Você nunca foi ao Oriente Médio nem tem qualquer ligação pessoal com a região. É judeu, mas não tem família em Israel. Seus pais não são sionistas, mas pessoas de centro-esquerda da geração americana que lutou pelos direitos civis dos negros; nenhum dos dois jamais esteve em Israel. O que desperta seu interesse pelo Oriente Médio é a Primeira Intifada [a Primeira Intifada, ou revolta da população civil palestina, eclodiu no final de 1987 na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, territórios ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias contra vizinhos árabes, em 1967], que irrompe quando você era adolescente. Você fica horrorizado com as cenas de soldados israelenses disparando balas de borracha contra os manifestantes e demolindo casas com escavadeiras.
Instintivamente solidário com o levante dos “meninos armados de pedras”, você decide se instruir a respeito da ocupação. Lê Noam Chomsky, I. F. Stone e Edward Said, e em seguida historiadores israelenses revisionistas [o linguista americano Noam Chomsky, o jornalista americano Isidor Feinstein Stone (1907–89) e o crítico cultural palestino-americano Edward Said (1935–2003) são ou foram críticos das políticas de Israel em relação aos palestinos; os historiadores chamados de revisionistas apontaram o papel dos pioneiros sionistas na expulsão de árabes do território em que foi criado o Estado de Israel] como Simha Flapan, Ilan Pappé e Benny Morris (que ainda não havia se reinventado como apologista da limpeza étnica que denunciou com tanto empenho). Na faculdade, conhece outros judeus de esquerda, além de árabes progressistas com quem se identifica mais que com os participantes do Hillel, a organização de estudantes judeus. Comparece a manifestações contra a primeira Guerra do Golfo e a ocupação israelense, e denuncia a hipocrisia da política americana para qualquer um que se disponha a ouvi-lo. Os discursos lhe ocorrem com naturalidade. Você transborda de indignação bem-intencionada; chega a ser irritante em suas certezas.
Era eu, esse garoto. Não conhecia muita coisa sobre o Oriente Médio, mas tinha as posições corretas, ou pelo menos era o que eu pensava. Também me achava investido de um sentido de missão, e da clareza e energia que costumam acompanhá-lo.
Se você era um jovem de esquerda, era fácil ter esse sentido de missão durante o processo que acabaria levando à invasão do Iraque em 2003, uma época de propaganda insidiosa e mentira em torno das “armas de destruição em massa” e da suposta ameaça que Saddam Hussein representava para “a homeland”, nossa pátria-mãe. A imprensa americana pululava de “especialistas” em Oriente Médio explicando “por que eles nos odeiam”. E esses especialistas partiam invariavelmente dos textos de Sayyid Qutb, líder da Irmandade Muçulmana do Egito, enforcado em 1966 por conspiração contra o regime nacionalista de Gamal Abdel Nasser. E encontravam as raízes do antiamericanismo violento no final dos anos 40, no porão de uma igreja do Colorado, quando Qutb, estudante nos Estados Unidos, ficou horrorizado ao ver rapazes e moças dançando juntos. Segundo esses especialistas, fomos atacados meio século depois não pelo que fizemos no Oriente Médio, mas por sermos quem éramos em nosso próprio país: pessoas livres, abertas e tolerantes.
A revista The New Yorker, que se distinguira por sua oposição à Guerra do Vietnã, publicava textos de Bernard Lewis sobre “a fúria do Islã” e reportagens curtas que Jeffrey Goldberg [Bernard Lewis, historiador britânico, fez carreira nos Estados Unidos e apoiou a invasão do Iraque; Jeffrey Goldberg, jornalista americano, escreve hoje para a revista The Atlantic] mandava do Cairo e de Beirute, onde todo mundo que ele encontrava parecia ser antissemita, terrorista ou as duas coisas. Depois de ler a cobertura do New York Times, você podia concluir que a liderança palestina era a única culpada pelo fracasso das negociações de Camp David e pela erupção da Segunda Intifada [a Segunda Intifada começou em 28 de setembro de 2000, depois do fracasso de negociações com Israel mediadas pelo presidente americano Bill Clinton].
Um dos meus primeiros artigos sobre o mundo árabe foi a resenha de uma biografia de Frantz Fanon [nascido na Martinica, possessão francesa no Caribe, o psiquiatra e ensaísta Frantz Fanon (1925–61) foi uma das principais referências intelectuais na luta contra o colonialismo] para o suplemento de livros do New York Times. Pouco depois que entreguei o texto, meu editor ligou para dizer que estava ótimo, salvo por uma coisa: eu me referia à “Palestina”, país que, segundo a redação do jornal, não existia. Trocamos “Palestina” por “Oriente Médio”, o que fazia o mesmo efeito. Como a maioria dos americanos, eu via o Oriente Médio através do prisma do conflito entre Israel e Palestina, um erro que só iria identificar muito mais tarde.
Estranhamente, senti que essa rusga com a censura me conferia algum poder. Era uma prova de que estava expressando coisas, nomeando coisas que o jornal não permitia que se publicassem; de que eu fazia os poderosos encararem a verdade. Minha tarefa, a meu ver, era desmascarar a retórica usada para justificar a guerra contra o Iraque, a repressão exercida por Israel nos territórios ocupados e outros malfeitos do império. E não me faltava trabalho, pois essa retórica – que falava em “guerra humanitária”, “terrorismo” e nossa aliança indissolúvel com “a única democracia do Oriente Médio” – era abundante.
Ainda mantenho a maioria das posições que assumi quando comecei a escrever sobre o Oriente Médio. Mas quando releio os artigos que publicava na época, acho o tom estridente, a segurança indevida, a falta de humildade suspeita. E tenho a mesma reação quando leio um jornalista tão cioso de seu engajamento quanto Robert Fisk [jornalista britânico, correspondente do jornal The Independent no Oriente Médio], que parece jamais duvidar de suas retumbantes convicções. Reli recentemente Pobre Nação, seu livro sobre a guerra civil libanesa, e fiquei impressionado com o quanto Fisk revela pouco sobre os libaneses, as pessoas em meio às quais vive desde meados da década de 70. Apesar de toda a sua dramaticidade ao falar dos libaneses, ele jamais admite que as vozes deles próprios interrompam sua pregação. O fato de eu concordar com partes do sermão não significa que eu tenha a paciência de ouvi-lo sentado até o fim. O livro de Fisk, que tanto me impressionou num primeiro momento, hoje me parece uma oportunidade desperdiçada, a não ser que você entenda que o jornalismo tem o mesmo papel que o promotor num tribunal, começando e terminando com a descrição dos crimes e a identificação (e humilhação) dos perpetradores. Ainda assim, o exemplo de Fisk é instrutivo, servindo para nos recomendar a devida cautela. E nos lembra de que a imersão na região não é suficiente: o que conta é a maneira como você processa a experiência, as marcas que ela deixa na página. O cri de coeur fiskiano usa a indignação no lugar do entendimento, e prefere torcer em vez de analisar.
