Os 12 murais com imagens de Cristo na Santa Ceia, dividindo o pão ou multiplicando os peixes, impressionam pela força da cor e das imagens como acontece com os murais mexicanos de Diego Rivera. Até descobrirmos o que mais fascina: os “apóstolos” e “santos” têm a cara dos camponeses e da gente do povo. Tombados pelo Iphan, eles cobrem paredes de igrejas pequenas e pobres de sete cidades e recheiam o recém-publicado Memória e Libertação (Editora Ave Maria, com lançamento marcado para 27/11, a partir das 19h, no restaurante Carpe Diem na CLS 104, em Brasília, DF). Atraída por eles, Arcelina Helena chegou a São Felix do Araguaia. “Impressionantes!”, exclama. “Entrelaçam as histórias bíblicas com a epopeia do povo.”
Menino Jesus brinca com pipa, São José carrega uma enxada e Maria, uma trouxa de roupa… Arcelina chegou a São Felix e encontrou seu velho guru dos tempos de reportagem do Jornal do Brasil, Jornal da Tarde e Estado de S.Paulo.
Diante dos murais do espanhol Cerezo Barredo pintados em plena ditadura, Arcelina fez uma enorme entrevista com Dom Pedro Casaldáliga, hoje com 92 anos e sofrendo de mal de Parkinson. Perseguido na ditadura, sofrendo tentativas de assassinato que afinal mataram outro padre por engano, o bispo espanhol enviava cartas para a Europa denunciando o que a censura impedia na imprensa brasileira. O pior eram os horrores cometidos no Araguaia. Ele acolhia quem escapava de lá, escrevia, resistia, defendia a terra para a população local, fazia poemas e ia engordando o maior arquivo de informações sobre a região. Foi para aumentar a ligação com a população local que dom Pedro trouxe da Espanha o muralista Cerezo, encarregado de representar, em São Felix do Araguaia (MT), a história cotidiana daquela população entrelaçada em imagens com a história de Cristo.
Naquele tempo, além de cobrir passeatas e festivais da canção que assumiam a feição de verdadeiros protestos, Arcelina logo descobriu que precisava driblar a censura. Chegou a se esconder no banheiro do Teatro Record para pegar os melhores momentos, como o violão que Sergio Ricardo quebrou e atirou contra a plateia que vaiava “Beto Bom de Bola”. Todos os festivais eram ideológicos naqueles anos e havia até passeatas lideradas por Elis, Edu Lobo, Geraldo Vandré contra a guitarra elétrica, para eles símbolo da invasão americana.
Era o começo da carreira da jornalista que, mais tarde, no Estadão ficou com a área trabalhista. “Significava cobrir as falas do ministro do Trabalho, mas eu sempre dava um jeito de virar o foco para os trabalhadores”, ela conta, hoje com 70 anos e vivendo há 15 anos em Vila Boa de Goiás, uma cidade de 26 mil habitantes em Goiás, numa casa simples que ela diz ser perfeita para a vida (“alegre”) que pretende levar.
Santos e revolucionários
De 1968, ano do AI-5 que acabou com as ilusões de ver os militares pelas costas, até 1995, Arcelina, com uma pausa para o mestrado em Paris, cobriu tudo o que lhe pareceu justo para criar um mundo melhor, inclusive a revolução dos Cravos de Portugal, em 1974. Dava aula na Universidade de Brasília, onde estimulava a criação de jornais comunitários. “Nasceram vários”, diz. Ensinava os alunos a “repaginar” os grandes jornais recortando as (mínimas) notícias boas para criar uma primeira página do bem num jornal utópico.
E publicava livros.
O primeiro foi a Crônica do Salário Mínimo(Record), em 1995. Mas o jeito Arcelina de fazer jornalismo é o que hoje o pessoal da internet e da cobertura por Google e telefone chamaria de primitivo. Meter a mão na lama. “Estava assistindo a uma entrevista do Betinho, irmão do Henfil, sobre acabar com a fome no Brasil, e veio o estalo”, diz. Ela resolveu cobrir o salário mínimo vivendo de salário mínimo como porteira de elevador em um prédio em Belo Horizonte, onde não era conhecida. “Troquei minhas roupas pelas da minha empregada, que adorou, e lá fui eu ganhar o equivalente a R$ 90 reais, pagando R$ 40,00 pelo aluguel de uma cama no beliche dividido com outra pessoa e vivendo com os R$ 50,00 que sobravam. Sobrevivi, mas perdi quatro quilos, em um mês. O livro vendeu três mil exemplares.
