O jornalismo científico apresenta uma peculiaridade desafiadora: a perseguição pelos artigos científicos, publicados em revistas especializadas, principalmente no exterior, que se somam aos press releases institucionais enviados aos jornalistas, elaborados geralmente a partir desses artigos. Hoje, abundantes, os papers, como os cientistas preferem –ou ainda pêipers, aportuguesando –, têm duas faces, como o deus romano Jano, que olhava para o futuro e para o passado ao mesmo tempo. Os papers podem tanto valorizar o trabalho jornalístico, ao dar consistência e credibilidade a notícias sobre descobertas científicas aparentemente novas, como também o desvalorizar, porque inibem a formulação de pautas criativas e podem levar à dependência e à acomodação. Facilitam a busca e a produção de matérias sobre ciência, mas também atrapalham a concepção de pautas mais elaboradas. Ressaltam o episódico, os resultados recém-publicados, e, inversamente, adiam as reportagens e debates sobre problemas atuais, igualmente importantes. Como esses temas tomam mais tempo e trabalho para serem encontrados, planejados, produzidos e publicados, a possibilidade de seguir o mais fácil atropela o esforço de ser original.
Papel indispensável
Os artigos científicos são indispensáveis e muitas vezes inevitáveis, porque trazem descobertas que o jornal concorrente pode publicar, gerando um medo de ser furado que resulta na homogeneização das pautas de ciência. Se seu uso não for bem dosado com autonomia e determinação, os papers podem ser perigosos e desvalorizar o trabalho jornalístico, por inibirem a imaginação, e porque fazem com que os jornalistas assumam os valores dos cientistas, para quem os artigos são muito importantes para avançarem na carreira acadêmica. Isso dificulta a formulação de uma agenda própria, com pautas realmente originais e atraentes para os leitores. O tempo que os papers permitem ganhar, por trazerem descobertas científicas já organizadas, raramente é usado na formulação e na produção de pautas originais, desvinculadas de artigos, ainda que esses novos temas possam contar com eles como parte da argumentação.
Toda semana, os jornalistas que trabalham nessa área recebem os boletins para repórteres cadastrados enviados pelas principais revistas científicas, como Nature, da Inglaterra, e Science e Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), dos Estados Unidos, com resumos de artigos e os contatos dos autores, de modo a favorecer a realização de entrevistas e reportagens sobre trabalhos que em alguns dias serão liberados publicamente. Na quinta e sexta-feira de cada semana, quem se cadastrou receberá também os sumários das edições recém-publicadas das revistas científicas semanais, como Nature e Science, com mais artigos e notícias. Além disso, muitas outras revistas oferecem a possibilidade de se cadastrar para receber o sumário das edições seguintes.
Oferta contínua
Em seguida, tão logo são publicados, os artigos vão para as bases de artigos, como a PubMed, especializada em artigos médicos, ou a Scielo, no Brasil, e podem ser pescados facilmente pelo Google Acadêmico (exemplo rápido: digite “diabetes Recife 2014” no Google Acadêmico e encontrará os trabalhos mais recentes nessa área; no PubMed basta “diabetes Recife”, porque os artigos geralmente aparecem em ordem cronológica). Enfim, é fácil encontrar coisas interessantes em qualquer área da ciência, até mesmo sem procurar. Essa oferta contínua de papers simplificou bastante o processo de produção de matérias ou notas sobre ciência: basta escolher um artigo, ler o resumo ou até mesmo o artigo inteiro, escrever ou ligar para o autor, perguntando sobre suas motivações, conclusões e expectativas – o autor provavelmente responderá com atenção porque tem interesse em divulgar amplamente seu trabalho –, acrescentar os comentários, e a nota ou reportagem está pronta. O problema é como fazer boas pautas com os – ou apesar dos – artigos.
