Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Informação passada a limpo

Na tarde de 5 de outubro de 2011, uma faixa medindo 10 metros por 20 passou a cobrir parte de um edifício na movimentada avenida Presidente Julio Argentino Roca, em Buenos Aires. Os dizeres sobre a fachada do Indec –sigla para Instituto Nacional de Estatística e Censos, equivalente ao IBGE– repetiam o que se lia em cartazes colados na calada da noite nas principais vias da cidade: “Clarín miente”.

A imagem do edifício do órgão estatal de estatísticas –sob intervenção federal desde 2009– acusando o mais importante jornal do país de “mentiroso” é um resumo do que tem sido a batalha entre o governo e os meios de comunicação independentes na Argentina desde 2008.

Enquanto o Indec foi desacreditado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo mercado internacional por maquiar os dados da inflação, o “Clarín” perde circulação (1/4 dos leitores desde 2007, segundo dados do IVC – Instituto Verificador de Circulação) e credibilidade, ao passo que exagera nas cores e força títulos contra a gestão da presidente Cristina Kirchner.

Nesse cenário de cisão ideológica e política, um grupo de três acadêmicos de distintas formações (química, física e economia) saiu a tentar resgatar, entre os mortos e feridos dessa guerra, a informação factual.

Há quatro anos no ar, o site Chequeado (chequeado.com) confere, dado por dado, informações incluídas em discursos de políticos, reportagens de jornais, programas de televisão e entrevistas dadas por empresários.

“Buscamos um equilíbrio; se um dia checamos um pronunciamento de Cristina, no outro vamos buscar um opositor, mas sempre obedecendo critérios de relevância jornalística, os assuntos importantes daquela semana. É difícil, mas a ideia é criar uma cultura de não aceitação passiva dos dados”, diz Laura Zommer, 40, diretora-executiva do site. A jornalista participa do Festival Piauí de Jornalismo (festivalpiaui.com.br), que ocorre nos próximos dias 15 e 16, no Colégio Dante Alighieri, em São Paulo.

Zommer explica que o site segue um método em oito etapas, que começa com a seleção da frase ou discurso de um determinado personagem, passa pelo cruzamento de fontes oficiais com alternativas, a explicação do contexto e a formulação de uma qualificação.

Num cenário em que as estatísticas oficiais são contestadas, o Chequeado trabalha muito com fontes de bastidores instaladas em ministérios ou outros órgãos de governo.

Com mais de 68 mil seguidores, o Chequeado tem como inspiração o norte-americano FactCheck.org, criado em 2003 pelo jornalista Brooks Jackson, ex-”Wall Street Journal” e CNN. O site argentino é pioneiro na América Latina, e ajudou a criar o sistema de checagens políticas do colombiano La Silla Vacía (lasillavacia.com), utilizado durante as últimas eleições naquele país, no primeiro semestre deste ano. A experiência levou o presidente Juan Manuel Santos, então candidato à reeleição, a retificar dados numéricos relacionados ao desemprego.

Inaugurado há pouco mais de um mês, o UYCheck.com seguiu de perto o discurso dos candidatos à Presidência do Uruguai, disputa cujo primeiro turno foi no dia 26 de outubro. O candidato favorito para vencer o pleito no próximo dia 30, o socialista Tabaré Vázquez, teve alto índice de acerto em suas afirmações, como quando disse que “a classe média uruguaia é proporcionalmente a maior classe média dos países latino-americanos” –de fato: 63% da população.

Código Penal

No início do mês, a presidente Cristina Kirchner enviou ao Congresso um projeto de lei para endurecer o código penal argentino. Se aprovado, permitirá que estrangeiros acusados de cometerem crimes sejam expulsos do país antes mesmo de serem julgados. A ideia encontrou resistência de grupos de direitos humanos e da oposição. O argumento do governo se baseava em uma cifra divulgada pelo Serviço Penitenciário Federal, que dava conta de que 1 em cada 5 presidiários na Argentina era estrangeiro.

O Chequeado retrucou, e a afirmação foi classificada como “enganosa”, por entrarem na conta apenas as penitenciárias federais, onde há mais condenados por narcotráfico e, portanto, mais estrangeiros –responsáveis pela maior parte da operação no país. Se consideradas as prisões provinciais, onde está a maioria da população carcerária da Argentina, o número diminuiria para 1 em cada 20.

Considerações feitas por colunistas de jornais opositores também entram no foco do site. Em 2010, um mês antes da morte de Néstor Kirchner (1950-2010), marido e antecessor da presidente Cristina, articulistas do “Clarín” e do “La Nación” atribuíram a doença cardíaca da qual sofria o ex-presidente ao seu temperamento hostil e irritadiço. O Chequeado ouviu médicos e especialistas para concluir que tal afirmação era “falsa” e não se sustentava em evidências científicas.

Também ficou famoso o escorregão histórico de Cristina quando, em discurso na Feira do Livro de Frankfurt em 2010, disse que a corrente filosófica alemã que leva o nome da cidade havia nascido após a Segunda Guerra (1939-45). Chequeado detectou o erro –a Escola de Frankfurt nasceu nos anos 1920– e o divulgou.

