Durante a campanha eleitoral, e principalmente no segundo turno, a presidente Dilma Rousseff foi demonizada como encarnação do PT odiado por segmentos da classe média. Gente que dizia “eu detesto o Lula” passou a dizer “eu detesto essa Dilma”. Desse ponto de vista, ela nunca foi tão PT. Isso acontece num momento em que as relações dela com seu padrinho político e com poderosos setores do comando petista chegam a um grau de desgaste indisfarçável, situação de que dá conta, com riqueza de informações, reportagem de Daniela Pinheiro para a revista piauí,“A afilhada rebelde. O estilo, as ideias, as decisões e a ambígua relação de Dilma com Lula“ (número 97, outubro de 2014; para assinantes).
Não é preciso ler com lupa, ou nas entrelinhas, para captar o clima azedo que infesta o PT. Na capa da edição de 1º de novembro da Folha de S.Paulo, lê-se na chamada para artigo semanal de André Singer, porta-voz do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato e respeitado quadro petista:
“Após a alta dos juros, surge a informação de que o governo prepara um pacote com redução dos gastos públicos. Na campanha, Dilma disse que os tucanos só sabiam cortar e que ela faria diferente.
“A presidente parece não perceber que dizeres contam e que o preço de afirmar uma coisa e fazer outra é maior do que parece.”
Vinte e seis entrevistas
Com dois meses, verba para viagens e para almoços e jantares com convidados, uma boa pesquisa na mídia jornalística sobre as relações entre criatura e criador, desde a posse dela na Presidência da República, em 2011, e 26 entrevistas, das quais só seis a descoberto, do que resultaram abundantes declarações anônimas – os famosos e questionáveis offs entre aspas –, Daniela Pinheiro produziu o mais importante material capaz de orientar os interessados em saber como essas duas figuras cardeais da cena brasileira se avirão nos próximos meses e anos – avir-se é destino ao qual os dois estão condenados pelas circunstâncias.
Recapitulação preciosa
A qualidade do texto é atestada não só pela repercussão que teve, medida em redes sociais. A recapitulação do processo político feita por Daniela será abençoada por historiadores que, no futuro, quiserem entender melhor o que uniu e desuniu Dilma e Lula entre 2011 e 2014.
Não se trata de mirar apenas um horizonte longínquo. Algumas das questões abordadas no texto pipocaram nos jornais dos dias seguintes à vitória petista. Batalhas com aliados e petistas no Congresso Nacional. Rumos da economia, futuros ocupantes do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Casa Civil. Petrobras (a matéria antecipava, sem entretanto dar uma explicação, que o nome de Renato Duque, diretor de Serviços e Engenharia, merecia ser guardado pelo leitor). Hipotético caixa dois na campanha sucessória. Possibilidade de prisão de donos de empreiteiras. Recrudescimento das pressões pela aprovação de uma regulação da mídia que muito provavelmente conterá ameaças de censura prévia aos meios de comunicação.
As passagens que indicam atrito são muitas e fortes. Seguem-se algumas mais contundentes.
Esporros seletivos. “Um ex-ministro do governo Lula, com quem Dilma trabalhou diretamente na Casa Civil, presenciou cenas de descontrole. ‘O que é perverso é que os esporros dela são sempre para quem está embaixo. Ela sabe com quem pode gritar. É que nem lobisomem, sabe para quem pode aparecer’, disse, irônico.”
Nem gerentona, nem faxineira. “Numa manhã de agosto, um dos dirigentes do Instituto [Instituto Lula] falava sobre o governo e as eleições vindouras. Segundo ele, Dilma enfrentava uma combinação de fatores preocupante: a crise internacional, o ressentimento da elite – que se viu dividindo aeroportos e tendo de pagar hora extra para a empregada doméstica – e a dificuldade de vender o próprio governo. ‘Gastaram meses querendo emplacar a gerentona e a faxineira. Isso pegou muito bem para a elite, mas não quer dizer nada para o povão’, comentou.”
