Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A volta do jornalismo cor-de-rosa

Uma das mais eficientes estratégias utilizadas pela publicidade tem sido a de travestir informações publicitárias com as técnicas da “narrativa” da informação jornalística. A fórmula tem sido amplamente praticada e decorre da queda do muro ético entre a Redação e o departamento de publicidade, a partir dos anos 1990, para otimizar a eficácia do faturamento das chamadas organizações empresariais no ramo da comunicação.

A tática das agências de propaganda é enfiar textos publicitários nos jornais impressos (assim como dos rádiojornais, dos telejornais ou dos webjornais) com a “cara”, “o corpo” e o “estilo” de produtos jornalísticos puros. A estratégia é ludibriar o leitor, “criando uma publicidade com cara de notícia” para levá-lo a acreditar que ele está consumido uma informação objetiva, credível, confiável e “totalmente” verdadeira.

Na verdade, a artimanha faz parte de um vasto repertório de técnicas desenvolvidas pelas organizações da propaganda e da publicidade no Brasil e no mundo, para facilitar o ingresso de recursos financeiros nas empresas jornalísticas e manter a saúde do jornalismo e da publicidade em dia.

A prática utiliza, segundo estudos mais apurados, mais ou menos 25 estratégias subliminares para transformar publicidade em notícia e, com isso, fazer com que as artimanhas da sedução, da persuasão e da venda sejam inoculadas na mente dos leitores por meio de um verdadeiro Cavalo de Tróia hipermidiático e hiperconsumista.

Nova forma de jornalismo

A prática tem sido reconhecida no universo acadêmico como jornalismo cor-de-rosa, jornalismo transgênico, info-entretenimento ou jornalismo diversional. Seja qual for o nome, todas essas estratégias seguem os mesmos princípios: a lógica do capital e do livre mercado para flexibilizar o conceito e o processo do newsmaking; a política publicitária-mercadológica-liberal para dominar a cultura, a economia e a comunicação; a inédita “ética da estética” para introduzir uma patologia na estrutura clássica da informação; o jornalismo hiperjornalístico para esparramar a estética da mercadoria e do ultralivre mercado; e o processo de multiplicação dos cromossomos da publicidade para invadir e controlar os cromossomos da informação.

A tendência tem sido, sobretudo, a de chamar esta nova ordem informacional de jornalismo cor-de-rosa pelo fato de que, além de suceder os jornalismos marrom e amarelo, o modelo cor-de-rosa é um sistema feito para agradar muito mais ao anunciante do que ao leitor, para vender jornais independente do conteúdo do veículo, para vestir a notícia com as técnicas do marketing e para transformar todo o universo da sociedade e da informação em ambiente palatável para todas as pessoas que, de certa forma, passam a “consumir informação” a partir da mesma lógica do consumo capitalista.

Liberdade de empresa

O estágio mais avançado do capitalismo tardio, o chamado neoliberalismo, procura travestir o discurso da liberdade da imprensa com a sutil defesa da liberdade de empresa. Os capitalistas da informação sabem que a época é propícia para a conquista e para o controle de todos os sistemas e de todos os aparatos da sociedade universal da informação e da comunicação.

O advento das novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) veio criar um ambiente de sinergia e de convergência entre plataformas tecnológicas além de instaurar um processo de hibridização de discursos de todas as vertentes, de todas as naturezas e de todos os interesses.

Nada mais eficaz, nesse sentido, do que, a partir da lógica do capital, cruzar o DNA da informação com o DNA da publicidade para oferecer aos consumidores e aos cidadãos um prato que mistura, ao mesmo tempo, persuasão e informação.

É uma única tacada para matar dois coelhos. O capital simplifica e “monetiza” suas ações e o leitor acaba pagando e “comprando” um típico “dois-em-um”: ele adquire um jornal, mas ganha notícia e publicidade no mesmo produto.

Uma mistura “inédita”

O jornal O Estado de S. Paulo inaugurou no domingo (9/11) um modo absolutamente original de misturar jornalismo e publicidade em uma mesma embalagem.

O prodígio da empresa jornalística apareceu na “suposta” reportagem “É o fim da história do rei com a Friboi”, publicada na página B11, do caderno de Economia & Negócios (9/11/2014, ver aqui). A obra-prima foi escrita por uma jornalista do Estadão paga, em tese, para ser jornalista, mas que acabou produzindo um produto absolutamente inédito dentro do chamado jornalismo transgênico ou cor-de-rosa.

A reportagem descreve inicialmente a ruptura e o acordo entre o “rei” da música popular brasileira, Roberto Carlos, e a empresa JBS, dona da marca Friboi. A informação ocupa espaço significativo na página e ostenta, inclusive, uma foto do “rei”, do ator Tony Ramos e de Wesley Batista, da JBS, com créditos de Marcos Alves, da agência O Globo.

A reportagem parece, à primeira vista, uma autêntica notícia. Descreve a história do contrato, os desdobramentos, o litígio e o desfecho. O inusitado (ou o sobrenatural) da informação está em três aspectos absolutamente singulares.

Uma “mercadoria noticiosa”

Em primeiro lugar, a reportagem ostenta, acima do título, uma cartola intitulada “Publicidade”, mostrando, evidentemente, que o assunto tem caráter de mercadoria, não de informação. Como os leitores nem sempre se atentam a este detalhe, a informação pode acabar sendo engolida como uma “reportagem” jornalística, isto é, autêntica, verdadeira e inquestionável.

Em segundo lugar, a jornalista do Estado de S. Paulo aceita o papel de usar seus conhecimentos e suas habilidades técnicas, próprias do jornalismo, para redigir uma obra que, em sua essência, em sua natureza e em sua “ética” (!) é apenas uma peça de publicidade (paga por anunciantes aos donos do jornal).

O terceiro lugar é o mais grave de todos. Ao redigir a peça publicitária (como se estivesse escrevendo uma autêntica notícia), a jornalista acaba misturando, no texto, uma narrativa com as informações do contrato e do distrato entre o rei e a JBS, mas, misturando, no mesmo texto, uma reflexão sobre quais deveriam ser as melhores técnicas ou as melhores estratégias jornalísticas para a produção do lead ou dos news values da informação.

Só lendo para acreditar. A jornalista escreve, na verdade, uma publicidade (como cara de jornalismo), mas parece esquecer que está vendendo uma “mercadoria noticiosa” para discutir (dentro da própria notícia-mercadoria) quais deveriam ser os critérios jornalísticos mais apropriados para aquela publicidade.

Leia também

Publicidade que parece notícia – Carlos Castilho

******

Leandro Marshall é jornalista, escritor e professor