Prontidão cultivada
Só para esclarecer: não estou dizendo que a pessoa não deve tomar posição nem defender argumentos políticos quando escreve sobre o Oriente Médio. Seria muito difícil agir de outra maneira. E parte do que me motiva é a indignação com a injustiça, e a esperança de levar meus leitores a pensar de maneira mais crítica sobre a política americana para a região. Mas me tornar amigo de pessoas que escrevem sobre o Oriente Médio, além de viajar para a região, mudou muito a maneira como encaro meu trabalho. Dois escritores árabes foram especialmente importantes para dar forma ao meu entendimento. O primeiro é Mohammed Harbi, ex-líder da FLN, a Frente de Libertação Nacional argelina, e mais tarde historiador, cujos livros sobre o movimento pela independência da Argélia são um modelo de história crítica, e que me conduziu com grande paciência pelo labiríntico emaranhado da política argelina contemporânea nos encontros que tivemos em Paris. O outro é Raja Shehadeh, fundador da Al-Haq, ONG de defesa dos direitos dos palestinos, advogado e escritor de Ramallah, na Cisjordânia, que me ensinou o que o sionismo significou – dos pontos de vista legal, político e psicológico – para os palestinos. Angustiado e um tanto frágil, trata-se de um homem que, malgrado sua compreensível amargura, continuou a sonhar com um futuro posterior à ocupação, uma espécie de federação neo-otomana em que árabes e judeus viveriam como iguais.
Quando finalmente comecei a fazer viagens mais longas para o lugar sobre o qual vinha pontificando por tanto tempo, descobri que me interessava muito mais pelo que os locais tinham a me dizer do que por minhas próprias opiniões. E tive um estalo: só conseguiria escrever bem sobre o Oriente Médio à medida que fosse um bom ouvinte. Percebi como só ter a posição correta não bastava; ela me garantia pouco mais que o direito de entrada. O jovem impetuoso que eu era só podia escrever com um sentido de missão em grande parte porque nunca tinha passado tempo algum na região; ele estava intoxicado pelo som da própria voz, pelo poder que a seu ver ela lhe trazia.
Pouco depois do 11 de Setembro, fiz uma entrevista para a revista dominical do New York Times com o escritor britânico de origem indiana V. S. Naipaul sobre sua visão do Islã. Muito do que ele me disse foi previsivelmente desagradável, uma provocação calculada para ofender as sensibilidades esquerdistas. “O Islã não fundamentalista”, disse-me ele, é “uma contradição.” Mas Naipaul me disse outra coisa que jamais vou esquecer: no fim das contas, temos que escolher entre ser um escritor ou ser um missionário. À época, a fórmula me pareceu fácil, e mesmo desonesta. Se havia alguém que era um missionário, não seria justamente Naipaul com seus ataques grosseiros aos muçulmanos, seu nacionalismo hindu radical e seu esnobismo, tudo apresentado como a nobre missão da literatura e da arte?
Ainda assim, a frase ficou comigo. Não consegui tirá-la da cabeça; e mais adiante percebi o quanto era sábia, embora minha simpatia pelas opiniões de Naipaul não tenha aumentado de lá para cá. Naipaul evocava a tensão entre o jornalista, que descreve as coisas tal como vê, e o missionário ou militante, que descreve as coisas tal como deseja que fiquem sob a influência de um partido, de um movimento ou de uma causa. O contraste não é tão acentuado quanto Naipaul sugere, mas existe, e quanto mais de perto você analisa uma sociedade mais se permite ver e ouvir, e mais intensamente vivencia essa tensão.
No livro Finding the Center, de 1984, Naipaul escreveu que viajar “se transformou num estímulo necessário para mim. Ampliou minha visão do mundo, mostrou-me um mundo em mudança e me fez deixar minha concha colonial. […] Minha incerteza quanto ao meu papel acabou; um papel não era necessário. […] Me contentava em ser quem eu era, ser o que eu sempre tinha sido, um observador. E aprendi a observar a meu modo”. E continua:
Chegar a um lugar sem conhecer ninguém, às vezes sem nenhuma apresentação; aprender a me deslocar em meio a desconhecidos pelo curto tempo que tiver para ficar entre eles; manter-me em constante prontidão para uma aventura ou uma revelação; entregar a condução dos dias, até certo ponto, ao acaso; e obedecer conscientemente aos impulsos – tudo isso podia ser um exercício tão criativo e imaginativo quanto a escrita que vinha em seguida. Viagens desse tipo se tornaram uma experiência intensa para mim. Eu ativava todos os aspectos da minha personalidade; vivia em estado de alerta. […] Havia sempre a possibilidade de malogro – não encontrar nada, não conseguir ser levado pelo encadeamento de acasos e encontros. Cada viagem me proporcionava uma emoção de jogador. E eu tive sorte; talvez por obra minha.
No trecho acima, Naipaul captura alguns dos aspectos mais cruciais do trabalho do repórter: uma passividade alerta ou receptiva; a disposição de se expor a experiências e pessoas desconhecidas ou mesmo perturbadoras, de abrir mão do controle e se perder. O que não é tão fácil quanto parece. Essa “prontidão para a aventura ou a revelação” precisa ser cultivada.
Energia vital
Perder o rumo é muito estimulante; mas também pode ser desestabilizador, ou mesmo apavorante. Você corre o risco de acabar se fazendo a pergunta celebrizada por Bruce Chatwin, autor inglês de livros de viagem: O Que Faço Aqui? Lembro que me fiz essa pergunta um dia de manhã bem cedo, no verão passado, em Jenin, na Cisjordânia, quando acordei com o chamado do muezim, a cabeça latejando do jet lag. Tinha passado o dia anterior inteiro entrevistando um grupo de ativistas que trabalhavam no Teatro da Liberdade, de Jenin. E me perguntava se algum dia chegaria mais perto da verdade do que aconteceu com Juliano Mer-Khamis, o diretor do teatro, assassinado dois anos antes. Cogitava me declarar derrotado e ir embora, mas uma amiga próxima, uma franco-marroquina que mora em Jerusalém, me disse para eu dar um jeito de continuar insistindo. E foi o que fiz. Eu precisava confiar na sorte de jogador de que fala Naipaul, e abrir mão do controle. Não devia correr atrás da história, mas deixar que a história me encontrasse.