A pressão do “Volta, Lula”.“A eterna comparação entre ela e Lula também a incomodava. Ela sorria amarelo quando ele falava em público sobre ‘o criador e a criatura’ ou quando explicitava que o governo era ‘meu e da Dilma’, ratificando ataques de adversários. Ela também percebia que o ‘Volta, Lula’ aparecia sempre nos momentos em que o governo estava fragilizado, quase como um corretivo a sua gestão.”
Sem conversinha mole. “Nos primeiros dois anos, Dilma havia feito algo se mover no pântano do fisiologismo brasiliense. ‘Acabou a conversinha mole, tangenciada, uma coisa querendo dizer outra, segundas intenções. Com ela, não tem’, comentou um ministro do PMDB durante um jantar em Brasília. Um ex-ministro paulista também me disse: ‘Ela é honesta, não pensa em dinheiro e não tem filho para fazer negócio. Isso já cria uma barreira para as conversas esquisitas’.”
Família Lula ferve. “Naqueles dias [após a morte de Eduardo Campos], um influente empresário, com negócios no Sudeste e Nordeste, foi recebido para jantar na casa da família Lula em São Bernardo do Campo. Como era domingo, pediram pizza pelo telefone e se reuniram em volta da mesa. O assunto logo resvalou para o governo. Ele, que estava decepcionado com o PT, externou sua opinião. Foi a deixa para Marisa desancar Dilma mais uma vez: ingrata, falsa e traidora foram alguns dos adjetivos que empregou. Os filhos de Lula corroboravam a opinião da mãe. O ex-presidente permaneceu calado.”
Se ficar, o bicho come. “As dificuldades do governo, segundo meu interlocutor [“um importante dirigente do PT”], nunca foram de macroeconomia, mas de estilo. ‘Arrogância’, ele disse. Argumentei que, se eleita, ela poderia fazer um governo mais livre, sem se preocupar com Lula ou com o PT, já que provavelmente seria seu último cargo político na vida. Ele balançou a cabeça e deu um sorrisinho. Antes de se retirar, arriscou o porvir: ‘O fato é que, se ela ganhar, foi o PT que ajudou. E aí, no dia 1º de janeiro, o governo passa a funcionar no Ipiranga [bairro paulistano onde fica o Instituto]. Se perder, ela vai levar essa culpa para sempre. Infelizmente, isso é a política’.”
Virtudes caras
Uma leitura atenta e refletida da reportagem sugere que alguns dos conflitos com Lula e o núcleo duro petista decorrem de qualidades de Dilma: a civilidade traduzida num cartão enviado a Fernando Henrique Cardoso nos 80 anos do ex-presidente, a instalação da Comissão da Verdade, a Lei de Acesso à Informação. O relato contido no trecho abaixo, exemplificativo, mostra uma presidente sensível ao clamor das ruas:
“Paradoxalmente, depois de junho [de 2013], teve início o período mais profícuo do governo Dilma. Em poucos dias, os protestos fizeram o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, governos recuaram no reajuste do transporte público e o Judiciário mandou para a cadeia um político acusado de corrupção – o deputado Natan Donadon, do PMDB de Roraima. O Planalto emplacou o Mais Médicos e conseguiu aprovar no Congresso a lei para destinar à educação o dinheiro dos royalties do petróleo.”
Repórter de política
Daniela Pinheiro se formou na Universidade de Brasília, cidade onde nasceu, em 1972, filha de uma funcionária do Senado e de um funcionário da Infraero, e morou até os 23 anos. Depois de formada, passou um ano na França estudando literatura. Aos 20 anos, após ter feito o curso de trainees da Folha de S. Paulo, começara a trabalhar no jornal cobrindo a CPI do Orçamento. Após a estada na França, voltou para a Folha, depois foi para a Veja, onde ficou, de modo intermitente, durante dez anos, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília. Foi da primeira turma da Época, mas ficou pouco tempo na revista. Em seguida, participou brevemente de uma tentativa de renovação do Jornal do Brasil em 2001 e voltou para a Veja, onde ficou de 2001 a 2007. Está há oito anos na piauí. É curadora do primeiro Festival piauí de Jornalismo, que se realiza em São Paulo nos dias 15 e 16 de novembro.
