A autoridade é o especialista, o craque, o sábio, o melhor de todos. A fala da autoridade elimina todas as dúvidas, resolve todos os problemas, tem a melhor solução. Por isso a autoridade é amada pelos jornalistas. Por intermédio da autoridade o jornalista julga e condena, soluciona, descobre a verdade. A autoridade é a luz que salva o jornalista.
Entende-se que uma das funções do jornalismo é apresentar as versões dos fatos e a autoridade ajuda nisso. É natural, portanto, que se busque a autoridade. Ocorre que, por preguiça, negligência ou má fé, o jornalista deixa que a autoridade analise e dê a versão dos fatos como a única e a última. Fica nisso. No limite a autoridade julga e condena, como se ela fosse conhecedora de todas as versões. O jornalismo faz isso dentro do recorte determinado pelo veículo; um recorte ideológico e econômico. Por exemplo, jamais um veículo da grande imprensa vai colocar o especialista acadêmico em reforma agrária para falar sobre o MST. Ou colocar a autoridade em segurança alimentar para tratar de transgênicos. Existe, portanto, uma categoria de autoridade que serve à imprensa. É a “autoridade eficiente”, aquela que diz aquilo que o jornalismo quer ouvir. E tudo o que o jornalismo quer são “autoridades eficientes”.
A autoridade no jornalismo é uma escolha ideológica. Ela aparece com a missão de legitimar o discurso do veículo. Claro que, por sua vez, essa autoridade é referendada pelo leitor. Há um contrato estabelecido entre o veículo e o seu consumidor. Os jornais são conservadores no sentido de garantir o padrão que atenda ao seu leitor – seja ele conservador ou revolucionário.
O jornalismo já deveria ter aprendido que apelar para a autoridade como um deus do saber não é o correto. Diversos teóricos do jornalismo condenam esse apelo à autoridade. A história da imprensa mundial está repleta de casos em que pessoas e instituições foram condenadas porque o jornalismo optou por seguir as recomendações da autoridade – sem questionar, sem duvidar, sem interrogar, como recomendam os melhores jornalistas deste país. Como enfatizou Luiz Claudio Cunha ao receber o título de “notório saber” pela Universidade de Brasília, em 9 de maio de 2011: jornalista duvida, questiona. Duvida porque a autoridade, exatamente por ser autoridade, pode estar mentindo, pode estar equivocada, pode estar a serviço da bandidagem. Duvida porque quando o jornalismo não faz isso deixa de ser jornalismo para ser outra coisa.
Senzala desprezada
A autoridade é uma praga cultural e um símbolo que o jornalismo cultiva. E ao fazer isso pode estar legitimando a arrogância, a mediocridade, a burrice.
A autoridade é o poder. O sujeito se torna vereador, presidente de entidade, deputado, senador, ministro, governador, e sua fala se torna inquestionável. O repórter, vaidoso, anuncia que conversou com o governador e soube que ele vai construir “x” casas populares. Na TV, o repórter diz que ligou pessoalmente para o ministro e ouviu dele isso e aquilo. Pobre repórter, precisa da fala de uma autoridade para se legitimar junto à sua audiência. É ridículo, mas o jornalismo nacional tem suas versões clown.
O caso mais visível de aberração jornalística e sua relação com a autoridade são os programas de sangue, ou “programas policialescos”. A equipe da TV acompanha o carro da polícia (autoridade) e vai contando a versão da polícia (autoridade). Chamar isso de jornalismo já é um exagero; não cabe como categoria. Esses programas fazem supor a existência de um acordo entre essa imprensa e a autoridade policial. Neste acordo talvez haja condicionantes do tipo: o repórter não pode questionar os procedimentos policiais; ou, não pode mostrar os abusos cometidos. Talvez isso explique porque determinado apresentador de um desses jornais de sangue reproduz costumeiramente uma determinada cena: o policial leva a pessoa presa durante a ação policial para “uma conversa” em local reservado. O apresentador destaca a “conversa” reservada, mas a câmera jamais mostrou o que seria essa “conversa”. Se fosse jornalismo, o repórter indagaria da autoridade policial: o preso está sendo torturado? O que está ocorrendo que não posso filmar?
Na verdade, a polícia deveria proibir esses programas de sangue. Essa parceria não contribui em nada com o jornalismo e tampouco com o bom trabalho que a polícia também executa. A polícia tem a obrigação de prestar contas dos seus atos, mas exibir o grotesco, a violência, a brutalidade, o crime, não reduz a violência e tampouco valoriza o trabalho dos policiais. Pelo contrário esses programas de sangue alimentam uma cultura negativa para o trabalho policial. Esse pseudojornalismo focado na autoridade oculta as boas ações da PM e uma relação amistosa com a comunidade. As imagens mostradas reforçam uma cultura: a polícia só prende pobre e preto; só tem ladrão em comunidades pobres. E isso é ruim para a comunidade pobre que vai ter medo ou ódio dessa autoridade que só prende os vizinhos, ou alimentar uma autoestima bem baixa.