Em 1999, Arcelina resolveu celebrar os 500 anos da chegada dos portugueses de um jeito diferente. Andar no meio dos excluídos, nos cinco continentes, ao longo de 500 dias, para escrever cinco livros.
Arcelina saiu pelo mundo, andou 90 dias pelas Américas por conta dela, acolhida pela bondade cristã e pelas Comissões de Justiça e Paz. Publicou Sinais de Esperança (Vozes, parte da coleção Unipaz ligada à Unesco). Esteve na República Dominicana e Haiti, situadas na mesma ilha mas em condição tão adversas; Cuba, depois algum tempo com os meninos de rua de Medelín e Bogotá, na Colômbia (os salesianos construíram casas para 1000 meninos); a Nicarágua depois da reforma sandinista; o povo de rua de Dallas, a terceira maior cidade do Texas. O livro tem um capítulo sobre a expulsão dos índios de Chiapas, o perigo dos “coiotes” na travessia de imigrantes clandestinos e as mortes no deserto onde o perigo sempre parece menor do que o sonho de chegar aos Estados Unidos. Cobriu a fronteira da cidade de Tijuana onde está erguido um verdadeiro muro da vergonha: “Isola os Estados Unidos, começa no golfo do México e vai até o Pacífico, 3.800 km. Quem fala nesse muro?”, pergunta.
Em Cuba, durante uma oração numa casa de família ornada com fotos de Che, Fidel e Lênin, Arcelina presenciou uma cena digna de um lead: “A senhora foi lá dentro e tirou do fundo do baú uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, pendurou ao lado dos guerrilheiros”. rcelina já não fazia parte da imprensa diária. “Mas quem foi jornalista nunca para de escrever. Eu publicava todos os capítulos em artigos sobre minhas andanças no Correio Braziliense.”
Isto aconteceu a partir da segunda viagem do projeto: passou 110 dias entre África e Oriente Próximo. Angola, Quênia, Senegal. Na África do Sul descobriu que perto das favelas da Cidade do Cabo as nossas são palácios. “Em algumas dessas favelas, cada 17 casas têm um buraco no chão, que é o vaso sanitário deles. O banho é em bacias dentro da sala. Eu sei por que vivi numa favela dessas, onde a água é paga e o terreno, alugado de alguém.” Além das reportagens em jornal a experiência resultou o livro Perdão, África, Perdão (Editora Rede da Paz).
“A maior carência é a esperança de vida”, diz Arcelina. “Mesmo que tivessem água e banheiros não teriam como sobreviver à Aids. Os coquetéis de medicamento são caríssimos, em média 500 dólares por mês. O Brasil ajudou a partir do José Serra [como ministro da Saúde] enviando coquetéis e transferindo a tecnologia para lá. As pessoas não sabem o bem que isso fez. Antes, de cada 100 crianças com Aids, três sobreviviam porque tinham bem feitores que enviavam dinheiro dos Estados Unidos ou da Europa. São sobreviventes de uma guerra sem fim. Os órfãos da Aids estão morrendo.”
Para aproveitar a passagem, nada de voltar para casa. Arcelina estivou a viagem até o Oriente Próximo. “Não podia deixar de viver a experiência entre palestinos e judeus. Descobri escolas onde esses grupos vivem juntos e prisões cheias de judeus que viraram desertores porque recusam matar ou derrubar casas dos palestinos.”
A peregrinação continuou, anos depois, pelos mosteiros da Europa, católicos, ecumênicos, ortodoxos, budistas, rurais e urbanos. “Passei por oito países em mais de cem dias”. Saiu Além do Silêncio(Editora Ave Maria) focando os mosteiros masculinos, femininos ou mistos, na Espanha, França, Itália, Inglaterra.. e também aqueles de países que deixaram de ser comunistas como a Romênia. “Lá os mosteiros, enormes, eram pontos de visitação turística. Com a liberdade religiosa, os mosteiros voltaram às mãos dos monges e das monjas. Passei por um Mosteiro com mais de 500 monjas.”