Desde sua volta da França, não fez mais nenhum curso. “Trabalhei. Como uma cachorra…”, ironiza. Sempre cobriu política, “numa pegada mais, se é possível falar assim, comportamental da política”, especifica. “Sempre fazendo perfis, matérias desse tipo.” Pelo menos três perfis já haviam dado o que falar: os de Marina Silva (“A Verde. Um perfil de Marina Silva“, janeiro de 2010) e Ricardo Teixeira (“O presidente. Ricardo Teixeira é o dono do futebol brasileiro, e quer se eleger presidente da Fifa“, julho de 2011), e, fora da cobertura de política, o de uma médica acusada de apressar a morte de pacientes (“A doutora. As acusações contra a médica de Curitiba e o que ela diz sobre a morte de sete pacientes numa UTI“, junho de 2013).
Eis a entrevista dada ao Observatório da Imprensa por telefone.
Tempo e dinheiro
Quanto tempo e que recursos você pôde usar para apurar e escrever esta matéria?
Daniela Pinheiro – Fiquei apurando dois meses. A ideia inicial era de uma matéria sobre a Dilma, mas não sabíamos o que fazer. Já tínhamos feito dois perfis dela na piauí [“As armas e os varões. A educação política e sentimental de Dilma Rousseff“, abril de 2009, e “Mares nunca dantes navegados. Como e por que Dilma Rousseff se tornou a candidata de Lula“, junho de 2009, ambas de Luiz Maklouf Carvalho; para assinantes]. A ideia era a Dilma no poder. Como ela tomava decisões, lidava com as pessoas. Isso também tinha saído muito na imprensa, esse negócio de ela dando bronca.
Você pôde viajar para Brasília, São Paulo, tranquilamente?
D.P. – Sim. Na piauí a gente não faz entrevista por telefone.
A pauta não foi uma “pensata”, foi uma pauta propriamente dita? Um retorno a Dilma, no poder.
D.P. – Mas eu não sabia o que seria exatamente o foco. Ao longo das milhões de conversas que tive, eu fui vendo que no final da conversa, conversa institucional, em que todo mundo falava “Ah, ela é assim, ela fez isso”, sempre faziam uma fofoca da relação entre ela e o Lula. A última coisa que as pessoas falavam. Na saída, assim, a pessoa me contava um negócio. Depois que isso tinha acontecido já umas seis ou sete vezes, me deu um estalo. “Opa, a matéria é essa!” A matéria era a relação dela com o Lula.
Obviamente, teve um grande problema. Das 26 pessoas que eu entrevistei, como escrevi no último parágrafo do primeiro bloco, ninguém queria aparecer. E isso foi uma novidade, também, na piauí. Ninguém até então tinha feito uma matéria baseada em offs entre aspas.
Por que Lula não foi procurado?
D.P – Lula foi procurado para dar entrevista, por intermédio do chefe da Comunicação do Instituto Lula, José Chrispiniano. Ele não quis dar entrevista. O meu erro foi não ter colocado na matéria que ele também tinha sido procurado [Dilma e Aloizio Mercadante se recusaram a dar entrevista].
Após a decisão de centrar a matéria na relação entre Dilma e Lula, houve alguma reviravolta na apuração?
D.P. – Não. Nessas matérias a gente tem que adotar um fio condutor. No caso, uma coisa cronológica, desde que ela começou na Presidência. O relato cronológico seria meu fio condutor, entremeado com as coisas do presente.
Deu nos jornais
Você obteve informações lendo, vendo, ouvindo a mídia jornalística?
