Os acontecimentos mediáticos na reta final das últimas eleições, muito especialmente a caluniosa edição da revista Veja, na quinta-feira, há dois dias do pleito, buscando envolver a candidata Dilma e o ex-presidente Lula em acusações para lá de suspeitas feitas por um renomado contraventor, tornou ainda mais urgente discutir o perfil escandalosamente partidário e particularmente antipetista que os meios de comunicação assumiram no Brasil.
Não existe mais compromisso com a “neutralidade” ou “objetividade” da notícia. Não se ouvem mais “os dois lados”. E, pior, basta-se ler com atenção os textos das matérias para, não raro, constatar-se que, dois ou três parágrafos abaixo, o que está escrito não confirma, às vezes desmente claramente, a afirmação peremptória expressa no título grafado em letras garrafais.
Mais do que partidários, Veja, Folha de S. Paulo, O Globo e o “Jornal Nacional” da Rede Globo tornaram-se cínicos, nisto sendo acompanhados por quase todos os demais veículos impressos ou eletrônicos. Há exceções, mas não têm o mesmo poder de penetração ou audiência daqueles.
Não deixa de ser digno de nota que ainda assim a presidente Dilma Rousseff tenha obtido sua reeleição, embora a campanha contra ela desfechada pelos meios muito explique a sua reduzida margem eleitoral. Por outro lado, detendo há 15 anos mais da metade do eleitorado e sendo apoiado por uma parcela muito expressiva da opinião esclarecida brasileira, como explicar que, até hoje, não tenhamos entre os meios brasileiros aquele que represente as idéias, a visão de mundo, o projeto de Brasil que o PT e seus aliados políticos vêm vitoriosamente implementando.
Espaço à política
Por que não temos entre nós, uma revista que sustente este projeto com a mesma circulação de Veja, um jornal com a mesma penetração da Folha, um canal de televisão que dispute audiência com a Globo, se, no entanto, mais da metade da população brasileira (e não é de hoje) discorda do que pregam e, tudo indica, pouco confiam no que divulgam?
Em toda a história do Brasil, registra-se um único caso de órgão de imprensa que logrou obter audiência, expressa em tiragem e circulação, correspondente, em termos relativos, ao de um amplo conjunto da população cujas opções políticas ou projeto de país não costumam ser apresentados ou representados pelos meios dominantes: a Última Hora.
O (segundo) governo Vargas sofria um cerco da imprensa muito similar ao que atualmente sofrem os governos petistas: os jornais e revistas de maior tiragem e influência lhe faziam oposição implacável pelo centro e direita. À esquerda, o PCB, com sua imprensa quantitativamente diminuta mas qualitativamente influente junto a círculos progressistas, não conciliava com o governo “burguês”. Vargas reagiu articulando a criação e consolidação de um jornal que fosse efetivamente capaz de atrair a leitura do “povão” que o apoiava: assim iria nascer a Última Hora.
Antes de mais nada, Vargas mobilizou capital. Com recursos de banqueiros e industriais que o apoiavam, a exemplo de Walter Moreira Sales, Horácio Lafer e Euvaldo Lodi, além de generosos financiamentos do Banco do Brasil, Vargas fez nascer uma empresa na qual, porém, não tinha qualquer tipo de participação direta, além da própria inspiração.
Para dirigir a empresa e, sobretudo, o jornal que ela editaria, chamou o jornalista Samuel Wainer. Ele não era, àquela altura, um novato desconhecido, muito menos um jornalista marginalizado e pouco considerado nos meios profissionais. Era experiente e respeitado, e já fizera até oposição a Vargas, quando ditador. Com os recursos à sua disposição, Wainer pôs-se a reunir à sua volta alguns dos melhores profissionais de imprensa que o dinheiro poderia comprar.
Da Argentina, trouxe o desenhista gráfico Andrés Guevara, responsável pelo projeto gráfico da Última Hora, moderno e inovador àquela época. Para a redação, trouxe (subtraindo dos jornalões de então) nomes como o esquerdista Moacir Werneck de Castro, para diretor responsável; Edmar Morel, reconhecido repórter político; ou o reacionário Nelson Rodrigues – sim, o já consagrado dramaturgo que, para a Última Hora, atrairia um grande público com a sua coluna policialesca “A vida como ela é”. Também, na polícia, encontrava-se Amado Ribeiro, bem enfronhado com aquela turma que um dia se juntaria no “Esquadrão Le Coq”…
Wainer não esqueceu o colunismo social, na época um tipo de jornalismo que não poderia faltar num jornal que se quisesse importante: para concorrer com Ibrahim Sued, n’O Globo, tirou “Jacinto de Thormes”, pseudônimo de Maneco Muller, do Correio da Manhã. Nas charges, estavam Nássara e Lan, este autor do antológico desenho que consagraria Carlos Lacerda como “O Corvo”.
