Este artigo é o resultado mais recente do projeto de pesquisa “A internet e as transformações no mundo do trabalho jornalístico: o caso do Infoglobo”. Trata-se de uma análise das mudanças inauguradas pelo jornal O Globo em março de 2014, com a imposição de uma nova rotina que privilegia o jornalismo on line e antecipa o horário de chegada à redação, estendendo a jornada. O artigo discute as contradições, incertezas e perspectivas desse processo, com ênfase nas condições de trabalho e produção da notícia.
Introdução
Aceleração do ritmo de trabalho, acúmulo de funções, exaustão ao fim do dia. A alteração radical das rotinas de produção da notícia, que no Brasil começou em meados dos anos 1980 com a informatização das redações e se aprofundou na década seguinte com a chegada da internet, atingiu novo patamar em março de 2014, com a mudança através da qual o jornal O Globo pretende estabelecer um ponto de virada nessa trajetória: o privilégio à informação on line, que exige a antecipação de horários e a extensão da jornada, com reflexos decisivos na organização da redação, na exploração do trabalho, na competitividade entre as empresas do mesmo grupo, na forma de se produzir e consumir notícia e nas expectativas quanto à sobrevivência do meio impresso.
A aposta no digital como orientador da produção jornalística tenderia a levar O Globo a representar agora, para o jornalismo brasileiro, o papel que a Folha de S.Paulo representou em meados da década de 1980, quando lançou o Projeto Folha (Lins da Silva, 2005), de grande impacto na reestruturação das redações.
Essas mudanças estruturais no jornalismo vêm sendo estudadas por alguns autores no Brasil (por exemplo, Adghirni, 2001; Pereira, 2003; Pereira e Adghirni, 2011). Mais recentemente, Roseli Figaro, Cláudia Nonato e Rafael Grohmann (2013) publicaram o resultado de uma pesquisa iniciada em 2009 sobre a nova situação enfrentada pelos jornalistas profissionais em São Paulo, no qual traçam um quadro abrangente que vai desde quem é empregado numa empresa tradicional até os que sobrevivem como freelancers, passando pelos que têm diferentes vínculos trabalhistas, incluindo os que atuam em assessorias de imprensa.
Este artigo é o resultado mais recente do projeto de pesquisa que venho desenvolvendo desde 2011 sobre a internet e as transformações no mundo do trabalho jornalístico, voltado para o caso do Infoglobo, maior empresa no Rio de Janeiro e uma das maiores do país. Trata-se de uma primeira aproximação diante da “virada” ocorrida no início do ano. A abordagem merecerá desdobramentos, mas o que foi apurado até aqui já permite indicar algumas questões relevantes sobre as contradições, incertezas e perspectivas desse processo.
A análise se baseia em dez longas entrevistas [Roseli Figaro (2013, p. 22-23) oferece justificativa suficiente para demonstrar a relevância do uso de entrevistas em pesquisas em Comunicação e Ciências Sociais. As entrevistas utilizadas para a realização deste artigo foram realizadas em momentos distintos. Na primeira etapa da pesquisa foram entrevistados o então editor executivo Orivaldo Perin (em junho de 2011 e agosto de 2012), um subeditor e dois repórteres (também em agosto de 2012). Nesta segunda etapa, que trata da “virada” promovida pelo jornal para privilegiar o on line, foram entrevistados o editor executivo Pedro Doria, o ex-subeditor de Mídias Sociais Bernardo Moura e três jornalistas de distinta experiência, todos em julho de 2014. O recurso ao anonimato é frequentemente condição indispensável para que funcionários de uma empresa possam ficar à vontade para falar sobre seu trabalho. As entrevistas obedeceram a um roteiro de questões abertas, de modo a facilitar o diálogo com a pesquisadora. Todas as entrevistas foram presenciais e gravadas em áudio. Outros profissionais, alguns dos quais conversaram informalmente com a pesquisadora, serão ainda entrevistados no desenvolvimento deste projeto], na observação presencial de uma reunião de pauta [A primeira reunião do dia 22/7/2014, às 8h, quando se planeja a edição on line] e no próprio ambiente da redação, no material divulgado pela empresa sobre as mudanças em curso e no acompanhamento cotidiano do noticiário do jornal.
O começo
O processo que impõe o “novo ritmo da redação” no início de 2014 remonta pelo menos até 2008. Em 21 de outubro daquele ano, o site Globo online foi assimilado à marca do tradicional O Globo, num processo de integração que previa a publicação de informações tanto no meio impresso quanto nas mais diversas plataformas digitais (Tavares, 2009). A empresa lançou a campanha “Muito além do papel de um jornal”, que afirmava: “Hoje a informação precisa estar onde você quiser. Aprofundada. Analisada. Comentada. Por nós. Por seu vizinho. Por você. Por isso, um jornal tem que estar no papel. Na tela. Na sua mão. Tem que estar na cidade. No país. No planeta. On line. On time. Full time”.
Em entrevista ao site Comunique-se (Matsuura, 2008), a então diretora executiva do jornal, Sandra Sanches, mencionava a orientação de que, “ao longo da apuração da matéria, os repórteres aproveitem cada oportunidade de enriquecer o texto com conteúdo multimídia, voltando para a redação com material de áudio e vídeo sempre que possível”. Não é difícil concluir o que esse estímulo – ou pressão – significou para os jornalistas e para a própria qualidade da informação.
Um dos repórteres que viveram a situação comentou que, na época, todos eram obrigados a mandar flashes da rua. Porém, ninguém mandava, até que o então editor-chefe estabeleceu uma cota de flashes. “E foi um inferno. Aí o pessoal começou a mandar um flash cumpre-cota, tipo pegava o release, cortava um pedaço e mandava. Na época era tudo pelo telefone. O repórter tinha que mandar! Nisso o Globo on line virou uma referência, mas era um inferno”.