Esse falso jornalismo precisa vender o seu jornal de sangue e talvez por isso mistifique o poder que lhe fornece o sangue. O apresentador do programa trata o delegado por “doutor” e os policiais como heróis. Insiste na defesa do sangue batendo em quem condena isso com os clichês conhecidos: “os direitos humanos existem para defender bandido”; “a culpa” por todos os males é sempre dos políticos. Quanto à autoridade, o delegado… ser tratado como “doutor” (autoridade) é uma exigência sua quando tem diante de si um ladrão de galinhas.
A autoridade incensada está acima da lei. Ou melhor, existe uma lei para o cidadão comum e outra para a autoridade. Autoridades transitam por onde querem, não respeitam sinal vermelho, param em faixa de pedestres, estacionam sobre gramados. Em Brasília, paraíso dos que sonham em se tornar autoridade, veículos do Detran, BPtran Polícia Militar, Polícias Legislativas da Câmara e do Senado aparecem sobre gramados e calçadas. Nas vias, os veículos dessas instituições jamais ficam atrás, eles sempre têm pressa, e quando não usam o acostamento exigem passagem com a sirene ligada.
Os abusos (dentro da lei, claro) dessas autoridades é tanto que é difícil para o visitante fotografar um monumento em Brasília sem ter um carro da polícia na frente.
Deve-se considerar que os serviços ofertados pelo Estado discriminam quem é da Casa Grande e quem é da senzala. As autoridades habitam a Casa Grande e dominam o Estado. As forças policiais, por sua vez, protegem os da Casa Grande e desprezam a senzala. No mês passado, no interior da Bahia, em perseguição a um pretenso bandido, o policial entrou atirando na casa de um morador pobre matando sua filha de poucos anos. Era senzala. Isso jamais aconteceria no Morumbi, em São Paulo, ou no Lago Sul, em Brasília.
Indução ao erro
A autoridade é um símbolo que está por todo canto. Para determinado tipo de jornalismo, celebridades são autoridades. O ator da novela das sete, ou das nove, ou das dez aparece no programa de variedades ensinando sobre como obter sucesso na vida e, principalmente, como ser feliz. No geral, as celebridades são autoridades em três temas: cuidados com o corpo, alegria e felicidade.
Outras autoridades espalham-se na forma de cultura. O médico sempre se acha uma autoridade. João e Antônio mudam de nome quando se tornam médicos. Depois de formados querem ser tratados como “Doutor João” e “Doutor Antônio”. Não fizeram doutorado, mas exigem esse tratamento, para mostrar quem manda no pedaço. A arrogância médica está por toda parte.
Arrogantes também são os sacerdotes religiosos. Eles cultivam uma cara de bonzinho, pregam a humildade, mas querem ter a última palavra sobre tudo. São autoridades neste mundo conforme uma delegação do outro mundo. É uma delegação invisível, mas vale para muita gente. O padre não casa, não paga escola para filho, não pode namorar, mas se acha autoridade em assuntos de família, opinando (e tem quem o ouça) sobre namoro, aborto, relações sexuais, masturbação, casamento… Enfim, esses temas de alcova que, em tese, são vetados à sua pessoa. O pastor evangélico também sabe de tudo.
Um lugar que está repleto de autoridades é o Judiciário. O juiz, o magistrado, o promotor, são servidores públicos, recebem salários públicos, mas isso não conta. Temos aqui a autoridade total, infalível: juiz não erra, no máximo equivoca-se. Isto é, sentença judicial é para ser obedecida mesmo quando está errada. E quem iria questionar essa autoridade que manda em todo mundo? Quem iria questionar esse servidor público que tem o poder de dar ordem à polícia para prender quem ele quiser? Ocorre que não somente a imprensa, mas o todo da sociedade mantém no imaginário essa noção de infalibilidade. E essa noção, essa cultura, impregna e se sustenta a si própria. Contam de um juiz que ao entrar em seu gabinete exige que todos os servidores se levantem e baixem a cabeça em sinal de reverência à sua passagem. Foucault explica…
As autoridades estão por toda parte. O cara passa num concurso público, assume um cargo qualquer, e já se torna doutor, autoridade. O cara vira deputado, senador, prefeito, recebe salário pago pelo contribuinte, mas, sendo autoridade, se considera acima dos demais.
Há uma insistência da imprensa em reverenciar a autoridade e se submeter à sua fala. O jornalismo já teve a chance de aprender inúmeras vezes que a autoridade erra, mente, equivoca-se, e pode levar a um erro do jornal. Quanto à sociedade e suas autoridades, já é hora de aparecer um governante que ensine cidadania e coloque as autoridades nos seus devidos lugares. Falta um governante que diga a todos que os servidores públicos, como ele, são pagos pela sociedade e, portanto, a sociedade é que é a autoridade, e não o contrário.
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Dioclécio Luz é jornalista, autor do livro A arte de pensar e fazer rádios comunitárias