Essa foi a minha experiência em quase todas as viagens de reportagem, mas a mais memorável ocorreu na Argélia no final de 2002, numa das minhas primeiras viagens longas como repórter. E aconteceu quase por acidente. Eu vinha escrevendo sobre a memória da guerra de independência da Argélia na França contemporânea, onde a controvérsia em torno do uso da tortura pelo Exército francês tinha sido reavivada pela entrevista de uma ex-militante da FLN, Louisette Ighilariz, ao jornal Le Monde, descrevendo suas experiências pavorosas na cela de uma prisão francesa e seu resgate por um homem que só conhecia como “Dr. Richaud”, a quem desejava agradecer depois de tantos anos. A seguir, o Le Monde publicou uma entrevista ainda mais explosiva com um general octogenário e caolho chamado Paul Aussaresses, que decidiu emergir de sua vida de reformado e confessar sem remorsos ter sido o responsável pelos assassinatos, sempre disfarçados como suicídios, de uma série de líderes nacionalistas durante a Batalha de Argel [a Batalha de Argel se refere ao período inicial da guerra de independência argelina (1954–62), com a repressão pelos franceses de células guerrilheiras instaladas nas vielas do centro histórico da capital].
Ao contar essa história, meu foco não era só a Argélia. Escrever sobre a guerra franco-argelina, uma história de colonização, guerrilhas, tortura e repressão, era minha forma indireta de comentar a reação de Israel à Segunda Intifada. Como os franceses durante a Batalha de Argel, o governo israelense alegava apenas combater o “terrorismo” nos territórios ocupados, e não um movimento insurrecional nacionalista com apoio popular. Os franceses, dizia eu, tinham ganhado a Batalha de Argel, mas o resultado se revelou uma vitória de Pirro.
Depois da publicação do meu artigo sobre o caso Aussaresses, eu me encontrei com um grupo de argelinos em visita a Nova York, chefiado por um dos dirigentes históricos da FLN, Hocine Aït Ahmed, que já liderava havia algum tempo um partido de oposição dos berberes da região da Cabília. Um dos argelinos presentes era uma jovem muito intensa chamada Daikha Dridi, repórter do Quotidien d’Oran. Daikha me falou da guerra entre os serviços de segurança e os rebeldes islâmicos [a guerra civil na Argélia opôs o Grupo Islâmico Armado ao governo estabelecido depois do golpe que cancelou as eleições de 1991 – as primeiras pluripartidárias desde a independência –, que seriam vencidas pela Frente Islâmica de Salvação], que já tinha custado mais de 100 mil vidas; das maquinações do chamado pouvoir, o grupo militar-industrial dominante que governava a Argélia; da relação ainda traumática entre o país e a França, sua antiga metrópole colonial. Insistiu comigo para que visitasse o país: como, depois de escrever sobre a repressão francesa ao movimento pela independência da Argélia, eu podia não me incomodar com o destino da Argélia independente? E ela tinha razão. Pouco depois desse encontro, reservei um voo para Argel.
Quando cheguei a essa cidade, que conhecia principalmente do filme de 1966, A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, a guerra civil tinha acabado mais ou menos um ano antes, mas não se acreditava muito na paz: ninguém tinha sido punido por seus crimes, e ataques de militantes islamistas que montavam falsas barreiras policiais ainda eram frequentes. Meu editor devia esperar que meu texto sobre a história e o possível futuro da Argélia apresentasse um tom de autoridade. Autoridade, contudo, não era o que eu sentia caminhando por Argel e pela dilapidada cidade cabila de Tizi Ouzou, onde jovens berberes estavam rebelados contra o governo central. O que eu sentia era o quanto se mostrava estranho e fútil tentar explicar a Argélia, um país notoriamente opaco. Volta e meia, especialmente quando ia a algum cibercafé, eu era seguido pela polícia secreta. Um dos agentes, homem sem barba com cabelos arruivados, me viu escrevendo uma mensagem em inglês e perguntou se eu era do Texas, “como o presidente Bush”.
Hospedei-me num hotel encardido; os únicos outros hóspedes eram um grupo de turistas alemães a caminho de uma expedição ao Saara. Eu me sentia incrivelmente livre e incrivelmente só. Voltava toda noite ao meu quarto cansado demais até mesmo para reler as anotações do dia; a água quente era tão pouca que eu nem podia contar com o alívio de um bom banho.
Meu motorista e assistente em Argel, Farès, bebia muito e tinha uns 55 anos; sua antiga fábrica de doces fora incendiada pelos islamistas. Ele parecia achar bom ter alguém como eu para levar de um lado para o outro, um ocidental que pagava bem, escutava suas histórias e falava um francês passável. Não se interessava muito em falar sobre o presente – que era uma merda, ao que ele dizia, embora eu tivesse a impressão de que ele apoiava os éradicateurs, o pessoal da linha dura que prometia aniquilar os rebeldes e restaurar a segurança. Embora não sentisse a mesma simpatia pelo Exército, eu podia entendê-lo: se os islamistas não tivessem destruído seu meio de vida, ele não seria chofer de táxi.
Farès se transformou no meu guia de Argel. Sempre que encontrávamos alguém que ele conhecia, me apresentava como um amigo de Tizi Ouzou, uma cidade da Cabília. Segundo ele, eu podia passar por berbere; se me limitasse a murmurar poucas palavras em francês, ninguém me perguntaria nada. Não é que se preocupasse em andar pela cidade com um americano, mas gostava de enganar as pessoas. Percorremos a Kasbah e os cortiços de Bab El Oued, onde Ali Belhadj, líder da Frente Islâmica de Salvação, pregava a jihadcontra o regime “ímpio” numa mesquita sunita; íamos a bares e clubes noturnos com luzes estroboscópicas pulsantes frequentados por argelinos ricos e empresários árabes; percorremos os bairros altos onde os líderes da FLN se instalaram depois da independência. Comemos dezenas de sardinhas fritas em compridas mesas comunais, onde homens (e só homens) assistiam futebol na televisão e contavam as últimas piadas sobre “Boutef” – o presidente Abdelaziz Bouteflika – e Khalida Messaoudi, a cativante ministra da Cultura, com quem diziam que ele andava dormindo.
Um dia, Farès me falou de um livro que estava escrevendo, sobre sua infância durante a Batalha de Argel. A história girava em torno de três amigos – um berbere cabila, um judeu e um francês nascido na Argélia, pied-noir – que cresciam juntos na Kasbah. A Argélia, dizia Farès, tinha perdido alguma coisa em 1962, e a descolonização radical privou o país da diversidade que era uma grande fonte de sua energia vital. A Argélia que ele conheceu e amava tinha desaparecido, e ele pretendia recriá-la no seu livro. Farès culpava os franceses pelo êxodo dos pieds-noirs para amétropole; os argelinos e a “FLN histórica”, segundo ele, teriam preferido que ficassem no país.