Os artigos científicos são muito importantes para os cientistas, que dependem deles para comunicar os resultados de seus trabalhos e, desse modo, avançar na carreira acadêmica. A produção e publicação desse material é parte do ritual acadêmico, que Bruno Latour e Steve Woolgar analisaram com maestria e humor em Vida de Laboratório: a Produção dos Fatos Científicos (Relume Dumara, 1997) enquanto acompanhavam o trabalho de uma equipe em um laboratório de pesquisas médicas no Instituto Salk, em La Jolla, Califórnia, Estados Unidos. Latour e Woolgar questionaram vários pressupostos que envolvem o trabalho científico, e os pesquisadores simplesmente não entendiam por que eles ou os visitantes deveriam duvidar dos resultados de um equipamento que identificava proteínas. Ao menos para os cientistas que trabalhavam naquele momento no laboratório que eles acompanharam, o principal objetivo do trabalho era produzir papers, vistos como um objeto, tal qual um bem manufaturado. Os papers, ao exporem os resultados de experimentos realizados por meio de equipamentos e métodos de trabalho reconhecidos como válidos por especialistas da mesma área, são o principal meio pelo qual os cientistas constroem a autoridade científica.
Os autores continuam o raciocínio em outro texto, “The Cycle of Credibility” – que faz parte da obra Science in Context. Readings in the Sociology of Science (Milton Keynes, England: Open University Press, 1982) –, no qual afirmam que os artigos permitem a conversão entre dados, dinheiro, prestígio, credenciais, argumentos, estudos científicos e assim por diante, fazendo a pesquisa prosseguir. Portanto, para os cientistas, quanto mais artigos – e quanto mais lidos forem –, melhor, porque um dos critérios atuais mais importantes de avaliação da produtividade acadêmica no Brasil tem sido a quantidade de artigos científicos publicados.
Os jornalistas também sofrem dessa avidez por evidências de produtividade acadêmica. Para engordar a própria produção, muitas vezes os pesquisadores incluem em seus currículos na Plataforma Lattes, a vitrine da ciência brasileira, as entrevistas dadas a jornalistas ou reportagens para as quais eles foram fontes, nomeando-se como autores únicos ou às vezes até considerando a coautoria (em segundo lugar) dos jornalistas. Em 2012, um pesquisador de São Paulo me escreveu pedindo meu CPF para provar a uma agência de financiamento à pesquisa que ele tinha sido coautor de uma reportagem que eu tinha feito para a Nature Medicine, na qual ele aparecia apenas como entrevistado; não respondi, em dúvida se ele entenderia a diferença entre ser um entrevistado e coautor.
Para os jornalistas, porém, os papers não deveriam ser tão importantes quanto são para os cientistas. Talvez pareça cruel dizer que, do ponto de vista jornalístico, os artigos científicos representam notícias velhas com cara de novas, como a compra de uma empresa por outra que só pode ser noticiada após a aprovação oficial do governo. As descobertas relatadas nos artigos recém-publicados foram na verdade feitas há um ou dois anos – ou até mais –, já que o processo de produção e publicação de um artigo é muito lento. Entre o fim dos experimentos ou do trabalho de campo que levou a resultados que merecem ser divulgados e a publicação propriamente dita, os pesquisadores gastam pelo menos dois meses escrevendo o artigo (normalmente se faz uma revisão detalhada de trabalhos semelhantes na mesma área para argumentar que a descoberta apresentada é relevante e inédita e, além disso, todos os participantes do trabalho leem, dão sugestões e revisam o texto).
Caminho burocrático
Depois, os autores enviam-no para uma revista científica, que, se aceitá-lo de imediato (às vezes as revistas recusam o material, motivando novo processo de submissão), mandará o manuscrito para pareceristas anônimos, que normalmente levarão alguns meses para examiná-lo e geralmente pedem detalhes, explicações ou experimentos complementares, até se convencerem e darem um parecer favorável à publicação do artigo (às vezes os pareceristas não recomendam a divulgação do texto, motivando os autores a procurarem outra revista e reiniciarem o processo de análise). Se, depois de quatro, seis, oito meses, a revista finalmente aceitar o artigo, mais um mês ou dois, às vezes mais, podem correr até o artigo ser lançado. Ou seja: desde o envio do material, podem se passar de seis meses, com muita sorte, a um ano, até a efetiva publicação.