Essa situação mudou sensivelmente com a saída do editor-chefe e, posteriormente, o lançamento do novo site, em novembro de 2011, que exigia mais qualidade para o material a ser editado. Cotas deixaram de ser cobradas. Mas o próprio processo de lançamento do site foi problemático – por exemplo, imediatamente o número de matérias passíveis de receberem comentários se reduziu drasticamente e desapareceram os comentários postados nos textos publicados antes da reforma, o que tem evidentes implicações na consideração sobre o respeito à memória produzida pelo próprio jornal. Outro problema foi o programa que a empresa adquiriu para promover tecnologicamente a integração, de modo que um mesmo texto possa ficar disponível e adaptado para todas as plataformas: o News Gate, internamente, é chamado de Hell’s Gate, pela dor de cabeça que provoca ainda hoje.
São aspectos que demonstram como essa transição é ao mesmo tempo dinâmica e precária. Projetos começam a ser executados ainda sem condição de pleno desempenho, o que acarreta inevitáveis conflitos internos e uma discrepância entre o discurso e a prática.
Outras contradições também marcaram esse processo. A campanha “Muito além do papel de um jornal” apontava firmemente para a interatividade, que faria prever a progressiva perda de importância do impresso. Porém, a reforma gráfica anunciada em julho de 2012, numa edição especial que enaltecia o jornal de papel, pareceu contrariar essa perspectiva. O investimento talvez se explique pela necessidade de manutenção do impresso, que ainda é, como disse o ex-editor executivo Orivaldo Perin, “a vaca leiteira das empresas”: como se sabe, o grande problema para a sustentação de publicações on line é a indefinição sobre a melhor maneira de se explorar a publicidade. Mas a reviravolta operada agora não deixa muita dúvida sobre a aposta que a empresa faz para o futuro.
Perin desligou-se do jornal nessa mais recente transição, mas foi ele quem conduziu a integração das plataformas impressa e on line. O processo começou em 2007. As duas equipes trabalhavam em prédios separados – a do impresso, na tradicional sede do jornal, na rua Irineu Marinho, 35; a outra, no número 70 da mesma rua –, ligados por um corredor suspenso na altura do terceiro andar. Inicialmente, foi feita uma tentativa de integração virtual, que não funcionou. O remanejamento físico das duas equipes ocorreu em 2009 e significou algum transtorno, porque, mesmo com a transferência da editoria de Bairros para o prédio anexo, o espaço da sede não comportava adequadamente tantas pessoas. Foi necessário abrir um corredor à esquerda da entrada da redação, batizado de “Alameda Perin”. Hoje o ambiente está mais organizado porque parte das editorias foi transferida para o andar de baixo. O cartaz com o nome da “alameda” continua lá.
Em termos gerais, a integração significou uma mudança radical na divisão de trabalho, pois o mesmo profissional passou a produzir simultaneamente para o impresso e para o site. Em relação a hierarquias, também houve uma aproximação: o editor de cada área passou a ser responsável pelas duas plataformas e o antigo editor do on line se tornou subeditor. Em tese, acabaram-se as divisões entre esses dois mundos, mas na prática não é bem assim, como se verá. Certo é que a descrição das rotinas tradicionais, em estudos como os de Cerqueira Lima (2007), Thiago de Mello (2009) e Silva (2010), pertence a uma época que ficou para trás, embora muitas das observações desses autores a respeito das relações internas de poder e de outros aspectos relativos ao habitus profissional continuem válidas.
Aspectos do controle (e das brechas) no mundo virtual
Uma das novidades nessa fase de transição foi a criação da editoria de Mídias Sociais, para alimentar o facebook e outras mídias através das quais o jornal passou a se comunicar com o público e para acompanhar o que circula no mundo virtual, de modo a sugerir pautas para as diversas editorias. Foi com esse objetivo, aliás, que a então editora, Nívia Carvalho – que se desligou do jornal em março de 2014 –, criou o “Tá Quente”, um boletim com três edições diárias, distribuído internamente, com os links dos temas que estão sendo mais discutidos nas mídias sociais – e que mistura assuntos relevantes com bizarrices e curiosidades –, para avaliação de cada editoria sobre a oportunidade de tratar do assunto.
É importante notar, entretanto, que o “Tá Quente” pode também ser utilizado como um instrumento de vigilância. Ex-subeditor de Mídias Sociais, Bernardo Moura diz que se entusiasmava ao ver como a atividade de recolher e distribuir informações sobre os assuntos “mais bombantes” na rede levavam as mídias sociais a entrar na pauta do jornal e davam origem a matérias importantes e de grande repercussão.
Até que vieram os protestos de junho de 2013.
“Aí a coisa ficou mais pesada porque eles passaram a pedir um boletim pra ver o que estavam falando do jornal [ou dos jornalistas no comando], entendeu? Aí a coisa começou a ficar meio assim. Porque, até esse monitoramento, eu tinha a percepção de que eles, a chefia, o aquário, não entendiam muito bem o que a gente fazia de fato. Eles sabiam que a gente alimentava o facebook [do jornal] (…), mas não entendiam, assim (…), como eles podiam usar a gente, era uma coisa muito solta, e era legal por isso. Aí eles passaram… como teve essa reação à Globo muito forte, teve ataque hacker na época, invadiram o twitter, invadiram o blog do site… aí começaram a pedir que a gente fizesse esses monitoramentos (…), ‘ah, fulano da Mídia Ninja está publicando coisas contra o jornal’. ‘Ah, fulano que é do PSTU (…) está convocando protesto na frente da TV Globo’”. (Moura, entrevista à autora)
O jornalista acompanhava intensamente as informações que se multiplicavam na rede, com os streamings de vídeos produzidos por manifestantes e organizações de mídia alternativa. “Eu alimentava a editoria (…), ficava até de noite fazendo isso, e orientava muito bem. O cara que ficava na editoria Rio sabia de tudo o que estava acontecendo, só que não saía no jornal, não podia fazer a matéria”. Segundo ele, a orientação editorial era de que apenas se noticiasse o transtorno ao trânsito.
“E eu achando que estava enriquecendo o meu trabalho com essa coisa da mídia livre, muito inocente… (…) O que eles queriam mesmo era esse monitoramento, que era o mais importante. (…) Eu particularmente não fazia com esmero, eu fazia assim o que estava na superfície, porque eu achava meio antiético”. (Moura, entrevista à autora)
Bernardo Moura desligou-se da empresa em novembro de 2013. Seu depoimento é relevante também por mostrar as diferenças de controle entre o impresso, o site, o facebook e demais instrumentos que o jornal utiliza para chegar ao público. É o que explica, por exemplo, na época das manifestações, a publicação de muitas informações – sobretudo imagens – que não saíam no impresso. “Quanto mais a gente enviava um sinal contraditório ali, a gente se blindava de críticas aqui”, argumenta ele. É também uma indicação de que os jornalistas, quando querem, buscam brechas para driblar os controles.
