Um debate entre jornais bons e não tão bons pode acabar sendo sumamente equivocado. Os mal feitos são identificados com grande facilidade; o que não acontece com os bem feitos. Por isso, eu prefiro falar de adequados e inadequados. Um veículo nunca existe no vazio, mas é um produto e está dirigido a uma comunidade ou públicos determinados. O jornal que não é capaz de estabelecer essa conexão é claramente inadequado, e pouco importa se está bem escrito, tecnicamente correto, ou se inclui os melhores colaboradores da vizinhança; igualmente, um jornal, mesmo que não esteja tão bem escrito e cometa erros de técnica profissional, pode alcançar algum grau de conexão com o meio, e, por isso, será mais adequado que o anterior.
Em meados da década de 1990, já após a queda do muro duplo – o de Berlim (1989) e soviético propriamente dito, estive em Moscou a convite de um Instituto de Ciências Políticas da capital. O encontro foi apaixonante. Jovens jornalistas russos estavam descobrindo a liberdade de expressão, enquanto vetustos jornais que haviam se limitado a ecoar os eufemismos do regime estavam se transformando em túmulos abertos para novos usos da palavra, um espaço que encolheu, sem desaparecer totalmente, durante o reinado do presidente Putin. E um dos mais exaltados daqueles jovens, redator-chefe do novo Izvestia, dizia com verbo tão incendiário como sincero que com publicidade não era possível fazer um bom jornal. Ele se referia a uma situação muito similar à que o México havia sofrido secularmente até a abertura informativa do fim do século passado, com o presidente Fox: o anunciante pedia diretamente ao jornalista que publicasse isto ou aquilo, em troca de uma fração do que pagaria ao jornal pelo anúncio. A direção estava perfeitamente ciente disso, mas via a propina como um complemento salarial, que poupava dinheiro da empresa. Carlos Payán, nessa época diretor do La Jornada, da Cidade do México, me contou que seu jornal, assim como o Siglo XXI, de Jorge Zepeda, em Guadalajara, foram alguns dos primeiros a romperem com tão doentia disposição.
Mas, perante as palavras do ardoroso jornalista pós-soviético, senti que deveria intervir. E assim fiz, para dizer que um jornal que não tivesse publicidade não poderia ser, de todo, um bom jornal, mesmo que contivesse muitas excelências abstratas, porque carecia dessa conexão, esse cordão umbilical com o mercado ao qual se dirigia, embora, certamente, tudo isso fosse válido unicamente em tempos de normalidade econômica, porque na crise que vivemos hoje na Europa não há publicidade nem para remédio. E é claro que eu não estava defendendo o tipo de publicidade chantagista ao qual o colega russo fazia referência.
Peso atômico
Já faz mais de 20 anos que, em um importante país da América Latina, apareceu um veículo que tinha muito boa aparência; que para mim parecia ser de fabricação intelectual e técnica excelentes. Mas durou menos de três meses, e um artigo na última página anunciava em determinado dia, quando eu casualmente estava naquela parte do mundo, que aquela era a última edição, e que a razão do fechamento era tão singela quanto peremptória: a opinião pública não tinha sabido apreciar um produto de semelhante qualidade. E continuo achando que o jornal era muito bom, mas, evidentemente, não o mais adequado.
O mundo do jornalismo mudou enormemente nos últimos anos, e continuará nessa direção até se tornar irreconhecível para os que viverem para ver. Mas já cabe dizer que a digitalização facilita nosso acesso a instrumentos de valor inestimável para estar em contato, valorizar e compreender esse mercado. A própria interação jornal-leitor abre perspectivas sem fim. Hoje, podemos saber, com certeza inigualável, quem nos lê e por que, conhecer os gostos, as insatisfações do leitor; em suma, que tipo de jornal (ou tipos) o mercado prefere, tudo o que é sumamente útil para orientar nosso trabalho e adequar o produto. Mas com uma ressalva importante. Os melhores jornais de qualidade não seguem, mas abrem o caminho. É bom saber a opinião dos leitores para poder levar em conta, mas não é para fazer disso uma nova vulgata. O jornal adequado está a serviço dos leitores, mas não faz genuflexões. Precisa ter sua própria visão e versão do mundo, influenciada, mas nunca atada ao mercado. Só assim se faz um grande jornal.
Sempre achei que o segredo das melhores redações se expressa em um número totem: peso atômico. Cada jornal tem seu peso atômico, um quantum X que representa uma combinação perfeita e distinta para cada publicação, composta por uma quantidade de sêniores, não muitos, mas suficientes, como fermento da redação, mestres que ensinam simplesmente por serem aquilo que são; uma massa nuclear de quem já carrega uma longa carreira nas costas, mas que ainda tem um bom percurso pela frente; e um número apropriado de jovens, sem os quais as redações se fossilizariam, que sejam capazes de aprender com os mais velhos, mas também de questionar os princípios cardeais imperantes. E, em nosso tempo digital, esse número de jovens tem que ser crescente e dotado de saberes tecnológicos cuja aprendizagem acompanhe tamanha e tão rápida evolução. Se o jornalismo houver de perdurar será porque as redações dos dias de hoje, já não as de amanhã, vão encontrar seu peso atômico ideal para fazer o jornal adequado.
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Miguel Ángel Bastenier, do El País