. Manter viva a atitude jornalística
A atitude jornalística é aquela que nos impede de ficar satisfeitos com o que nos é mostrado. É a comichão típica do bom repórter. É o que nos faz tentar revelar o que está oculto – ou, mais importante ainda, o que quer ser ocultado. É o que nos faz sempre formular uma pergunta a mais. É o que nos mantém permanentemente insatisfeitos. Tenho insistido nessa tecla nos cursos para recém-formados. Essa característica marcou décadas e gerações em sua escolha pela profissão. É preciso transportá-la para os futuros profissionais. E trabalhar para que a sociedade – cidadãos, governos, empresas – a reconheça como uma disciplina e um atributo indispensável à transparência e àquilo que Carl Bernstein chamou de “busca da melhor versão possível da verdade”.
2. Não perder a humildade
Princípio antigo, revisto e reiterado nestes tempos em que os meios digitais nos reforçam a sensação de poder. Não há antessala de erro grave mais eficiente do que a arrogância. Esse é o princípio que nos estimula a ouvir, ouvir, olhar, ouvir, pensar antes de escrever, antes de postar, antes de a-postar, perguntar de novo, olhar de novo, pesquisar mais uma vez. Perseverança e paciência complementam.
3. Aprimorar o método jornalístico, sempre, especialmente com as novas tecnologias
O rápido aparecimento de novidades de acesso e processamento de dados, edição e interação propicia resultados ultravelozes. Em segundos temos planilhas orçamentárias ou de assiduidade de deputados convertidas em lides e tendências. Parece que o trabalho acabou, quando ele apenas começou. A contribuição das novas ferramentas para a precisão, a profundidade, a checagem e o cruzamento de informações ainda é terreno a ser mais bem explorado.
4. Aplicar velhos métodos em novas situações
Um vídeo apócrifo circula pela internet, mostrando políticos em situações embaraçosas. Uma foto é postada apresentando uma jovem brasileira supostamente atacada por skinheads nos arredores de Zurique, Suíça. (De tão exemplar, esse caso virou estudo em sala de aula.) O que ocorreu? Quem estava ali? Quem clicou a foto ou fez a filmagem? Quando, em que circunstâncias? As regrinhas básicas do primeiro ano de qualquer curso de jornalismo que se preze ajudam, e continuarão ajudando muito.
5. Incorporar as novas narrativas em prol dos objetivos finais de uma reportagem: o furo, o lide, o ambiente, a luz sobre os fatos, o servir ao leitor
Nas décadas de 1980 e 1990, fizemos nas redações um enorme esforço (também acompanhado de enormes tensões) para integrar texto, foto e arte. Esses dois últimos elementos de edição se consolidaram como editorias transversais no processo jornalístico: estão a serviço e imbricadas com todas as demais. Lá naquele início, usamos fotos e quadros apenas como ilustração, e isso já tinha o seu peso. Levou um tempo para integrarmos esses elementos em prol do resultado do trabalho. Hoje estamos na mesma fase preliminar, quando o assunto é narrativa multimídia. Usamos vídeos, infográficos animados e outros recursos de interatividade – mesmo as interações com as redes – ainda como penduricalhos. Falta entender quando e como esses novos elementos devem ser usados, e integrá-los ao processo produtivo da reportagem, desde o preparo da pauta.
6. Contar histórias
Os meios se tornaram digitais, mas a vida segue analógica. Do lado de lá da tela, grande ou pequena, de mesa ou de bolso, tem um ser humano e seus cinco sentidos. Não haverá boa e bem contada história que não será lida. Essa apreciação pode até começar em poucos caracteres pinçados em uma recomendação de um seguidor, mas quantos decidirão mergulhar nas profundezas da reportagem integral? Não todos, claro. Mas serão ainda muitos, e creiam: esses são o mesmo “tipo” de leitor de sempre, os que decidirão se deliciar com o todo. Essa segmentação sempre existiu, ela só está mais evidente.
7. Não esquecer de ser analógico
As novas tecnologias colocam o quarteirão, a cidade e o mundo na mesa de trabalho. As redes sociais fazem a repercussão das reportagens ocorrer de forma instantânea e intensa. A voz dos leitores ecoa dentro das redações – ou pelo menos deveria. Mas nada substitui estar no local do entrevistado, do evento, da manifestação. Mas também não basta a presença física, se me distraio olhando para o sistema de mensagens e deixo de captar o que ocorre à minha volta. É preciso estar, outra vez com grifo. Perceber nuances, expressões, ambientes, cores e cheiros. Analogicamente. Para depois pintar e bordar, literalmente, nos meios digitais.
8. Dosar velocidade e prudência
Na dúvida, não poste, não repercuta, não recomende. Evite decidir pelo clamor da multidão a tuitar. Credibilidade foi e sempre será o patrimônio a ser buscado e preservado.
9. Entender de tecnologia
Estar ciente das possibilidades de interação, de narrativas e de difusão do trabalho jornalístico para a audiência. Essa é a forma de manter essa transposição das essências jornalísticas para os novos meios de difusão.
10. Revisar esta lista de tempos em tempos
Como seria escrito este texto daqui a alguns anos? Que novidades teremos até lá? As tais essências jornalísticas ainda estarão em pauta? Arrisco dizer que sim, e firmemente. Mas vai depender das gerações que hoje editam e acreditam na sua capacidade de transplantar as células-tronco, que contêm o DNA do jornalismo, para o futuro.
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Ricardo Gandour é diretor de conteúdo do Grupo Estado e membro do Conselho Editorial da Revista de Jornalismo ESPM