Em setembro, o chefe de gabinete do governo argentino, Jorge Capitanich, disse que a indigência havia sido “praticamente erradicada” nos últimos dez anos. Chequeado qualificou como “falsa” a afirmação, ao comparar dados do Indec com os de instituições independentes. Para o instituto governamental, só 1,4% da população estaria nessa faixa. Porém investigação considerada tradicional e independente, realizada pela Universidade Católica, aponta 5,5%, dado que foi cruzado e confirmado com outras fontes alternativas.

Capitanich, que sofre um processo de desgaste no governo e teve de desistir de sua ambição de ser candidato à Presidência, teve o erro exposto em alguns meios.

Para Zommer, uma amostra da imparcialidade do Chequeado é que resultados foram mencionados por lideranças de diferentes vertentes. O ex-vice-presidente argentino Julio Cobos, da União Cívica Radical, já se retificou publicamente após ter tido informação questionada, assim como o prefeito direitista de Buenos Aires, Mauricio Macri.

Qualificação

“Antes trabalhávamos apenas com os conceitos de verdadeiro’ e falso’, mas isso se mostrou insuficiente para explicar a complexidade de algumas informações”, diz Zommer. Hoje, o Chequeado trabalha com nove categorias. Além das duas afirmativas, estão “verdadeiro +”, “verdadeiro, mas”, “discutível”, “apressado”, “enganoso”, “exagerado” e “insustentável”.

“Vivemos num tempo em que tanto uma notícia de jornal conceituado como o que sua amiga postou no Facebook são tomados como verdades nas redes sociais. É um ambiente em que emoções e orientações ideológicas podem induzir facilmente as pessoas. Tentamos ir contra a transformação de lugares-comuns em verdades”, resume a jornalista.

Além das informações políticas, o Chequeado tem uma sessão mais pop: “Mitos & Fraudes”. Ali se questionam desde expressões da sabedoria popular (misturar vinho com melancia mata?) ou lugares-comuns que reforçam preconceitos, como “pobre mora em favela porque não quer pagar nada”.

Como outras iniciativas jornalísticas digitais que surgiram nos últimos anos na América Latina (Animal Político, do México, El Faro, de El Salvador, entre outros), o Chequeado também depende de doações particulares. O site aceita dinheiro tanto de indivíduos quanto de empresas, e os doadores são especificados e expostos.

Para fechar o orçamento anual de US$ 200 mil, o site realiza também eventos em que se vendem convites. Não há propaganda na página. Na Redação, além de Zommer, há outros nove profissionais.

Polarização

Para a cientista social María O’Donnell, especialista na análise de meios de comunicação na Argentina, o cenário no país é ideal para que surjam iniciativas desse tipo.

“A guerra entre governo e meios fez com que as pessoas questionassem mais as informações e as intenções por trás de quem as divulga. Os meios e as redes sociais viraram notícia, e o que o Chequeado faz é pegar carona nessa perda da inocência dos leitores”, avalia.

A estudiosa crê que, no ano que vem, quando haverá eleições presidenciais na Argentina, a batalha entre a mídia independente e o governo viverá um novo capítulo.

O atual conflito começou quando os jornais tradicionais passaram a criticar a política de arrecadação de impostos no campo defendida por Cristina, em 2008. A presidente, por sua vez, vestiu a camisa da necessidade de redemocratizar os meios de comunicação no país –o principal argumento era de que o Grupo Clarín havia se tornado um monopólio (com jornais, TV paga, rádios e internet).

O governo estatizou a transmissão das partidas de futebol (que pertenciam a canal do Grupo Clarín), aprovou uma Lei de Meios que obriga empresas de comunicação a desfazerem-se de negócios e provocou o sufocamento de alguns veículos através da pressão a anunciantes. Sua principal arma, porém, foi o financiamento de meios que apoiassem o kirchnerismo. Com isso, o governo se tornou o maior anunciante da mídia argentina, arcando com mais de 90% do custo de alguns jornais impressos. O oficialismo, assim, armou uma rede que conta com mais de 30 jornais e dezenas de canais e emissoras de rádio por todo o país.

“Esse aparato provavelmente vai se desmontar com uma possível troca de governo. Primeiro, porque já não há mais tantos recursos; depois, porque é difícil que um governo não kirchnerista queira seguir com essa política”, diz Jorge Lanata, mais renomado jornalista do país, que tem um programa crítico ao governo no Canal 13, pertencente ao Grupo Clarín.

Por outro lado, nos últimos anos, a mídia opositora tornou-se muito mais agressiva e passou a omitir notícias positivas do governo, privilegiando as críticas. “Nunca Clarín’ e La Nación’ estiveram tão parecidos”, afirma María O’Donnell.

Cristina está impedida pela Constituição de concorrer a um terceiro mandato e ainda não escolheu a quem dará apoio. Bem posicionados na disputa estão os peronistas da ala mais conservadora do partido, Daniel Scioli e Sergio Massa, além do prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri (PRO).

Zommer prevê, para 2015, um cenário de mais polarização, em que o noticiário estará mais vulnerável a paixões políticas. “Vivemos num mundo com muito mais informações, mas também no qual o emocional desempenha papel muito importante. É um cenário que favorece o preconceito e a violência do debate. Espero que o Chequeado colabore para uma discussão mais baseada em fatos e mais racional”, conclui.