Até o fim
Já divorciada do jornalista Walder de Góes, Arcelina perdeu para as drogas o filho único Pedro, com 20 anos, e decidiu vender tudo o que tinha para morar em Goiás. Deu o dinheiro para as chácaras de recuperação de dependência química e álcool em Brasília. “São muito pobres, e eu não precisava do dinheiro para o modo de vida que escolhi.”
Ajudou a fundar outra chácara de recuperação para dependentes químicos e alcóolatras, em Goiás, que hoje abriga 16 rapazes. “Agora estamos criando uma chácara feminina” . Ela continua também a dar aulas voluntárias de ioga na chácara masculina e no bairro em que mora. Ela ensinou também jornalismo comunitário para os jovens. Algumas das alunas gostaram tanto que fizeram a faculdade. Hoje, uma de suas alunas é editora na TV Record. Arcelina organizou um espaço de preservação ambiental, aberto a todos, chamado “Jardim da Transfiguração”, onde foram identificados mais de 70 arvores nativas. Arcelina acrescentou árvores frutíferas- como goiaba, tamarindo, acerola, banana, coco – e colocou mesas, bancos e brinquedos para crianças.
“A Diocese Goiás tem mais assentamentos do que qualquer região do Brasil. Qualquer cidade pode ter justiça comunitária, gerar empregos, ter boa vontade. A prefeita Selma Bastos está tentando.”
“Dom Tomás Balduíno, bispo da Diocese, até o ano 1999, ajudou muito a população carente, os sem terra , os sem teto…Quando morreu, em maio deste ano, os índios fizeram a homenagem extrema, uma pajelança dentro da igreja.
Arcelina não descansa enquanto não cobrir os continentes que faltam nas suas andanças – Ásia e Oceania. Mas antes precisa meter a mão noutra cumbuca quente, a área carcerária.
“Faço parte da Pastoral Carcerária há mais de 10 anos. Visito semanalmente os presos e não é difícil descobrir que só lotam as prisões os pobres, os pretos e os analfabetos. Quem tem dinheiro e bom advogado não sofre aquelas torturas e maus tratos em celas insalubres e superlotadas, mesmo antes dos 90 dias antes de a Justiça decidir se a pessoa é culpada ou inocente. O preso quando é jogado na rua não aprendeu nada, não foi “reeducado” como manda a nossa lei.”
Para Arcelina, falta fazer um livro com reportagens sobre a prisão. Como? “Só se eu conseguir ser presa. Pedi autorização, mas nem o juiz nem o promotor me concederam. Estou com vontade de cometer um crime para ir para a prisão”, brinca.
Em se tratando de Arcelina, tudo é possível. Ela vive tudo como missão, como diz que o jornalismo deveria ser. “Essas coberturas limpinhas não mostram o que eu vivo. Outro dia vi no Fantástico uma moça, arrumada, que foi fazer matéria na prisão. Mas ela não entrou onde eu entro. Eu me sento com eles, aperto as mãos, vejo a cela onde tem o buraco para as necessidades, vejo como eles têm de rolar no local de dormir para ter espaço mínimo e caminhar. A menina do Fantástico andava com o microfone na mão e dizia ‘como tudo é horroroso’. Soava falso. No Brasil, ninguém nem conversa com esses mais de meio milhão – a atual população carcerária que é a terceira maior do mundo, só perde para os Estados Unidos e China. Enquanto isso, a Europa está acabando com as prisões e só quer justiça restaurativa.”
Quando Arcelina chegou à cidade de Goiás, era a única jornalista diplomada. Ensinou Jornalismo Comunitário. Criou o jornal Nós de Goiás, dando sequência a outros tantos que havia criado com a população carente de Ceilândia, Taguatinga, São Sebastião na periferia de Brasília.
E apesar de estar ligada à vida do Mosteiro da Anunciação em Goiás, Arcelina não é monja, é oblata beneditina, uma espécie de Ordem Terceira. “Oblatos são os leigos que fazem uma consagração em mosteiro beneditino”, explica. “Mas quando cheguei aqui nem pensava nisso, até porque tinha namorado.”
Mas é jornalista até o fim. Daquelas que metem sem medo a mão no fundo da botija quente, e que falta fazem.
Os livros estão à venda na internet com exceção da Crônica do Salário Mínimo, esgotado, só em sebos. Cada um é uma bela, belíssima lição de jornalismo investigativo.
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Norma Couri é jornalista