Zona sombria
A responsabilidade última da França por tudo que deu errado na Argélia, descobri, era praticamente a única coisa em que todos os argelinos concordavam. Entrevistei dúzias de pessoas, de altos funcionários do governo a simpatizantes islamistas; de mães de desapare-cidos a generais linha-dura; de ativistas berberes a militantes em prol dos direitos humanos. Todos se diziam críticos do pouvoir, mesmo seus mais óbvios beneficiários. Todos deixavam clara sua decepção com a era que se seguiu à independência. Todos se diziam possuidores de impecáveis credenciais nacionalistas, e acreditavam ter opiniões fiéis às da “FLN histórica”, a liderança que teria perdido o lugar para os que haviam “confiscado” a revolução. Mas ninguém parecia concordar quanto ao que era na verdade a nação argelina. Um homem, que pertenceu à guerrilha e lutou nas montanhas Aurès durante a campanha da independência, repetia que a Argélia não era um país árabe como o Egito; tinha mais em comum com países mediterrâneos como a Itália, a Espanha e a Grécia. Um ativista da Cabília me declarou, em tom não menos apaixonado, que a Argélia era um país berbere, e seu verdadeiro caráter tinha sido deturpado pela arabização promovida pelo Estado. Outros me diziam que a Argélia tinha uma identidade profundamente árabe e muçulmana, e que a pessoa que me dissesse o contrário sentia ódio de si mesma, era mais uma vítima do complexo colonial.
Essa discussão os argelinos vêm tendo há muitos anos. A rixa começou antes da guerra de independência, quando muçulmanos “assimilados”, populistas, islamistas e comunistas já discordavam quanto à identidade da Argélia, e continuou depois da conquista da independência. Ser argelino era, num certo sentido, ser parte interessada nesse debate. O fato de prosseguir tão vivo e áspero depois de quatro décadas de “libertação” levou-me a uma conclusão que se aplica com a mesma intensidade ao Oriente Médio: Nada do que é sólido se desmancha no ar.
A Argélia tinha sido o prisma através do qual compreendi a tragédia israelo-palestina e, até certo ponto, o surgimento de uma rebelião no Iraque. Agora a Argélia me ajudava a elaborar uma compreensão mais nuançada do poder e da identidade na região. A história argelina era, em parte, a história de um governo militar que se recusava a devolver o poder aos civis; mas contar apenas isso mal arranhava a superfície. A obsessão com a França e com conspirações francesas, reais e imaginárias, também me sugeria que a história franco-argelina não tinha na verdade terminado com a ruptura provocada pela descolonização, em 1962: a independência não passava de um novo capítulo, mais sutil, na história das relações desiguais entre esses dois países e dois povos. Todo dia pela manhã, à porta do consulado francês em Argel, formava-se uma fila de argelinos em busca de visto de entrada, desejando a admissão naquele país que odiavam e ao mesmo tempo lhes era necessário. Não havia uma “solução” para a influência francesa sobre a Argélia; era tarde demais para soluções.
A Argélia reduziu ao ridículo minha nostalgia pelas certezas heroicas do anticolonialismo, e me curou dos restos do meu terceiro-mundismo. Os problemas da Argélia pós-independência não podiam ser dissociados da história da colonização, mas os fracassos também tinham origem local, e não podiam ser todos postos na conta da França, da burguesia nativa ou nem mesmo dopouvoir. E o que era, afinal, le pouvoir? Como disse um amigo meu: “Le pouvoir, c’est nous.” Os argelinos mereciam coisa melhor que um regime que se manteve no poder distribuindo a renda do gás natural. Passaram por sofrimentos terríveis, e o mundo praticamente lhes virou as costas nos dias mais negros da guerra civil. Eu queria relatar seu sofrimento, mas precisava fazê-lo com uma boa dose de humildade, sem agir como se soubesse mais do que sabia – ou, mais propriamente, como se soubesse mais do que eles.
Os argelinos exibem ao mesmo tempo uma quantidade impressionante de informações sobre seu país e um aturdimento com o que lhes aconteceu durante a guerra civil. Para escrever sobre a Argélia, eu precisava admitir minha própria incerteza e incorporá-la ao meu texto. O que é mais fácil falar do que fazer: os leitores querem informação, e não uma palestra sobre os limites do conhecimento. Não afirmo ter um método, mas admitir a zona sombria sempre é um bom começo.
Tarefa do jornalista
Gostaria de poder dizer que sempre segui o princípio da incerteza e acatei meus próprios conselhos, mas não é verdade. A Argélia me mudou, mas algum tempo foi necessário para essas mudanças aparecerem no que escrevo. E quanto mais eu me aproximava do conflito entre Israel e a Palestina, mais missionário – mais fiskiano – eu me tornava. O que é, por assim dizer, um risco ocupacional, a “síndrome de Jerusalém” dos jornalistas, qualquer que seja seu viés ideológico.
Lembrei-me disso alguns anos atrás, quando um misterioso morador de Damasco foi morto num atentado a bomba. Imad Mughniyeh foi um dos fundadores do Hezbollah, e responsável por algumas de suas “operações” mais espetaculares, das explosões de 1983 em Beirute aos ataques na Argentina no começo dos anos 90. Em algum momento dessa década, Mughniyeh desapareceu na clandestinidade, e nunca mais foi mencionado pelo Hezbollah até seu fim, em fevereiro de 2008.
Em 2004, alguns anos antes do seu assassinato, passei umas semanas no Líbano escrevendo sobre a “libanização” do Hezbollah sob a liderança de Sayyid Hassan Nasrallah. Enquanto Israel e seus porta-vozes na imprensa continuavam a denunciar o Hezbollah como uma organização “terrorista”, o grupo parecia ter evoluído, transformando-se numa entidade política mais pragmática, moderando sua retórica e entrando para a política libanesa – participando inclusive do sistema confessional [as cadeiras do parlamento e os principais postos do executivo libanês são distribuídos de acordo com as confissões religiosas] que tanto condenou em seu manifesto de fundação.
Já não parecia mais justo nem correto descrever o Hezbollah como um simples representante da República Islâmica do Irã ou como uma organização “terrorista” global, como alegou Jeffrey Goldberg numa série alarmista de artigos para a revista The New Yorker. Os artigos de Goldberg chegaram até a prever que o Hezbollah, um grupo xiita, poderia atacar os Estados Unidos em solidariedade a Saddam Hussein, o grande perseguidor dos xiitas.
Que o Hezbollah é um movimento social, não só uma milícia ou um fantoche dos iranianos, é hoje um fato amplamente aceito, mas àquela altura era uma tese altamente controversa. Meu artigo quase deixou de ser publicado. Um pelotão de checadores da New York Review of Books passou quase metade de um ano investigando os fatos que eu mencionava. Os trechos reproduzidos da minha entrevista com Nasrallah, com quem eu tivera um encontro de mais de uma hora no quartel-general do partido nos subúrbios do sul de Beirute, sofreram cortes profundos por razões que nunca me foram explicadas. Perguntei a Nasrallah por que o movimento não depusera as armas depois da retirada de Israel do sul do Líbano em 2000. Não estaria dando a Israel um pretexto para atacar de novo? Israel, respondeu ele, nunca precisou de pretexto para atacar o Líbano. E lembrou que, ao invadir o Líbano em 1982 para destruir a Organização para a Libertação da Palestina de Yasser Arafat, Israel alegava agir em represália ao atentado contra Shlomo Argov, embaixador israelense em Londres, muito embora ele tenha sido comandado pelo renegado Abu Nidal, inimigo de Arafat. O argumento de Nasrallah lhe era sem dúvida muito conveniente, mas ele tinha razão quanto ao uso do atentado a Argov como pretexto, e consegui restaurar essa passagem do artigo.