As páginas esportivas, nas quais, claro, dominava o futebol, foram as primeiras a publicar fotos a cores de equipes campeãs: inaugurou-as o time do Fluminense, em 1951. Última Hora também não deixaria de oferecer aos seus leitores, notícias, informações, resenhas críticas sobre cinema, teatro, espetáculos, artes em geral. Neste segmento fazia sucesso a coluna de “Stanislaw Ponte Preta”, pseudônimo de Sergio Porto, trazendo as fofocas do mundo artístico popular e brindando seu público com fotos diárias das estonteantes “certinhas do Lalau”, as popozudas da época que brilhavam no teatro de revista.
Última Hora não queria ser diferente dos principais jornais de sua época. Queria, sim, ser melhor do que eles naquilo onde os outros podiam se pretender bons. Não brigava com o padrão, mas, de certo modo, o aprimorava ou modernizava – como na revolução gráfica, isto é, formal, que realizou. Era diferente, porém, e nisto se distinguia, na orientação política subjacente de seu noticiário “nobre”, digamos assim, e, claro, na explícita posição editorial.
Sugerindo um exemplo que possa ser claro ao leitor atual, se, num determinado dia, a manchete principal de O Globo, Folha de S. Paulo e ainda capa de Veja, fosse a última suposta revelação de Paulo Roberto Costa; a da Última Hora seria um novo “furo”, isto é, noticia inédita (não comentário requentado sem nenhuma informação nova) sobre o “trensalão” tucano paulista. O leitor certamente não precisaria comprar O Globo ou a Folha se quisesse se informar sobre o futebol, a fofoca da atriz da novela (na época, a cantora do rádio), os acontecimentos internacionais, ou a eterna briga de polícia contra ladrão. Mas precisaria optar, na banca de jornal, se desejaria saber mais sobre o “mensalão” ou o “trensalão”. Aqui, a popularidade de Vargas, sem ignorar a qualidade editorial e jornalística do noticiário, decidiu a favor do jornal de Samuel Wainer.
E ele não demoraria a atingir a maior circulação da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República e “tambor político” do país, como se usava dizer. Dali, em muito poucos anos, a Última Hora iria criar uma rede de franquias nacionais, com edições locais em várias outras capitais, a exemplo de São Paulo, Porto Alegre, Recife etc.
Samuel Wainer, jornalista que realmente era, entendia intuitivamente aquilo que sabe qualquer teórico sério de comunicação social: o público compra o que lhe interessa, não o que alguém pode pensar que interessa ao público a partir de suas próprias convicções, compromissos político-ideológicos ou mesmo preconceitos. Uma coisa é escrever crônicas políticas para um gueto de já convertidos; outra, fornecer informação para milhares ou milhões de pessoas cujas vidas cotidianas dão pouco espaço à política militante; pessoas mais interessadas, quando abrem uma revista ou ligam a televisão, em ocupar seu tempo livre com entretenimento que amenize as durezas do dia a dia ou, no máximo, com notícias que tenham forte relação com o seu cotidiano. Notícias sobre polícia, por exemplo, ou sobre saúde.
Frente de guerra
Wainer obedeceu a todos os cânones da assim chamada indústria cultural. Por isto Última Hora fez um enorme sucesso e forneceu a Vargas uma forte sustentação contra a oposição mediática. Só não pôde defendê-lo de seus próprios amigos aloprados, nas enxovias do Catete… Mesmo assim, seguiria cumprindo, nos governos JK e Jango, papel fundamental numa disputa política que, democraticamente cada vez mais favorável ao povo trabalhador, acabaria resolvida, como sabemos, por meio de um golpe civil-militar fascistóide.
Paradoxalmente, Wainer jamais logrou viabilizar economicamente o jornal. Ele acreditava que, com alta circulação, conseguiria naturalmente atrair as verbas do mercado publicitário. Mas anunciantes e suas agências não simpatizam com imprensa que não sirva também ao padrão político, que não obedeça ao que acadêmicos estadunidenses denominam agenda setting: o agendamento noticioso, a definição do que e como o público deve ser informado. Wainer chegou-se a imaginar um futuro tycoon do jornalismo, mas sua empresa nunca conseguiu conquistar real independência financeira.
Àquela época, a imprensa escrita, em especial a do Rio de Janeiro, era a mais poderosa e influente do País. Hoje, sabemos, apesar da força ainda ostentada por Veja ou Folha de S.Paulo, a televisão, na qual domina a Rede Globo, é o meio mais poderoso, tanto na oferta de entretenimento, quando no agendamento informativo. A Última Hora de hoje precisaria ser televisiva ou, a esta altura, talvez, um poderoso portal noticioso de internet, assim como Terra ou Yahoo!. Os jovens, sobretudo, se informam pelo smartphone. Mas a receita não seria diferente: muito dinheiro, associando capitais privados e públicos, que atraísse profissionais do entretenimento e espetáculo capazes de chamar audiência para, numa programação ao gosto popular, embrulhar um jornalismo e oriente ação editorial que defendesse o projeto petista e enfrentasse o golpismo mediático. Talvez este fosse até um caminho mais eficiente e sustentável do que insistir nesses recorrentes descaminhos obscuros pelos quais se busca saciar uma insaciável “base aliada”.
Já é mais do que hora de o governo Dilma, ora se reiniciando, seguindo o exemplo de Getulio Vargas, encarar com absoluto profissionalismo a frente de guerra da comunicação.
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Marcos Dantas é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