Ao sair do cinema depois de ver o documentário Les gens du Monde, de Yves Jeuland (ver trailer aqui), fui invadida por uma certa nostalgia do frenesi de uma redação de jornal. Mas ela foi efêmera. O sentimento que prevaleceu foi de inveja dos jornalistas do mais importante diário francês, situado num prédio do Boulevard Blanqui que reproduz na fachada envidraçada uma página do vespertino, um dos jornais mais respeitados do mundo.
O documentário é um mergulho na agitação de uma das faces da campanha presidencial de 2012. Os jornalistas da editoria de política do Le Monde – que o cineasta acompanhou por semanas para mostrar a campanha presidencial no jornal de referência da imprensa francesa – fazem jornalismo como o concebem: com independência. O parti pris de Jeuland foi mostrar o dia a dia da cobertura da campanha de François Hollande no Le Monde: como foram feitas as manchetes e as escolhas editoriais daquele período.
A corrida contra o tempo para fechar o jornal com o que acontece até às 10 horas da manhã é vista nos menores detalhes (Le Monde é um vespertino). As reuniões de pauta, a concorrência da internet que criou uma nova realidade com a qual os impressos têm que lidar, os deslocamentos dos repórteres em avião ou trem acompanhando o candidato, a fatiga dos jornalistas encarregados da cobertura, tudo é vivido pelo espectador em 1h20 do documentário.
A campanha do candidato da direita, Nicolas Sarkozy, coberta com a mesma independência, não é abordada no filme. No final da campanha presidencial, o Le Monde repetiu o que sempre faz às vésperas de uma eleição: declarou e justificou seu apoio à candidatura socialista, sem recomendar o voto a seus leitores. Até esse apoio declarado é objeto de debate entre os jornalistas, pois entre os leitores do cotidiano há quem discorde dessa postura. Uma jornalista lembra, inclusive, que o New York Times faz isso sempre sem que ninguém se sinta chocado.
O que sempre foi
Apesar de ter trabalhado em alguns dos principais veículos da mídia cotidiana brasileira (só não trabalhei no Estado de S.Paulo), nunca vivi a experiência de fazer um jornal em que os jornalistas decidem o que vão cobrir, e como vão fazê-lo. Et pour cause. Essa não é a cultura dos jornais brasileiros. Nela, o dono-acionista é quem dirige e dá as diretrizes do que se deve cobrir e como. E esse “como” nem sempre corresponde às melhores regras de deontologia, como todos nós sabemos.
No Le Monde – fundado por Hubert Beuve-Méry em 18 de dezembro de 1944, ano da libertação de Paris do jugo nazista –, a diretoria é composta de jornalistas mais experientes, como em qualquer empresa de mídia. Mas estes têm uma margem de liberdade desconhecida em jornais dirigidos como uma empresa capitalista tradicional. Muitas vezes, na reunião diária do jornal, opiniões divergentes entram em conflito, pois redatores e repórteres têm todo o direito a se expressar, inclusive para criticar, como mostra o documentário.
Na campanha de 2012, as redações do Le Monde (impresso e web) eram dirigidas por Érik Izraelewicz, visto em algumas cenas nas reuniões mais amplas dos jornalistas de política. Izraelewicz morreu em novembro do mesmo ano, de um problema cardíaco.
Essa “cultura” da independência dos jornalistas não é exclusiva do Le Monde, onde trabalham 400 jornalistas que formam a Société des rédacteurs du Monde. A mesma cultura é encontrada, ainda que em menor escala, na maior parte da imprensa francesa. Até mesmo no direitista Le Figaro os jornalistas que formam a Société des rédacteurs du Figaro participam das decisões e criticam, muitas vezes, a linha que o jornal adota. Nessa cultura da imprensa à la française, quem define o jornal são os jornalistas e a empresa é dirigida por um colegiado de executivos, escolhidos e referendados por acionistas e jornalistas.
Em 2012, quando o acionista exclusivo do Le Figaro decidiu “dirigir” seu jornal, os jornalistas se sentiram ultrajados. E protestaram para mostrar o descontentamento com o novo acionista, que adquirira o diário em 2004 para servir a seus interesses de empresário da indústria bélica. Naquela ano eleitoral de 2012, o industrial e senador Serge Dassault escreveu e, com a cumplicidade do diretor, publicou um editorial assinado. O conflito aberto foi resolvido e apaziguado pelo próprio diretor da redação, que aconselhou Serge Dassault a tratar de suas indústrias e deixar os jornalistas trabalharem. Nem por isso o jornal deixou de ser o que sempre foi, o porta-voz da direita francesa.
******
Leneide Duarte Plon é jornalista, em Paris