Ainda assim, em meu zelo de apresentar uma versão do Hezbollah que corrigisse a avaliação de Goldberg, também cometi meus erros. Quando perguntei a Nasrallah sobre o paradeiro de Imad Mughniyeh, que Goldberg dizia continuar profundamente envolvido com o Hezbollah, ele remexeu nas contas do seu terço árabe e me disse que Mughniyeh não fazia mais parte da organização, e ninguém sabia do seu paradeiro. Não fiquei convencido, mas também não pressionei mais; não queria ser posto para fora, e me dispus a aceitar que Mughniyeh tivesse oferecido seus serviços à Guarda Revolucionária Iraniana. Estaria lisonjeado com a generosidade e a cortesia de Nasrallah? Ou a conexão com Mughniyeh era inconveniente para meus argumentos quanto à evolução do Hezbollah? Seja como for, lembrei-me dessas conversas quando Mughniyeh foi assassinado em Damasco. Depois do impressionante funeral que o Hezbollah organizou em sua honra, o mundo viria a saber que ele não só nunca se distanciou do Hezbollah como ainda tinha comandado a guerra de 2006. Sua imagem foi revelada pela primeira vez, depois de muitos anos, e hoje é elemento obrigatório da iconografia do Hezbollah. Não me queixo de Nasrallah por ter mentido para mim ao negar saber das atividades de Mughniyeh: ele fez o que tinha de fazer. Mas eu não.
Mughniyeh foi, para o Hezbollah, uma figura heroica do que eles chamam de “a resistência”. Não existe palavra mais sagrada para o Hezbollah, que se esforça em se apresentar como uma “resistência nacional”, não uma milícia sectária como outras. Quando comecei minha carreira de jornalista, tendia a utilizar essa palavra sem aspas; afinal, ela me parecia preferível à alternativa, “terrorismo”. Hoje, sou mais cético em relação a termos como “resistência”, “luta armada” e “solidariedade”. Sempre que encontro essas palavras, me dá vontade de perguntar: o que significam de fato, e o que encobrem? Quais são os atos das pessoas que usam essas palavras? O que significa a palavra “resistência”, se tanto pode ser usada para definir o levante de base sunita contra Bashar al-Assad quanto a insurreição libanesa de base xiita que luta para esmagar aquele levante? Quais ambições, quais objetivos, estão por trás de significantes imprecisos como “resistência”? O que esperam conseguir os que exibem seu estandarte?
Mouloud Feraoun, o romancista argelino que manteve um magnífico diário da Guerra da Argélia até ser assassinado pelos paramilitares franceses da Organização Armada Secreta em 1962, acertou ao escrever: “Às vezes você começa a se perguntar qual o valor das palavras, palavras que não fazem mais sentido. O que é liberdade, ou dignidade, ou independência? Onde está a verdade, onde está a mentira, onde está a solução?”
A tarefa do jornalista, acredito, é fazer essas perguntas, mesmo quando – e especialmente quando – elas são inconvenientes. E as respostas estão nos verbos, e não nos substantivos. Estão na distância, às vezes um verdadeiro abismo, que há entre as palavras e as ações.
“Processo de paz”
A aura da “resistência”, claro, não é universal. Lembro-me de uma conversa que tive com o escritor Samir Kassir num café de Beirute. Ele havia dedicado a vida à causa da Palestina, mas estava cada vez mais alarmado com a interferência síria no Líbano e com os esforços do Hezbollah, através de seu canal de televisão Al-Manar, para islamizar a luta dos palestinos. A ocupação israelense, disse ele, não era o primeiro nem mesmo o segundo alvo da “resistência”. Seu objetivo principal era a disputa de poder dentro do Líbano. Observei que o desastre da guerra americana no Iraque só tinha contribuído para aumentar o prestígio do modelo de resistência do Hezbollah. Para minha surpresa, ele respondeu: “O fato de os americanos terem vindo para cá me preocupa menos que o fato de não saberem o que estão fazendo.”
Kassir não tinha a menor simpatia pela atuação militar americana, mas era tenaz em suas análises, avesso ao conforto das fórmulas ideológicas convenientes. Não achava que a presença de tropas sírias no Líbano fosse essencial para a luta pela libertação da Palestina. O Líbano, para ele, precisava voltar a respirar livre da influência corruptora da Síria. Ele repetiu esse argumento por escrito várias vezes, pagando por isso o preço mais alto. Dois anos depois da nossa conversa, foi morto num atentado a bomba contra seu carro, desferido provavelmente por agentes pró-Síria. Embora eu não concorde com toda a análise de Kassir, tinha muito respeito por sua integridade e lhe prestei o devido tributo num artigo publicado na revista The Nation em 2005. Aos olhos do blogueiro Asad Abu-Khalil, que usa o apelido de “Angry Arab”, eu tinha revelado meu orientalismo [o conceito de orientalismo, desenvolvido por Edward Said, se aplica grosso modo à descrição dos povos e das culturas do Oriente Médio, da Ásia e de outras regiões a partir dos interesses ocidentais, enfatizando estereótipos e seu suposto atraso em relação ao Ocidente] ao elogiar Kassir, um adversário da “resistência”. Foi a primeira vez que fui alvo desse tipo de acusação: estava acostumado a ser atacado por ser um judeu contrário aos judeus, um judeu com ódio de si mesmo!
A identidade: você não consegue contorná-la quando escreve sobre o Oriente Médio. Considero-me antes de tudo nova-iorquino, e em seguida americano; embora tenha alguma conexão pessoal com a cultura e o humor judaicos, não frequento o templo, não acredito em Deus e não sou sionista. Meu “judaísmo”, se posso falar assim, não é político. O problema é que, no Oriente Médio, a ideia de um judaísmo apolítico ou não sionista é virtualmente ininteligível. Nunca escrevi como judeu, muito menos me esforcei por provar que existem judeus contrários à ocupação, como eu, esforço que acho fútil, quando não ofensivo. A questão, portanto, sempre foi a seguinte: o quanto eu preciso ser sincero sobre uma coisa que conta para mim, mas não da maneira como é entendida pela maioria das pessoas da região? Daria ocasião a mal-entendidos graves? Não será preferível simplesmente calar do que pôr fim à conversa? Afinal, estou aqui para escrever uma reportagem, não para ser o assunto.