“(…) a chefia [de redação] não entendia muito bem como funcionava. Aí ficava meio que uma brecha ali, e você, opa!… Que a gente também não compactuava com aquilo, então… E tinha um mar de informação lá dentro, era uma coisa assim agoniante, cara, eu sabia de tudo, tinha milhares de fotos, tinha tudo ali mas não podia sair, ficava uma coisa assim, sabe… Então botava foto no twitter, botava foto aqui… botar foto, foto pode.
(…) eu lembro que eu botava foto pra caramba. Tinha umas fotos boas, assim, sabe… no twitter eu fazia em tempo real, na final da Copa das Confederações [em 2013] eu fiquei fazendo em tempo real, com foto, só foto de manifestação, quebrando o pau, as pessoas ficavam malucas, “como é que O Globo tá botando isso assim?, caraca”… eu achava maneiro por isso, era uma coisa assim, de sinais contraditórios. Isso evitava às vezes muitos problemas, de gente trollando, era meio que uma contenção de danos…” (Moura, entrevista à autora)
O jornalista diz que, nesse aspecto, a direção do jornal era flexível:
“(…) a gente tentava convencer eles que essa trincheira era uma outra coisa, não era igual à do papel, não era igual à do site, era uma outra questão, aqui a gente falava que era [uma conversa] horizontal… (…) então vamos oferecer o que a gente tem de legal (…), não tem mal nenhum, é até bom para a imagem do jornal (…) e eles compravam essa ideia. Ainda compram, até hoje”. (Moura, entrevista à autora)
A aposta no digital
Em março de 2014 O Globo anunciava “o novo ritmo da redação”, com sua prioridade para o digital. Dois meses depois, lançava seu novo site, com a divisão mais clara dos blocos de matérias e um desenho mais atraente para a leitura dos textos, livre do excesso de elementos que costuma poluir as páginas virtuais. No texto em que o jornal informava sobre a mudança, o editor executivo Pedro Doria argumentava:
“Redesenhos em sites são naturais e recorrentes, porque a tecnologia avança muito rápido. No entanto, nossa mudança é inédita pois parte do reconhecimento de que o on line vem em primeiro lugar e se inicia não pelo desenho, e sim por uma mudança no funcionamento da Redação”. (Doria, in O Globo, 2014a).
Algumas editorias foram criadas, outras, extintas. Na rotina tradicional, o trabalho começava pela manhã, mas se intensificava a partir do meio-dia até o fim da tarde. Os editores chegavam a partir das 9h. A internet, entretanto, começa a “bombar” logo no início da manhã, quando as pessoas procuram informações de serviço, especialmente sobre as condições do trânsito.
A nova rotina exige que os editores cheguem às 7h, reúnam-se com suas equipes e, às 8h, participem da primeira reunião com um dos editores executivos, para a organização do noticiário on line. Ao meio-dia e às 16h, mais duas reuniões – sempre precedidas de reuniões com as respectivas editorias –, voltadas respectivamente para o planejamento e a definição da edição impressa. A primeira página fecha às 19h. Duas reuniões durante a semana, às segundas e quintas, cuidam da edição dominical, que, como já ocorre há muitos anos, fecha antecipadamente às sextas.
Os editores executivos ficam no vértice da redação, num “aquário” que só tem esse nome pelo que carrega como referência à hierarquia, porque não há mais paredes nem portas que o delimitem. Numa das divisórias, grudadas por fita adesiva, ficam expostas as capas em papel dos principais jornais do país e as capas das principais editorias do próprio jornal do dia.
Responsável pela edição do site, Pedro Doria acompanha no seu computador, com tela na vertical, o nível de leitura de cada matéria destacada na home page do jornal, e pode ver também uma comparação com a média de leitura de igual período no mês anterior, conforme a posição ocupada pelos textos no site. À vista para a maior parte da redação, os números do Google Analytics dançam num monitor de TV de tela plana, em destaque numa das paredes, mostrando os acessos às matérias naquele momento.
Perto dali, um grupo de mesas com os monitores também na vertical define o local que Doria chama de “o cérebro da nossa internet, mais que o cérebro do site” [A partir daqui, todas as declarações são retiradas das entrevistas concedidas à autora.]: como hoje as pessoas acessam o noticiário de várias maneiras, não apenas pela home page, aqueles profissionais recolhem as informações do que se passa na rede para definir a distribuição das matérias – via site, facebook, twitter, instagram etc. Também produzem duas ou três edições diárias do já referido “Tá Quente”. “Aquela mesa ali hoje é o cérebro da redação, no sentido de que é aquela mesa ali que guia toda a produção que O Globo faz hoje, então nesse sentido O Globo já é uma redação muito mais digital do que de papel”.
A mudança da rotina para a aposta no digital afetou especialmente os suplementos, que no impresso mantêm a periodicidade semanal mas, para o site, passaram a ter produção diária. Foram montados núcleos que alteraram o ritmo de trabalho nessas áreas, para reorganizar e “otimizar” a produção. [Essa reorganização já vinha sendo tentada desde fins do século passado – dito assim parece muito tempo, mas são cerca de 15 anos – por um ex-editor chefe que dividia a redação em “times”, para pautas especiais planejadas ou acontecimentos que exigissem cobertura mais ampla.]
“Todo mundo produz mais pra internet do que pro jornal, mas o trabalho diário dos editores dos suplementos semanais é muito mais internet mesmo, a coisa com a qual eles lidam no dia a dia é site. Tem essa mudança sim (…). Não é uma virada que você pode simplesmente fazer, são ritmos novos de trabalho aos quais as pessoas precisam se habituar. E é por isso que o processo de integração está ocorrendo há quatro anos” [Doria cita esse período considerando o momento em que, formalmente, acabou a divisão entre as equipes de impresso e on line. Mas, como vimos, o processo começou três anos antes.]. (Doria, entrevista à autora)
As “viradas” (atualizações) do site devem ocorrer a cada duas horas. Doria diz que se trata de uma recomendação, não de uma obrigação, para as chamadas “editorias de cabeça” – as editorias diárias, de cidade (Rio), nacional, esportes, economia, internacional, cultura, sociedade. “Se não tem nada não vira, mas se sistematicamente você não tiver nada então você tem um problema. Mas se acontecer de ser uma virada em três horas, não tem problema. Quem decide são os editores, que vendem pra home o que eles têm”.