D.P. – Sim. Para montar a sequência cronológica uma das coisas que eu fiz foi uma grande pesquisa em banco de dados, desde 2010. Luiza Miguez, checadora da piauí, fez uma pesquisa longa para mim sobre os últimos três anos e meio de governo, e me fez um clipping, de boa qualidade. Por ele eu me guiei, do ponto de vista cronológico. Tem muita coisa que a gente não lembra, por exemplo a votação do Código Florestal, como ocorreu, mas isso saiu nos jornais. Eu gastei um bom tempo relendo notícias dos últimos quatro anos.
Tem coisas na matéria que saíram de declarações, ou do clipping, e fazem parte da reconstituição histórica. Mas se fazem acompanhar por descrição de sentimentos de uma pessoa que não foi entrevistada, no caso, Dilma. É uma interpretação sua, a partir da premissa de que isso seria lógico?
“Sem avisar Dilma, Lula desembarcou em Brasília para acalmar os ânimos dos correligionários. Reuniu-se com o vice-presidente, Michel Temer, foi fotografado ao lado de José Sarney e Renan Calheiros, dourou a pílula e, para alguns, atribuiu à inexperiência da sucessora a confusão, afinal contornada. A mensagem ficou clara: a luz do poste era ele. Dilma, é lógico, não gostou. Sentiu-se atropelada por Lula, enquanto ele acreditava estar apenas acomodando a situação.”
D.P. – Eu conversava com pessoas do governo para ver se era isso que tinha acontecido. Não posso acreditar só numa coisa que saiu nos jornais. Lula ter atribuído os problemas à falta de experiência de Dilma foi algo que duas pessoas que participaram dos eventos me falaram. E várias pessoas me contaram que ela tinha ficado irritada com a situação. Ali é o germe do conflito. Não é suposição. Não tem nenhuma suposição nesta matéria.
Um momento. Veja este trecho: “Em público, ele [Palocci] pediu demissão, aceita por ela após vinte dias de crise. [Dilma] Quis para o lugar alguém em quem pudesse confiar, mas sobretudo mandar.” Isto é uma interpretação.
D.P. – Isto é interpretação. Interpretação de quem estava do lado dela e falava: “Olha, ela não quer ter um Zé Dirceu, um cara que se sobreponha a ela e que não obedeça a ela. Não é o perfil dela.” Essa era a frase original.
Algumas passagens mostram que Dilma pode ter contrariado petistas por ter determinadas qualidades.
D.P. – Pessoas do núcleo do PT vêm a Dilma como uma forasteira. Falavam para mim: “Desde o começo. E ainda manda carta para o Fernando Henrique, onde é que já se viu isso?” E listavam esses indicadores do que seria uma pessoa que não tem o DNA do partido.
Você escreve: “Com a imprensa, o clima era de início de namoro.” Você sentiu isso com muita clareza?
D.P. – Nas matérias, sim.
E não só no noticiário. A Veja fez um editorial com a seguinte frase: “Sigam-na os que forem brasileiros.”
D.P. – Tem uma matéria da Veja que eu pesquisei, uma comparação, no primeiro mês do governo, entre ela e o Lula. E era impressionante como era positiva para ela.
Lua de mel com elites
Teria sido uma tentativa da imprensa de separar os dois, colocar uma cunha entre eles?
D.P. – O que eu escrevo no começo é que quando ela aparece para a opinião pública e se vê que é uma pessoa que fala português direito, tem curso superior e não sei o quê, a velha dicotomia entre ricos e pobres… ela viaja para o exterior, fala inglês, era o oposto do que estava acontecendo, os anos Lula. A elite se encantou com isso. O conceito de elite inclui a imprensa.
Os jornalistas se encantaram ou não?
D.P. – Ninguém sabia o que esperar da Dilma. Não sei dizer, em geral. Sobre as matérias que eu li, o tom era muito de armas baixas, vamos apostar, “ela parece que é isso, parece que é aquilo”.
Você acha que de fato se estabeleceu um “dilmês”, um linguajar próprio da Dilma?
D.P. – Ouvi muitos discursos da Dilma, muitas falas dela na televisão, em palanque. Muitas, mesmo. É o que eu escrevi, essas elipses. Ela vai colocando vírgula na frase. Parece que o pensamento dela vai mais rápido.