O problema é que às vezes você acaba sendo o assunto, mesmo que não queira: sua simples presença já é notícia. Assim, embora eu normalmente não mencione minha identidade judaica, não minto quando me perguntam se sou judeu. E às vezes, com sorte, ainda consigo tirar proveito disso. Não para me abrir portas, mas para enriquecer a conversa em algumas entrevistas. É o caso, por exemplo, da palestina albina que conheci em Jenin e que, quando descobriu que eu era judeu, me perguntou: “Você esteve no Holocausto?”, e começou a rir. Felizmente não, respondi, rindo do absurdo da pergunta. Que deu início a uma das conversas mais fascinantes que tive na Palestina, tratando das opressões da ocupação, da discriminação de gênero e, no caso dela, das pessoas despigmentadas.
Também me lembro de uma conversa que tive em Nablus com Ghada, uma líder local da Frente Popular para a Libertação da Palestina que passou boa parte da vida adulta em prisões israelenses. Gostei dela de primeira. Era tão engraçada quanto passional, dona de uma risada rouca e irresistível. Antes de começarmos nossa entrevista, perguntei se ela queria me perguntar alguma coisa. É algo que eu sempre faço – se as pessoas quiserem ter uma ideia melhor de quem eu sou, é melhor dar-lhes logo a oportunidade de perguntar. As perguntas que me fazem tendem a tornar a conversa mais profunda, e sempre me ajudam a formular as minhas próprias. Ela fez uma pausa, deu uma tragada no cigarro e disse: “Se você for israelense, ou tiver parentes israelenses, ou mesmo se for só judeu, não posso conversar com você. Você entende?” Abed, meu contato local, ficou nervoso enquanto esperava minha resposta. E eu disse: “É mesmo? Você não aceitaria falar com Noam Chomsky? Não falaria com um judeu contrário à ocupação?” Ela respondeu que um jornalista judeu francês que a entrevistara pouco antes havia publicado em sua matéria que ela era a favor do estabelecimento dos dois Estados, quando na verdade ela propunha liberar a Palestina do rio Jordão até o mar. Tinha sido traída por um judeu; como podia confiar em mim?
E eu respondi, quase em desespero: “Se você for ler o que eu escrevo, irá ver que sou progressista e honesto. Agora, você pode decidir não falar comigo porque sou judeu. Tem todo o direito. Não posso obrigá-la a falar comigo. Mas acho que será um erro seu.” Ela olhou para Abed; ele devolveu o olhar para ela. “Como eu gosto muito de Abed e confio nele, vou conversar com você, com toda a franqueza.” E conversamos. A entrevista com ela rendeu um material excelente.
Quando saímos da sala de Ghada, Abed me disse: “Você nunca me contou que era judeu!” Respondi que imaginei que ele soubesse. E ele: “O que você não entende é que, para Ghada, o tipo de judeu que você é não é propriamente judeu.”
O que aprendi com esse encontro, além de que não conto exatamente como um judeu na sede da Frente Popular em Nablus? Aprendi que ter um contato local de confiança faz muita diferença. E entendi que, em alguns casos, você pode estabelecer uma atmosfera de intimidade mostrando as suas cartas, sem tentar encobrir sua identidade, admitindo o seu desconforto. Eu podia ter mentido para Ghada, mas se tivesse estaria lhe faltando com o respeito, e as demonstrações de respeito, a meu ver, são fundamentais para qualquer entrevista bem-sucedida.
Quando comecei, não me sentia tão confiante em relação à minha identidade quanto naquele dia com Ghada. E ainda não tinha aprendido a escutar; ainda aceitava tudo que me diziam, as fórmulas ideológicas e as palavras de ordem, pelo valor de face. Na mesma época em que estive com Ghada, entrevistei também Hussam Khader, líder do Fatah no campo de refugiados de Balata, na Cisjordânia. Hussam, como Ghada, tinha passado vários anos em prisões israelenses. E me disse estar convencido de que, com o tempo – talvez vinte anos, talvez cinquenta, talvez cem – eles, os judeus, voltariam todos para o lugar de onde tinham vindo, e toda a Palestina seria livre. Alguns minutos mais tarde, falou de suas esperanças de coexistência e apresentou, como prova, o exemplo de sua própria amizade com membros do Knesset, o Parlamento israelense. Em que ele realmente acreditava? Faz alguma diferença? Não somos todos contraditórios em nossas aspirações e convicções – especialmente quando, como no caso de Khader, existe um verdadeiro abismo entre nossos desejos e nosso poder de realizá-los? E esse paradoxo, essa flutuação entre o sonho de recuperar a Palestina histórica e o trabalho sangrento e corrupto de manter o “processo de paz” sob a ocupação, não será mais revelador das provações palestinas que qualquer discurso, qualquer declaração de princípios?
Aliança tácita
Tudo que temos são palavras, mas às vezes os silêncios revelam muito mais. Em Um Cativo Apaixonado,Jean Genet escreveu:
Se a realidade do tempo passado entre os palestinos – e não com eles – reside em algum lugar, há de sobreviver nos espaços entre as palavras que alegam relatar a realidade. Alegam relatá-la, mas na verdade ela se enterra, encaixa-se nos espaços vazios, e fica registrada mais neles que nas palavras que só servem para obliterá-la. Outra maneira de dizer: cada espaço entre as palavras contém mais realidade que o tempo necessário para lê-las.
Mas como chegar ao espaço entre as palavras, quando nossa única maneira de fazê-lo é por meio das palavras? Não sei ao certo, mas posso sugerir que é em grande parte uma questão de escutar, observar e descrever – com uma compreensão do contexto histórico e sem falsos consolos. Também requer resistência não apenas aos clichês e estereótipos muitas vezes desqualificados como “orientalistas”, mas também à tentação missionária de confundir nossas esperanças com a realidade. Quando irrompeu a insurreição no Egito, sucumbi, como tantos outros, à segunda tentação, ao escrever que os islamistas e a oposição secular ao ditador Hosni Mubarak pareciam ter deixado de lado suas diferenças em favor da unidade nacional. Apenas seis meses antes, eu tinha falado dessas divisões num artigo chamado “O último alento de Mubarak”, mas nos primeiros dias da Praça Tahrir eu me permiti esquecer como eram profundos o medo e a desconfiança, e com quanta facilidade essas emoções podem ser manipuladas pelo Exército. Sucumbi novamente a essa tentação depois da guerra de 2012 de Israel na Faixa de Gaza, quando afirmei que a posição estratégica de Israel tinha se enfraquecido com a emergência de um Egito governado pela Irmandade Muçulmana, aliado ao Hamas e à Turquia do premiê (agora presidente) Recep Erdogan.