O exemplo da editoria Rio – mais relevante porque a editoria de cidade é a “alma” de qualquer jornal de informação geral – é significativo para mostrar o que já vinha acontecendo e se aprofundou agora: já na primeira modificação do site, em novembro de 2011, o jornal passou a investir em “matérias vivas”, que fossem alimentadas ao longo do dia e talvez dessem desdobramentos nos dias seguintes. Os repórteres são responsáveis pelas próprias pautas: assim, se uma pauta evolui ao longo do dia, é o próprio repórter que tem a tarefa de entrar no site e atualizá-la. Quando chega a hora de ir embora, passa a pauta para outro colega, mas precisa deixar um pacote para o impresso, isto é, a matéria que ele foi atualizando durante o dia é reescrita para sair na edição de papel.
Maior editoria do jornal – à época da pesquisa, contava com 47 profissionais –, a editoria Rio sempre acordou cedo. “Esse horário é muito importante para a Rio, [mas também] é muito carregado o noticiário para economia, às 9h é o horário em que o IBGE, quase todo dia, divulga alguma coisa (…), em geral é um horário em que a gente tem também um repórter na Petrobras”, diz Doria. “Tem um trabalho muito pesado dos editores nesse horário, também, que é ler. A essa altura Folha e Estado [de S.Paulo] já foram lidos, o Valor também em algumas editorias, mas o pessoal tá pendurado no Wall Street Journal, no New York Times, no Le Monde, no El País, no Haaretz…”.
Quem nunca acordou cedo, passa a acordar. “Internacional é aquela coisa: eles jamais precisaram trabalhar desde cedo, mas notícia desde cedo tem, porque o mundo… é sempre dia em algum lugar do mundo”, argumenta Doria. “É a mesma coisa de economia, eles [em geral] nunca precisaram trabalhar desde cedo, mas mercado fechando em cada canto do mundo tem”.
Não só isso:
“Se você vai pra meados dos anos 90, a economia brasileira oscilava essencialmente no ritmo da economia americana. (…) Hoje o Brasil oscila em função da economia americana e da chinesa. E a chinesa tá num outro horário. (…) Então, por coincidência, junto com a internet veio outro mamute supergigantesco pra fazer frente à economia americana, inclusive na influência direta que tem sobre a economia brasileira (…). Então economia tem o que cobrir em qualquer horário do dia”. (Doria, entrevista à autora)
É verdade: nesse mundo semelhante ao do antigo império britânico, onde o sol nunca se punha, “a qualquer hora a notícia acontece”, como diz a propaganda da Globo News, o canal “que nunca desliga”. Os seres humanos, sim, desligam: o problema, como sempre, será selecionar, entre a avalanche de eventos que transborda ininterruptamente, o que há de interessar ao público, e a que tempo; e, também, prover cabeças e braços suficientes para dar conta do recado.
O comentário sobre a necessidade de adaptar a sucursal de Brasília a esse “novo ritmo” indica que, se não há notícia, ela pode ser provocada:
“(…) você tem meio que impor às fontes um horário em que elas vão ser procuradas, porque no Congresso não tem ninguém, agora, nos ministérios tem muita gente, pode não ter o ministro mas tem gente trabalhando, e deputados e senadores têm celulares… às vezes você não está na rua mas se você liga, e é aquela coisa de faro de repórter das antigas, se eu fizer tal provocação ao deputado sobre determinado assunto do dia eu posso pode obter uma declaração que vai pautar o resto do dia”. (Doria, entrevista à autora)
Doria diz não ter dúvida de que essa “nova cultura” será formada, tanto porque os concorrentes nacionais (Folha e Estadão), segundo ele, serão obrigados a alterar também seus horários quanto porque “os políticos já começaram a entender os ritmos, se não dos sites, mas certamente de mídias sociais” e viram que têm uma poderosa ferramenta para se comunicar diretamente com os eleitores, sem a mediação dos jornais. “Tenho certeza de que nessa época do ano [julho], em 2015, a gente já vai ter noticiário novo em Brasília, não só repercussão, mas noticiário novo em Brasília às nove, dez horas da manhã. É inevitável”.
Concorrência e sobrecarga de trabalho
A antecipação e a extensão da jornada fatalmente aumentaram o volume de trabalho. Aumentou também o número de pessoas? A carga horária é maior?
“Aumenta tudo, aumenta tudo. Aumenta o número de pessoas e… no momento a carga horária… até porque legalmente a gente não pode aumentar a carga horária, de editores pra baixo todo mundo assina ponto, e existem acordos sindicais, você até pode pedir pra que um repórter trabalhe além do horário dele, mas aí você começa a ter de pagar hora extra, tem de dar folgas, tem uma série de compensações. E evidentemente a empresa tem um limite de horas extras que pode pagar, um limite de folgas que pode dar, senão a gente não consegue trabalhar. Mas é evidente que… o trabalho é mais concentrado, o trabalho é mais constante, a gente tem menos pausas. E isso eu acho que é natural do meio, o meio internet tem menos pausas, no fim das contas a gente tinha uma máquina que produzia com uma certa lentidão um produto diário, agora a gente tem uma máquina que produz com maior concentração um produto que é a toda hora. Isso é o que a internet é”. (Doria, entrevista à autora)
Embora insuficiente para evitar a sobrecarga de trabalho diante das novas demandas, o aumento do número de profissionais contradiz a ideia corrente de que, nesse processo de convergência, há um progressivo enxugamento do quadro de contratados. Essa situação ocorreu de fato a partir de meados anos 1980, com a informatização das redações, mas, pelo menos no caso do Globo, desde o ano 2000, com os novos produtos e frentes de trabalho surgidos a partir da internet – que impuseram a criação de novas editorias –, a redação cresceu de cerca de 350 profissionais para os atuais 400. Em março de 2014, foram 12 demissões – algumas voluntárias, como a de Orivaldo Perin – e 22 contratações (Hungria, 2014). “A gente aumentou em R$ 1 milhão a folha de pagamento da redação. Embora pessoas seniores tenham saído, pessoas seniores foram colocadas no lugar”, afirma Doria.