Ela não é uma boa oradora.
D.P. – Não é. Isso pesou negativamente para ela. Dentro do próprio partido. Lula sempre ficava dando conselhos para ela treinar, falar como se estivesse falando com um amigo.
Off entre aspas
Qual é sua posição sobre o uso de off entre aspas, como fazem publicações que estão entre as mais importantes do mundo–The New York Times, The Economist –, mas que não é prática de outras, tão importantes quanto as primeiras, a exemplo do Financial Times? Devo registrar minha posição pessoal, que é contra o uso de off entre aspas. Você disse que foi a primeira vez na piauí que se usou esse recurso.
D.P. – Numa reportagem inteira, sim.
Uma reportagem estruturada em cima de off.
D.P. – Sim. Teve uma discussão na revista sobre se faríamos isso, eu banquei, o meu editor, Fernando Barros e Silva, bancou. Eu tenho 23 anos de profissão em Brasília. A maioria das pessoas com quem eu falei eu conheço há 15, 18 anos. Tem uma relação de confiança muito grande. Eu via que, se não fosse dessa maneira, eu não poderia estruturar a matéria como ela saiu. Não teria como contar algumas coisas. Eu também não acho bom. Algumas pessoas podem dizer: “É fácil apurar assim”. Não é fácil. Para colocar um off entre aspas você tem que checar a coisa com quatro ou cinco fontes. Quando é uma opinião, tudo bem. O cara tem a opinião dele. Talvez eu devesse ter colocado junto às declarações a explicação de por que as pessoas não queriam aparecer. O cara do Ministério da Fazenda que pediu anonimato, pode ser porque ele quer participar do novo governo e teme ser prejudicado. O New York Times faz isso. Explica por que a pessoa não quis ser identificada. Para você até aplacar alguma dúvida no sentido de que você está protegendo a fonte. Não estou protegendo ninguém. Estou fazendo algo que é combinado: eu falo com você se for em off. Isso é totalmente possível no jornalismo. E está certo. Mas é óbvio que eu acho muito melhor quando a gente pode dar as coisas em on.
Intriga e teatralização
Minha preocupação em relação ao off entre aspas é dupla. Primeiro, ele é muito usado para fazer intriga. O cara, sem se mostrar, atira. Atira pelas costas. Segundo ponto: o off entre aspas é uma teatralização. Se você, Daniela, publicar que você ouviu um fulano, não precisa dizer quem é, falar isso assim, assado, você tem credibilidade. Eu, como seu leitor, vou pensar: a Daniela é séria, ela não inventou isso aí. Alguém falou. Não preciso ler entre aspas. A força da coisa é grande do mesmo jeito. Por exemplo: “[Renato] Duque foi indicado por José Dirceu. (…) É bom guardar esse nome”. Não tem aspas, é a Daniela dizendo para o leitor. Colocar entre aspas é jogar com a emoção.
D.P. – Pensando agora com você, acho que tem alguns pontos. Nossa profissão é uma profissão de gente que ganha mal e trabalha muito. E sempre. Não vai ter aposentadoria, como meus pais têm, de governo. Vou trabalhar até 80 anos, provavelmente, porque não tenho onde cair morta. A única coisa que a gente tem é o nosso nome. E isso é muito claro na minha cabeça. Trabalhando em Brasília, convivendo com a relação que se tem em Brasília, é muito tênue a fronteira para escorregar. Eu tenho muito claro na minha cabeça que eu nunca escorreguei. Acho que as pessoas me vêm como nunca tendo escorregado. Falam comigo. Mesmo pessoas das quais eu fiz perfis e não gostaram, sabem que não teve uma sacanagem, uma mentira. Isso se deve à credibilidade do veículo e do repórter. A única coisa que eu tenho é isso. Se eu não cuidar do meu nome… Porque numa dessas eu me ferro, se eu inventar alguma coisinha para o meu texto ficar melhor.
É verdade. Mas ao fazer isso, você contribui indiretamente para legitimar o uso do off entre aspas.