Esse artigo, que me senti tão bem ao escrever, não tinha como soar mais datado. O então presidente egípcio Mohamed Morsi está preso, junto com milhares de integrantes da Irmandade; Erdogan se revelou mais um gângster que um democrata islâmico visionário; e Israel, além de aprofundar sua colonização de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia, lançou mais uma ofensiva contra Gaza – só que, dessa vez, sem atrair muitos protestos do Cairo.
Edward Said gostava de citar as palavras de Raymond Williams quanto à luta que existe, em qualquer sociedade, entre as forças dominantes, residuais e emergentes. Mas o Oriente Médio representa um desafio profundo para as premissas teleológicas, ou desejos, presentes na formulação de Williams. Forças “emergentes” como os movimentos progressistas dos jovens egípcios não estão destinadas a vencer, por mais que despertem nossa admiração e nossa torcida por seu sucesso. E o que dizer de organizações jihadistas como o Estado Islâmico do Iraque e da Síria, o Isis, grupo islâmico sunita tão extremista que foi excomungado por Ayman al-Zawahiri, da Al Qaeda? O Isis, que já capturou várias cidades iraquianas importantes e proclamou um novo califado, deve ser visto como uma força “emergente” ou “residual”, ou uma combinação das duas?
O Oriente Médio é o cemitério das previsões. Pouco depois das revoltas, os supostos especialistas declararam que a Al Qaeda tinha morrido na Praça Tahrir. Mas hoje é a Praça Tahrir que parece moribunda, enquanto a Al Qaeda ressurge para enfrentar a concorrência de ramificações ainda mais radicais. Uma ditadura militar ainda mais cruel que a de Mubarak retomou o poder no Egito, e Assad parece estar vencendo na Síria, graças não só a suas táticas impiedosas como também à fragmentação e à brutalidade dos insurgentes. Nove milhões de sírios já deixaram suas casas, e mais de 2 milhões partiram para o exílio; as mortes já são mais de 100 mil.
Os levantes árabes puseram fim à estagnação política que caracterizava as ditaduras militares da região durante a Guerra Fria, mas, com a exceção da Tunísia, nenhum deles cumpriu a promessa de estabelecer um sistema de governo mais democrático. O resultado, por enquanto, é uma disputa sectária que se aprofunda em toda a região, e, na Síria, uma feroz guerra por procuração, entre grupos apoiados por países rivais na região, que já produziu uma Nakba [a palavra árabe significa desastre ou catástrofe e designa o êxodo de palestinos de suas casas com a criação de Israel] em tal escala que, em números de mortos e refugiados, supera em muito a Nakba de 1948. Não existe solução óbvia para a crise, e parece praticamente inevitável que a Síria e talvez também o Iraque acabem desmembrados em qualquer transição vindoura.
Escrever sobre a região, que nunca foi tarefa simples, tende a ficar cada vez mais difícil. Não sei ao certo se a corrente de pensamento crítico mais influente acerca do Oriente Médio está equipada para lidar com as mudanças que a região vem atravessando. Refiro-me à crítica do orientalismo iniciada por Edward Said. Essa corrente foi fundamental para a minha formação, mas temo que se tenha congelado numa ortodoxia. Que hoje sejamos capazes de conduzir uma conversa mais aberta sobre a Palestina, que muitos estudantes estejam mobilizados contra a ocupação israelense, é um fato bem-vindo, mas a Palestina não é o Oriente Médio, e me parece estranho, se não francamente míope, falar sobre a Palestina como se estivesse isolada do resto da região. E embora seja compreensível a preocupação especial dos jovens estudantes americanos com as diretrizes políticas de seu governo na região, essas políticas não determinam sozinhas a forma e a direção do Oriente Médio.
O poderio americano na região se atenuou, mas não em favor de forças que a maioria de nós considere progressistas. Hoje, testemunhamos uma aliança tácita entre Israel, o regime militar do Egito e os Estados árabes do Golfo – especialmente a Arábia Saudita – contra o Irã, do qual os Estados Unidos, conflitando com seus próprios aliados regionais, vêm tentando se reaproximar. A ofensiva israelense mais recente em Gaza nos dá a medida do quanto a Palestina se tornou marginal para a agenda dos Estados árabes.
Modo de vida
No entanto, citando os dizeres de um cartaz que vi há pouco na casa de um ativista da causa palestina, será que a Palestina ainda não é a questão?
E esse “ainda”, como se pode perceber, qualifica a convicção do “a”: sugere uma ansiedade persistente, talvez um medo, de que a Palestina possa não ser a única questão, ou a questão central, no Oriente Médio de hoje – especialmente agora que boa parte da região está preocupada com outros problemas, como as guerras no Iraque e na Síria, a abertura do Irã para o Ocidente e a volta do domínio militar no Egito. É natural, claro, que para os palestinos a questão da Palestina seja a questão; são eles que vivenciam as humilhações diárias da ocupação e as dores do exílio. É natural que árabes e muçulmanos, por motivos nacionais e religiosos, vejam a Palestina como uma causa sagrada. Para eles, a Palestina não é apenas uma luta nacional, mas uma metáfora para o sofrimento e a redenção, o exílio e o retorno, a espoliação e a justiça. Mas isso não explica por que motivo a esquerda ocidental vê a Palestina como a questão, a chave que abre todas as portas no Oriente Médio, e não só as das casas dos palestinos que foram expulsos em 1948.
“Sabe por que ficamos tão famosos?”, pergunta o poeta e escritor palestino Mahmoud Darwish à escritora israelense Helit Yeshurun em A Palestina Como Metáfora: “É porque nosso inimigo são vocês. O interesse pela questão palestina deriva do interesse pela questão judaica. […] É em você que eles estão interessados, não em mim! […] Nossa má sorte é termos um inimigo, Israel, com tantos simpatizantes no mundo, e nossa sorte é nosso inimigo ser Israel, pois os judeus se encontram no centro do mundo. Devemos a vocês nossa derrota, nossa fraqueza e nossa fama.” Como sugere Darwish, essa preocupação com os palestinos é menos uma questão de antissemitismo, como alegam os partidários de Israel, do que um reflexo do quanto estamos absorvidos em nós mesmos: os palestinos são importantes para o Ocidente porque, graças à sua opressão pelos judeus de Israel, transformaram-se em personagens de uma narrativa ocidental.
Pensei na observação de Darwish quando vi um cartaz no campo de refugiados de Balata, declarando, em inglês: “Nossa existência é a resistência”, como se opor-se à opressão constituísse um modo de vida. “Um presente de nossos visitantes estrangeiros”, explicou-me Hussam Khader, líder do Fatah, sem conseguir conter um sorriso.