Ainda assim, acumulam-se as reclamações quanto ao excesso de trabalho, à falta de condições adequadas para realizá-lo, à falta de compensação salarial pelo acréscimo de atribuições e mesmo à inutilidade de certas tarefas. Um pequeno indício dessa situação pôde ser verificado na reunião de pauta que acompanhei, a primeira da manhã de 22/7/2014. Uma das principais preocupações do dia era quanto à expectativa de falecimento de um famoso escritor, já idoso e internado em estado grave. Quem fecharia as duas páginas previstas para a edição, em caso de morte? Seria tarefa de uma editoria, mas precisaria haver o apoio de outra, que não teria gente disponível à noite, caso fosse necessário.
O excesso de reuniões também chama a atenção, num ambiente que sempre se caracterizou pela agilidade e informalidade. Aparentemente, impõe-se uma rotina que privilegia o aspecto operacional em detrimento da possibilidade de se pensar novas pautas e abordagens, novos formatos para atrair leitores nas plataformas digitais etc. Considerando-se que cada reunião costuma durar pelo menos uma hora, sobrará muito pouco tempo para os editores “pensarem” o jornal.
Além disso, os editores deveriam estar liberados às 16h, mas saem bem mais tarde: permanecem tocando o fechamento, checando a produção e pré-editando o on line do dia seguinte, enquanto quem faz a reunião final do dia é o editor adjunto. Outro problema é a remuneração, que atinge todas as funções: criaram-se novas atribuições sem a correspondente compensação salarial. No caso dos editores, quem fecha efetivamente o jornal é o editor adjunto. Se algo acontece mais tarde, quando o editor já foi embora, é ele que terá que fazer as escolhas em consulta ao aquário, embora não ganhe para isso. Como o adjunto passa a ser o fechador da edição, é um editor assistente (o terceiro na hierarquia) que vai se ocupar da produção da edição do domingo. Também sem ganhar para isso. Se algo sai errado, a responsabilidade, na prática, será deles, por mais que, em princípio, o responsável seja sempre o editor. Já os repórteres passaram a produzir filmes, fotos, infográficos interativos [Há uma editoria de vídeo, que cuida de vídeos na redação e de produções especiais. O dia a dia é produzido por repórteres e fotógrafos. Há também um infografista, que tem a função de desenhar e animar os dados passados pelo repórter, que por sua vez precisa conferir o resultado do trabalho.]: se não houve demissões, houve um enorme acúmulo de trabalho, sem aumento salarial.
O período de cobertura da Copa do Mundo, em junho/julho de 2014, foi talvez o de maior tensão desde a mudança das rotinas, pelo menos até a data da realização das entrevistas para esta pesquisa, [Em outubro de 2013, a redação passaria por um momento especial de tensão, em consequência da reação de parte do público à edição de 17/10/2013, que chamava de “vândalos” os manifestantes recolhidos pela polícia e expunha a foto de três deles, como no jornalismo policial típico, que exibe o retrato 3×4 de “bandidos”. No facebook, imediatamente se criou uma comunidade chamada “Muito além do papel de um leitor” – parafraseando e ironizando o conhecido slogan do Globo –, que tinha um programa para disparar e-mails para os endereços gerais do jornal. Diante da avalanche, o setor de tecnologia cortou o acesso dos jornalistas às mensagens, o que provocou protestos especialmente dos mais jovens, já descontentes com a orientação editorial para a cobertura das manifestações iniciadas em junho daquele ano, e que reclamavam o direito de ler os e-mails. Cerca de 30 repórteres chegaram a se reunir para redigir uma carta aberta à direção, expondo suas críticas, mas o movimento logo refluiu porque, segundo o então subeditor de Mídias Sociais, Bernardo Moura, “começou uma caça às bruxas” e “a galera ficou com medo”. Mas o episódio foi marcante para demonstrar que os jornalistas, em momentos de especial tensão, conseguem reagir ao que consideram injusto (Moretzsohn, 2013a). Moura descreveu o clima naqueles dias como “uma lavagem de roupa suja na redação inteira, (…) uma coisa assim tipo cair máscaras”.] pois as equipes trabalharam semanas seguidas sem folga. Os depoimentos colhidos ao longo da pesquisa convergem nos protestos contra a situação: as cenas de pessoas chorando, caindo doentes. “As pessoas não são robôs”, disse um dos entrevistados. A editoria Rio foi das mais afetadas, pois teve de ceder pessoas para as edições especiais do “País na Copa” e precisava manter a atenção aos acontecimentos cotidianos da cidade, além dos plantões normais nos fins de semana. “As pessoas estão trabalhando muito mais que antes. (…) E você começa a fraquejar, erra o título, erra o texto, as coisas começam a sair erradas…”, argumentou o mesmo entrevistado.
Questões sobre a audiência
A aposta no digital se dá num contexto em que os jornais, de modo geral, já atuam nas mais diversas plataformas. Na internet, a audiência é dispersa e fragmentada:
“(…) o que é popular no facebook é diferente do que é popular no twitter, que é diferente do que é popular na globo.com, que é diferente do que é popular na home do Globo”. Então, na verdade, como editor você tem que pensar em todas essas audiências e essas audiências têm perfis diferentes. E você tem de pensar no que é relevante e como que você apresenta esse noticiário relevante de forma a seduzir o leitor pra leitura também. Então, enfim… isso é uma cultura que se aprende, é um interesse que se desenvolve, isso… estamos no processo”. (Doria, entrevista à autora)
Seria preciso discutir mais profundamente essa questão, pois não só é impossível atender a todos os públicos como certo comportamento, cada vez mais comum no meio virtual, é francamente incompatível com qualquer perspectiva de trabalho jornalístico: é a exacerbação do imediatismo do frequentador de mídias sociais como o facebook, por exemplo, que leu apenas o título do link e já está comentando um texto que desconhece. Quer interagir sem ler. Para obrigá-lo a clicar no link, uma estratégia é não “entregar” a informação no título – como todo bom título, tradicionalmente, deveria fazer –, mas suscitar a curiosidade, no estilo “foram atravessar a rua e veja o que aconteceu”, muito comum em publicações no facebook.