D.P. – Mas eu não estou para catequizar ninguém. Nas minhas matérias é a primeira vez que isso foi usado. Eu não acho que seja uma missão contribuir ou não para o uso de offs entre aspas. É como eu falei: eu prefiro matéria sem off, mas eu prefiro a matéria à não-matéria. Essa é uma matéria.
Eu anotei na margem da revista: “Sou contra o off entre aspas, mas as frases são ótimas”. De fato.Mas acho que tudo isso poderia ter dito sem aspas (que seriam reservadas para declarações em on). Agora, todos nós estamos tão acostumados às aspas… Essa é uma batalha inglória. Já perdida, para mim, no primeiro momento. Mas eu não uso. Faço questão de ser coerente com a minha posição.
D.P. – Acho que é melhor, sim, matéria sem off entre aspas, mas acho que tem matérias que só existem assim. Esta matéria, se não fosse assim, não teria sido feita. É uma bandeira sua, que você tem a ferro e fogo. Mas no mundo inteiro se publicam matérias assim. Esta é uma matéria sobre uma presidente da República que corria o risco de perder a reeleição. Você tem uma situação que é muito limite. Agora, eu não vou fazer um perfil da Ivete Sangalo e usar off entre aspas. Seria ridículo, absurdo. Mas com uma presidente da República, a vinte dias das eleições, com o risco de perder no segundo turno, não existia outra opção. Tanto que ninguém fez uma matéria assim. Nem em on, nem em off. É uma situação muito particular.
Encruzilhada do jornalismo
O que você acha que precisa ser feito para reforçar as redações e melhorar o trabalho da mídia jornalística?
D.P. – Esse é o tema de um festival que estamos fazendo agora. Sou curadora do primeiroFestival piauí de Jornalismo, que se realiza agora em novembro, em São Paulo. Chamei um monte de gente de fora e daqui do Brasil para falar sobre isso. Estamos nessa encruzilhada de uma maneira inédita. Quem falar que sabe o que vai acontecer, como se faz para melhorar, está mentindo.
Eu acho que jornalismo bom se faz com dinheiro e tempo. Isso é uma coisa que os veículos de comunicação abandonaram. As redações têm gente que ganha muito pouco, por consequência inexperiente, as pessoas têm que fazer as coisas para ontem.
A grande reportagem tem como base de apoio dinheiro e tempo. Você tem que gastar dinheiro para fazer uma boa reportagem. Tem que deixar o seu repórter viajar, tem que dar dinheiro para ele jantar com uma fonte, dar comida para o cara te passar informações no meio do jantar, retirar a fonte do ambiente dela, aquele ambiente institucional no qual ela vai te dar um monte de respostas prontas. Isso é o que eu tento fazer. Eu raramente faço entrevista num gabinete. Eu tenho o privilégio de estar numa revista que é exceção nesse aspecto. Ela me dá tempo e condições financeiras para fazer esse trabalho. É uma exceção da exceção da exceção.
Nonprofit
Essa é uma das razões pelas quais ela se destaca tanto. Porque tem essa retaguarda. Mas é um caso excepcional, porque se trata basicamente de um mecenato.
D.P. – Mas isso está acontecendo no mundo inteiro. O próprio Guardian, a ProPublica,essas grandes instituições de jornalismo investigativo – não estou falando que a piauí é de jornalismo investigativo –,essa coisa do nonprofit, de serem instituições que não vão dar lucro, é quase um mecenato, mesmo, é um investimento de gente que está botando dinheiro em nome de uma coisa em que acredita. A ProPublica é isso, e os caras foram os primeiros na internet a ganhar dois prêmios Pulitzer, com duas investigações amplas. No caso do Guardian, uma família milionária criou uma fundação que repassa dinheiro anualmente ao jornal.