Prova decisiva
Num ensaio sobre a oposição francesa à guerra na Argélia, Pierre Vidal-Naquet observa que, para uma corrente pequena mas influente de dissidentes franceses, a identificação com a luta da FLN era uma espécie de sucedâneo da religião; para os ditos terceiro-mundistas, “a Argélia representava o homem justo sofredor, e assim uma figura similar à do Cristo […] o símbolo de uma humanidade a ser redimida, se não de uma humanidade redentora”. Para os terceiro-mundistas mais devotos, assinala ele, a libertação da Argélia podia despertar o operariado francês adormecido, desencadear uma revolução na França e resgatar o Ocidente da decadência espiritual. Vidal-Naquet, estudioso da Grécia clássica que perdeu os pais no Holocausto e socialista independente que travou uma campanha incansável contra a tortura durante a guerra, via essa fé sem nenhum disfarce: como parte de um acerto de contas da França consigo mesma. A luta na Argélia, entendia ele, era uma luta pela autodeterminação nacional, não pela humanidade como um todo, e os próprios nacionalistas argelinos estavam profundamente divididos: não eram um sujeito histórico unificado pronto a substituir o proletariado.
Hoje, me parece que os palestinos estão para a esquerda radical do Ocidente como os argelinos para os terceiro-mundistas no tempo de Vidal-Naquet: resistentes por natureza, combatendo não apenas Israel como seus patronos imperialistas, tanto por nós quanto por si mesmos. Eis o papel atribuído a eles na imaginação revolucionária. Como o keffiyeh usado pelos manifestantes contra a globalização, essa Palestina é pouco mais que uma metáfora. A Palestina continua a ser “a questão” porque nos serve de espelho. “Há gente demais tentando salvar a Palestina”, declarou-me um ativista. Mas também poderia dizer que há gente demais tentando ser salvapela Palestina.
Entendo esse palestinocentrismo, e já senti sua atração gravitacional. A ocupação israelense, com quase meio século de existência, já é a mais longa da história moderna. É subsidiada pelos impostos arrecadados pelo governo americano e mantida por um Estado que alega falar não só em nome do povo judeu, mas, o que é mais obsceno, em nome das vítimas do Holocausto. Testemunhei pessoalmente os horrores da ocupação: a submissão de todo um povo por meio de um sistema onipresente de controle e inúmeras pequenas humilhações, sempre apoiadas pela ameaça de violência; o confisco não só da terra desse povo, mas de seu futuro. Senti vergonha, além de emoção, diante da hospitalidade pela qual os palestinos são merecidamente famosos. Em viagens a outros países árabes, pude ver o efeito tóxico que a ocupação teve sobre a percepção que existe dos Estados Unidos, o poço de ressentimento, desconfiança e indignação que ela gerou. Ainda assim, não tenho certeza de que os palestinos venham a lucrar alguma coisa quando sua causa – uma luta anticolonial e nacionalista como a da Argélia, nem mais nem menos – se transforma numa questão metafísica e não política; quando seu sofrimento é romantizado, até mesmo santificado. Os palestinos precisam de amigos, não missionários ou companheiros de viagem.
Quando o historiador alemão de origem judaica Gershom Scholem repreendeu Hannah Arendt por não demonstrar muito amor pelo povo judaico em seu livro sobre Adolf Eichmann, Arendt respondeu que era incapaz de amar um povo, porque só amava os amigos. O alcance de suas palavras foi exagerado para maior efeito dramático; nossas posições políticas são quase sempre influenciadas pelos laços que formamos. Eu seria o primeiro a admitir que meu ódio pela ocupação foi aprofundado pelos períodos que passei na Palestina com amigos como o escritor e ativista de direitos humanos Raja Shehadeh, um homem que corporifica a sumud – a resiliência diante de um sistema de opressão tão absurdo quanto cruel. No entanto, como advertia Hannah Arendt, uma ligação forte demais com um povo pode levar à contração da empatia por outros: e o caso de Israel é uma ótima ilustração. O amor por um povo em especial pode nos obrigar a cálculos morais que traem os princípios que dizemos cultivar, a ponto de defender o indefensável.
Hoje, há gente que se diz amiga da Palestina, mas diz que não devemos nos preocupar com os crimes de guerra ocorridos na Síria, a menos que cometidos pelos jihadistas da oposição; que, no fim das contas, pode ser que Assad, o carniceiro do campo de refugiados palestinos de Yarmouk, mereça o nosso apoio “crítico”, pois é um dos líderes da frente de resistência, na mira tanto do Ocidente quanto dos Estados árabes do Golfo Pérsico. Segundo Amal Saad-Ghorayeb, que escreve no jornal libanês Al-Akhbar, o apoio a Assad seria uma prova decisiva do apoio à Palestina. Qual a diferença moral que existe entre isso e afirmar, como Benjamin Netanyahu, que é melhor para Israel que seus vizinhos árabes continuem ditaduras? Um anti-imperialismo rasteiro como esse pode ajudar a emancipação palestina?
Bússola moral
Com as mudanças no equilíbrio do poder no Oriente Médio, e o enfraquecimento do predomínio americano, começo a temer que uma fixação exclusiva nos Estados Unidos e em Israel leve os jornalistas e escritores progressistas a se mostrarem estranhamente indiferentes aos crimes cuja culpa não pode ser atribuída ao Ocidente. Entre eles a politização da identidade religiosa e étnica, que vem afetando a região muito mais profundamente que o conflito entre Israel e Palestina. Esse paradigma também os leva a subestimar, ou simplesmente desconsiderar, o fato de que as pessoas agem no Oriente Médio, e não se limitam a sofrer a ação de forças externas mais poderosas. Vem crescendo minha sensação de que boa parte da produção inspirada por Edward Said deixa de examinar a experiência vivida pelas pessoas da região; tende a relegar ao silêncio boa parte dessa experiência, como se fosse indigna de atenção ou politicamente inconveniente.
Imensamente libertadora quando foi desenvolvida, a crítica do orientalismo resultou muitas vezes num conjunto de tabus e restrições que inibe o pensamento crítico. A título preventivo, recomenda que paremos de perceber coisas que se encontram bem diante dos nossos narizes, especialmente as clivagens profundas nas sociedades do Oriente Médio – disputas motivadas por classe ou seita, pelo lugar da religião na política, pela relação entre homens e mulheres; disputas só em parte ligadas a seu confronto com o Ocidente e Israel. De fato, às vezes é só nessa confrontação que essas sociedades profundamente divididas atingem um sentimento passageiro de unidade. A complexidade teórica do antiorientalismo acadêmico, sua linguagem hermética e sofisticada, às vezes encobre uma tentativa de dar por extinta, só pela força da vontade, a vertiginosa complexidade da região em favor da lógica antiga e reconfortante da luta anticolonial. O antiorientalismo continuará a nos fornecer uma série de ferramentas críticas, além de uma bússola moral, enquanto for entendido como um ponto de partida, e não um destino. Como todos os mapas antigos, começou a amarelar. Já não dá conta de descrever a região, que costuma pôr todas as expectativas de cabeça para baixo e destruir todos os sonhos missionários.
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Adam Shatz é colaborador da London Review of Books