Entretanto, estar nas mídias sociais é importante porque, segundo Doria, elas representam 15% da audiência do jornal e, desse percentual, o facebook é responsável por 90%. O editor executivo, porém, diz rejeitar a hipótese de transformar o jornal numa máquina de produzir audiência, uma vez que “nem do ponto de vista comercial isso é bom, porque é uma audiência rala”. Enfatiza, sim, a busca do equilíbrio entre o que o leitor deseja e o que o jornal considera informação relevante: audiências são indiscutivelmente fundamentais, do contrário nenhuma empresa se sustenta, mas não podem ser obtidas a qualquer preço.
Uma das formas de atrair o leitor na internet seria a publicação de listas, o que chegou a ser uma obrigação para todas as editorias mas depois passou a ser feito na medida da oportunidade. Doria reconhece que esse recurso tem a ver com audiência, mas “não no sentido negativo, de você estar falseando a coisa, mas no sentido de que existem linguagens mais adequadas ao meio”.
“Se você faz uma lista ‘os cinco erros de Israel na atual ofensiva a Gaza’ você não está fazendo lista Buzzfeed [portal de curiosidades], você tá passando informação, e você tá passando informação de uma forma que vai atingir um número maior de pessoas (…). Por causa do formato, porque o formato é mais natural do meio, tem uma maneira pela qual as pessoas gostam de se informar pela internet. Se você fizer uma matéria de seis parágrafos com as mesmas informações ela vai ser muito menos lida do que se estiver em lista”. (Doria, entrevista à autora)
Sem concorrente regional desde a decadência do Jornal do Brasil, que foi perdendo relevância a partir do fim dos anos 1990, encerrou sua edição impressa em 2010 e hoje sobrevive precariamente na internet, O Globo concorre com as próprias empresas das Organizações Globo – principalmente G1 e globoesporte.com. “Jornalista é um bicho que gosta de dar furo. Você quer a notícia primeiro”, justifica Doria. Diante da estranheza que manifestei, indagando se não seria mais lógica uma atitude colaborativa, ele argumentou:
“Esquece que os dois veículos têm o sobrenome Globo. Você faria o mesmo comentário se fosse a Folha ou se ainda tivesse o JB? É da natureza da redação. (…) a Infoglobo é um negócio que nada tem a ver com a Rede Globo de Televisão. É um negócio que tem seus próprios executivos, suas próprias estratégias. (…) Se a gente parar de produzir notícia… a gente quebra. E a gente tem de continuar vivendo no mundo em que talvez o jornal de papel deixe de existir. E mesmo se continuar existindo, será um jornal menor.” (Doria, entrevista à autora)
Ao mesmo tempo em que enaltece o furo, Doria o relativiza em nome da qualidade:
“Se for [com o argumento de que] “eu preciso de mais um tempo para apuração”… tá. Agora, a gente não tem nenhum indício de que esteja dando menos furos, muito pelo contrário, (…) porque a motivação que os caras têm é “faturei antes do G1 uma matéria da globo.com”, é “minha matéria está sendo compartilhada não sei quantas mil vezes” (…). Existem incentivos suficientes, eu não preciso forçar a mão, os incentivos estão na natureza do que o jornalista é”. (Doria, entrevista à autora).
Por isso, o editor executivo considera que, como regra geral, “não precisa partir do aquário uma pressão pra rapidez, porque essa pressão já tá internalizada no repórter, e essa pressão é suficiente, às vezes pressão demais estraga, piora”. Por isso, também, garante que não há um sistema de punição para quem, na pressa, comete erros.
“Eu acho que você não trata gente assim. Mesmo. Aí é uma questão de convicção pessoal, eu trabalho com profissionais, eu não preciso descontar algum tipo de ponto de um jornalista para ele não cometer erro. Ele não pode cometer erros. Ponto. E quando ele cometer ele tem de ter um ambiente para que ele se sinta confortável pra [dizer] “ih, caralho, errei. E foi feio”. Pra mim é muito mais importante identificar tão rápido quanto possível os erros, principalmente os feios, do que ter um estado de vigilância (…)”. (Doria, entrevista à autora).
Porém, os relatos obtidos no decorrer desta pesquisa indicam que a luta pela audiência é contraditória com o discurso de busca da qualidade e frequentemente gira em torno de banalidades – como não poderia deixar de acontecer, aliás, porque em geral as matérias de maior apelo são desse tipo. Um dos entrevistados lamentou: “A única coisa que eles pesam é quando a gente consegue botar primeiro que a concorrência. Aí isso entra na avaliação da redação. (…) Ok, mas tava bacana a matéria? Foi completa?”
Como funciona a competição
Todos os veículos competem para publicar seus links na globo.com, porque a partir dali a matéria terá muito mais visualizações. Esse controle é feito através do Google Analytics: os números oscilam como as ações da Bolsa. De acordo com os depoimentos, uma matéria que está sendo lida por, digamos, 200 pessoas, passa a ser lida por 1.500, 3 mil, 10 mil quando entra na globo.com. [Em situações especiais, como a do acidente de avião que provocou a morte do candidato à presidência Eduardo Campos (em 13/8/2014), esse número dispara. No caso, o site do Globo bateu recorde de audiência porque conseguiu emplacar primeiro a matéria na globo.com.] Essa situação acaba pautando os repórteres, interferindo nos apelos que eles precisam utilizar no próprio texto para tornar a sua matéria atraente para o portal. “Você tá preocupado com a invasão da Palestina, vai ver a maior notícia do dia, ‘10 plásticas que deram tremendamente errado’. É essa a notícia do dia. É desestimulante…”, lamenta um entrevistado. Alguém colocar uma foto de biquíni no instagram é notícia, como tantas vezes aparece na globo.com? Se a disputa é por esse espaço, temos inevitavelmente um problema.