Na minha opinião, nem esse caminho nem o crowdfunding podem resolver o problema. A meu ver, o problema tem que ser resolvido pelos jornais e revistas no meio digital. Os anunciantes já perceberam que o anúncio de revista, de jornal, televisão, rádio, é um canhão que atira para todo lado e você não sabe direito qual é o retorno. A não ser quando se faz uma promoção. Aí sabem direitinho. Fora disso, não sabem. De que adianta colocar em horário nobre da televisão o anúncio de um automóvel que custa 80 mil reais? Quantas pessoas vão comprar? Na internet, é o contrário disso. É possível medir totalmente.
D.P. – É segmentado, você vê a cara daquele público.
E você vê o retorno. É claro que os anunciantes vão migrar para aí, até porque as pessoas estão migrando para o meio digital. O modelo de uso do digital é a mesma coisa que você comprar a sua televisão, ou o seu rádio, a emissora não precisa se preocupar em distribuir para cada residência. O jornal e a revista têm que fazer isso. E é caríssimo distribuir. Sem falar em comprar papel, tinta, imprimir. O que me interessa é a redação. Tanto faz se o suporte é atômico ou digital. O que eu quero saber é como se estrutura uma redação. Para isso, efetivamente é preciso ter tempo e dinheiro, que são a mesma coisa: dinheiro. Como é que essas empresas vão se reorganizar para ter o dinheiro necessário para fazer bons jornais? Eles não estão botando pessoas para fora porque são malvados. Conhecem o problema. Eles não têm é a grana, mesmo.
Jovem lê
D.P. – Vai ficar todo mundo muito segmentado, falando para um público muito menor. Tem muita coisa. A gente não sabe o que vai acontecer. Nunca experimentamos isso antes, não temos nem ideia. O exemplo da piauí é assim: temos 60 mil leitores, há muito tempo. Esse é o público para o qual vamos falar, mesmo. Poderia ser mais. A gente tem que entrar melhor na internet. Acho que isso ainda é uma falha da piauí, não termos uma versão para iPad boa, assinaturas com conteúdo extra, coisas que o pessoal faz e funciona. Na New Yorker funciona muito bem. Uma revista que fez seu nome, cem anos, quase, escrevendo em papel, fazendo longas reportagens, não perdeu uma assinatura, pelo contrário, ganhou um monte, na internet.
É um erro as pessoas acharem que a grande reportagem não é interessante, que agora é tudo notícia rápida, com 140 caracteres. Tem um mercado de gente que lê, gente jovem. Jovem lê. Você vai às bienais do livro, é absurdo, tem fila. Você pode falar: uns livros de merda. Não interessa. Eles estão lendo. Na França, eu me lembro, todo mundo lia. O motorista do ônibus para no sinal, está lendo. Só porcaria. Não interessa, o fato de ler é que é importante. Quando você coloca 65 milhões de pessoas com celular na mão podendo ler, como você faz essa pessoa consumir notícia que não seja fofoca sobre celebridades? Essa é uma grande questão.
Edição, emoção
Detalhe de edição: na página 22, um cartum de Angeli, de uma sequência que ocupa o número 97 da piauí inteiro, reforça – involuntariamente, porque os desenhos foram feitos originalmente para a Folha de S. Paulo – o clima para um das declarações mais contundentes transcritas, à qual faz referência, aliás, a legenda da caricatura de Dilma que abre a reportagem, na página 18. É uma fala de Marisa Letícia que aparece na página par seguinte, a 24:
“Foi a deixa para Marisa desancar Dilma mais uma vez: ingrata, falsa e traidora foram alguns dos adjetivos que empregou. Os filhos de Lula corroboravam a opinião da mãe. O ex-presidente permaneceu calado.”
Eis as três imagens que mostram como a mise-en-page pode reforçar determinadas inclinações do texto.
>> A charge da página 22:
>> A caricatura que abre a reportagem (na versão digitalizada, sem a legenda):
>> A legenda da página 18 na edição impressa: “Durante um jantar com um empresário, a ex-primeira dama Marisa Letícia e os filhos de Lula atacaram Dilma: ‘Ingrata, traidora, falsa.’ O ‘Volta, Lula’ começou na casa do ex-presidente”