Inicialmente os repórteres ficavam “vendendo” a sua pauta, via e-mail, como se fossem assessores de imprensa de si mesmos. Depois, foi criado um sistema para facilitar essa comunicação. É através desse sistema que surgem algumas discussões: por exemplo, o protesto contra a publicação de informações praticamente instantâneas, que indicaria deslealdade na concorrência. Segundo os entrevistados, isso ocorre porque os repórteres entram no sistema, colocam só o título da matéria, o subtítulo, um nome e mandam: fica valendo o horário. Depois completam o texto. É por isso que, eventualmente, podemos clicar num link que não leva a lugar nenhum [Isso ocorre também quando se trata de acontecimentos de grande relevância, a respeito dos quais só se tem a informação pontual – por exemplo, a queda do avião da Malaysia Airlines na Ucrânia, em julho de 2014 –, mas então dar apenas o título é plenamente justificável, pois importa alertar imediatamente para a ocorrência de um fato grave, antes mesmo de se conseguir apurar os detalhes.], ou que apresenta um texto cuja redação mal foi iniciada.
A necessidade de alimentar o facebook do jornal também gera insatisfação, nem tanto pelo excesso de trabalho, mas pela sensação de não se estar produzindo jornalismo. [Em sua dissertação de mestrado sobre a (falta de) política de correção de erros no jornalismo on line, Lívia Vieira (2014, p. 237) estranhou quando o diretor de conteúdo do portal R7, Luiz Pimentel, se referia como “redatores” a um determinado grupo de repórteres. Ele esclareceu: “Tem muito pouco repórter que faz reportagem. O redator é uma prática de fazer reportagem pelo Google, de fazer a apuração pelo Google. Por essa urgência muito maior, tem muito menos espaço para o olho a olho, pra pessoa chegar e fazer uma reportagem, ter um tempo de apuração, conseguir concatenar as ideias. Hoje os jornalistas em internet são muito mais redatores do que repórteres. Por isso que eu falo redatores, porque são 80% redatores e 20% repórteres, ou mais”. O que reitera a tendência ao “jornalista sentado”, já mencionado em tantos trabalhos acadêmicos.] A necessidade de “mostrar serviço” previsivelmente desvirtua o que seria o papel da reportagem: quando não há notícia, procura-se um fait-divers qualquer para postar no facebook ou na globo.com. Do contrário, pareceria que o repórter está ocioso.
Os relatos obtidos na pesquisa também apontam a permanência da divisão entre o “pessoal do impresso” e o “pessoal do site”. Pelo menos até o momento, o impresso continua com mais prestígio, de modo que, pelo menos em algumas editorias, os repórteres do papel não colaboram com o site. As avaliações internas continuam a ser voltadas para o papel, os prêmios do mês são dados principalmente às reportagens que saem no papel. [Há casos em que uma grande cobertura (por exemplo, a do Mensalão, ou a de Eleições) ganha prêmio. Aí toda a equipe (do site e do papel) é contemplada.] Isso gera um desconforto e uma sobrecarga para quem lida com o site, pois os responsáveis por alimentá-lo terão de trabalhar dobrado se quiserem se destacar.
As diferenças são notadas também nos próprios critérios editoriais: frequentemente, matérias que não têm destaque no impresso – às vezes, deliberadamente, de acordo com a velha tática de “esconder” um tema politicamente sensível – aparecem em manchete no site e por ali ficam horas a fio. [Às vezes, entretanto, os controles são rígidos. Um exemplo foi a matéria publicada na virada para a edição da manhã do dia 19/7/2013 sobre um problema enfrentado por ativistas da Mídia Ninja, o mais atuante coletivo de mídia alternativa durante as manifestações que explodiram no mês anterior, impedidos de entrar no Palácio Guanabara, sede do governo do Rio, onde se realizava uma coletiva. “Nova mídia transmite protestos ao vivo, mas não pode entrar em coletivas de imprensa” era o título da matéria que, aparentemente, contrariou interesses, pois foi logo retirada do ar e não saiu no jornal impresso. Mais que uma violência, o jornal cometeu um erro: pois, nos tempos atuais, sempre é possível rastrear o que se publica, e a reportagem acabou disseminada pelo facebook, junto com a denúncia de censura interna e a cumplicidade entre o jornal e o governador. (Moretzsohn, 2013b)] Os controles também parecem mais rígidos sobre o impresso: alguns dos entrevistados mencionaram que notam críticas do comando da redação ao que sai no papel, o que raramente ocorre com o site. E não porque o site seja melhor – afinal, é ali que os erros se multiplicam, justamente pelas urgências do “tempo real”.
Política editorial, a questão de fundo
É possível trabalhar para que essa situação se altere – afinal, processos de mudança nunca são simples –, mas a questão vai além de uma adequação das rotinas. Tem a ver com uma mudança de cultura que depende de uma mudança política. O Globo é um jornal capaz de abrir espaço para temas polêmicos na área de comportamento – por exemplo, aborto, maconha, casamento e direitos dos gays – mas é rigorosamente conservador nas áreas de política e economia. A atenção maior ao impresso sugere uma estrita obediência ao interesse dos acionistas, que, como ocorre tradicionalmente, costumam tratar o jornal como instrumento ideológico estrito, colocando-o – às vezes mais explicitamente, às vezes mais disfarçadamente – a serviço das causas que querem defender [O jornalista Mauro Malin, por exemplo, escreveu reiteradamente no Observatório da Imprensa sobre os vínculos entre o jornal e os governos estadual e municipal do Rio. Na época do já referido episódio que causou mal-estar na redação – a capa que chamava os manifestantes presos de “vândalos” e que provocou protestos de inúmeros leitores –, foi contundente: “As pessoas que dirigem hoje a redação de O Globo e o estão reduzindo a sucursal da assessoria de imprensa do Palácio Guanabara e adjacências, que tentam criminalizar bisonhamente manifestantes e esvaziar as ruas, vocalizando o estado de espírito da velha e da nova direita do país, parecem não levar em conta que uma parcela de seus leitores é constituída por órfãos do Jornal do Brasil, pessoas avessas a essa retórica (que a TV Globo e a Globo News, registre-se, não praticam) e às correspondentes manobras políticas infames. Órfãos cronologicamente literais, ou seja, pessoas que têm idade para ter sido leitores do JB, e órfãos em sentido cultural, ideológico e político, que chegaram depois. (…) Mas é mesmo aquela velha história: o tigre não pode mudar suas listras. O velho Globo de Gustavo Corção e Eugênio Gudin paira como um espectro sobre os cérebros, bem menos privilegiados, dos atuais combatentes intelectuais da direita. A serviço de líderes políticos cuja ideologia é difícil discernir, como Sérgio Cabral Filho, Eduardo Paes e seus parceiros(as) planaltinos, salvo no que diz respeito a ‘se dar bem’ – refiro-me, claro, a agarrar-se ao poder que conquistaram”. (Malin, apud Moretzsohn, 2013a)], sem perceber que hoje as pessoas têm outras opções para se informar e outra capacidade de crítica.
De acordo com alguns dos entrevistados, esta seria a origem do descompasso entre a prioridade ao digital, afirmada agora, e a política editorial. Como disse um deles:
“A gente não tá trabalhando num céu de brigadeiro, a gente tá trabalhando numa zona de turbulência, (…) tudo o que precisa ser agregado a esse trabalho pra transformar o digital num negócio que tenha realmente relevância, que tenha realmente credibilidade, que faça realmente a diferença precisa ser priorizado”. (Entrevista à autora)
Para esses jornalistas, uma virada para o on line pediria um ambiente de mais liberdade, que estimule a criatividade, como ocorreria nas empresas “dot.com”. O mesmo entrevistado argumenta:
“Tem que liberar as pessoas pra serem criativas (…), é assim que as coisas acontecem… você precisa de novas ideias interativas, participativas, não dá mais pra fazer jornalismo estático, aquela linha ‘leia aí e essa é a verdade da vida’. Isso acabou, isso é mais um desafio. Novas formas de agregar leitor e conteúdo de uma maneira divertida, de uma maneira interativa, de uma maneira acadêmica, trazer esse leitor estudante que não sei se lê jornal como a gente…” (Entrevista à autora)
Aqui talvez haja alguma ilusão quanto à liberdade de fato existente nesses ambientes coloridos que fazem uma empresa se assemelhar a um parque de diversões, onde pode ser muito mais agradável trabalhar mas que, por isso mesmo, provavelmente mascaram com mais facilidade as relações de hierarquia e poder. Afinal – como dizia o Humpty Dumpty de Alice, em Através do espelho –, o importante é saber quem manda. Mas esta é uma questão apenas a registrar, porque exigiria uma abordagem que foge aos limites deste artigo.
Conclusão
A redação está vazia. Pouco a pouco os editores vão chegando, arrumam suas coisas, abrem seus computadores, leem jornais, preparam-se para a primeira reunião da manhã. O ambiente é sereno, os profissionais estão compenetrados mas também riem, o clima é descontraído e assim o tempo passa, suavemente, até o fechamento da edição impressa e o planejamento da edição do dia seguinte.
O vídeo que O Globo (2014b) divulgou para mostrar sua aposta na valorização do digital é enganoso. O “novo ritmo da redação” é muito mais acelerado que o anterior, como seria previsível e ficou claro nos depoimentos aqui expostos. Os nervos continuam à flor da pele e o esgotamento ao fim do dia é inevitável. Talvez ainda maior do que era antes, e não porque “o meio internet tem menos pausas”, mas porque a empresa ainda não conseguiu estabelecer uma rotina que evite a sobrecarga diante desse meio.
Aqui, entretanto, estaríamos falando de combater a exploração no trabalho, independentemente do meio em que se atua, o que implica uma luta política que os jornalistas, historicamente, têm dificuldade de assumir, quando o que está em jogo é o próprio emprego. A propósito, Fábio Pereira e Zélia Adghirni (2011, p. 48) notam que, “com receio do desemprego, a maioria (…) mantém distância das reivindicações sindicais, mesmo para a demanda de ‘múltiplo salário’ para jornalista multimídia”.
Não deixa de ser significativo que essa mudança radical em benefício da informação on line procure inverter também a própria representação do jornalista e do jornalismo: nada daquela imagem típica do repórter em mangas de camisa, cabelos ao vento, correndo atrás da notícia, afobado pela urgência em divulgar informações de última hora. Nada do sufoco no fechamento. Jornalismo hoje seria uma atividade suave, que se realiza num ambiente silencioso, fechado, climatizado, com a atenção voltada para as telas de computadores, tablets, smartphones.
É claro que só essa descrição permitiria discorrer longamente sobre o atual processo de produção da notícia: afinal, onde estão os repórteres que vão alimentar as telas de cristal líquido? Melhor ainda: no que se estão transformando os repórteres – e o jornalismo, por consequência –, agora que “notícia” passa a ser chamada de “conteúdo”?
Como observei em outra ocasião (Moretzsohn, 2014), “conteúdo” pode ser qualquer coisa, desde horóscopo, palavras cruzadas e frivolidades até informações da mais alta relevância. Entretanto, se pensarmos em “conteúdo” como “substância”, talvez possamos sugerir o que falta, fundamentalmente, em todas essas recentes mudanças: apostar na substância para ter o que dizer através de uma nova estética.
O tipo de concorrência estabelecido entre os próprios veículos das Organizações Globo, a luta por publicar primeiro uma informação, independentemente de sua relevância, vão na contramão da propalada defesa da qualidade. A necessidade de estar atento às várias audiências que emergem com a internet certamente põe problemas novos para quem comanda uma redação. Como resumiu Luciano Martins Costa (2014), “numa sociedade hipermediada, o que está em crise é justamente o papel da mediação, não a mediação no papel”.
A essa questão de fundo se articula outra, raramente colocada, sobre os mecanismos internos de controle, a relação entre as hierarquias, o tratamento dispensado pelas chefias a seus comandados para fazer prevalecer a linha editorial. Com a emergência de novos meios, enfrentar esses problemas é uma questão de sobrevivência para a empresa. Da parte dos jornalistas, por ora, alguns dos que ousaram confrontar essa situação ou tentaram explorar as brechas existentes acabaram demitidos ou preferiram deixar o emprego. Outros se recolheram, como seria previsível, mas não quer dizer que estejam conformados: os desdobramentos dos conflitos e contradições brevemente expostos aqui dependerão, como sempre, de condições objetivas que precisam ser acompanhadas de perto para a formulação de perspectivas minimamente consistentes nesse contexto marcado por tantas incertezas.
Referências
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)