Para os jornalistas, é muito difícil apressar esse ritmo, porque os pesquisadores raramente falam de resultados submetidos a publicação e, uma vez aceitos, muitas revistas, interessadas no ineditismo, pedem aos autores que não levem nada a público antes do lançamento da edição. Os jornalistas se tornam reféns dos artigos e das revistas científicas também porque os textos que essas publicações enviam nos boletins semanais, antecipando as próximas edições, estão sob embargo, ou seja, não podem ser revelados até uma certa data, que coincide com a de sua inclusão na revista científica. Ao solicitar o recebimento dos artigos antecipados, os jornalistas se comprometem a cumprir o embargo.
Não convém fugir dos artigos – documentos fundamentais para a expressão da ciência, que, é inegável, anunciam descobertas importantes. No entanto, com um pouco mais de esforço e criatividade, aparentemente também é possível olhar além dos artigos – para problemas mais abrangentes, que ainda não tomaram a forma de textos científicos – e adotar ou reforçar uma visão crítica e independente, sem deixar de lado os interesses próprios. Os jornalistas e outros comunicadores da ciência que participaram da Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência (WCSJ) em 2009, em Londres, concordaram que deveriam manter-se a distância dos artigos científicos e criar matérias mais independentes, o que implica mais diálogo entre editores e repórteres e uma formação mais apurada sobre os processos de produção de conhecimento científico. Os artigos podem iniciar uma pauta, ao levantar problemas e mostrar alguns envolvidos. Desse modo, os artigos deixam de ser o foco da reportagem e são usados como informação complementar e secundária, caso o leitor queira mais detalhes. As reportagens sobre ciência estampadas no jornal americano The New York Times, na Economist e no Guardian (ambos publicações britânicas), são bons exemplos de como abordar assuntos interessantes e, lá no meio, rapidamente, lembrar que os resultados foram divulgados em alguma revista científica.
Centros de aperfeiçoamento de jornalistas, como o Knight Center, da Universidade do Texas, Estados Unidos, oferecem possibilidades de ação para fugir da perseguição dos papers, retomando antigas práticas jornalísticas, como manter uma rede de fontes (pesquisadores), que podem ser consultadas de tempos em tempos, por e-mail ou pessoalmente, em busca de novidades ou sugestões de matérias. Outra sugestão é ainda mais óbvia: sair mais da redação (e do computador), circular por congressos, hospitais e laboratórios, perguntar mais, conversar mais com pesquisadores e conhecer melhor a realidade da ciência, o que provavelmente resultará em pautas mais vivas e interessantes. Um conjunto de lições foi compilado no texto de Isabela Fraga “Sete Dicas do Jornalismo Científico para Encontrar Boas Pautas”, publicado em 6 maio de 2013 no site do Knight Center.
Práticas jornalísticas
No artigo “Um Enfoque mais Amplo para o Jornalismo Científico” (Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 2013, vol.36, n.2), pude levantar mais algumas sugestões para ampliar o enfoque das reportagens sobre ciência, como valorizar o trabalho coletivo em vez de exaltar um único cientista, examinar as circunstâncias e dificuldades da pesquisa e acrescentar uma visão histórica ao paper, normalmente focado no presente, e associar o resultado apresentado com outros trabalhos semelhantes feitos em outros lugares e outras épocas, destacando a história que os une.
Muitas vezes não é possível, por falta de tempo, paciência, inspiração ou colaboração do entrevistado, mas em geral podemos ir além do paper. Dessa forma, é possível mostrar outras coisas importantes, que extrapolam os próprios resultados científicos, como circunstâncias, histórias, situações tristes ou alegres, os fracassos (sim, os pesquisadores também falam do que não deu certo!), as conquistas e a agonia dos cientistas para vencer os labirintos institucionais e colocar os objetos a que se dedicaram (medicamentos, por exemplo) nas mãos de quem precisa.
O apego aos artigos científicos – pela dificuldade de elaboração de pautas originais, de interesse maior dos leitores que os resultados de descobertas publicadas em revistas científicas especializadas –, somado às dificuldades de lidar com os variados e geralmente complicados temas de ciência, além da redução do número de repórteres das equipes de ciência, pode ter contribuído para o encolhimento ou extinção da editoria de ciência de jornais de grande circulação de São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, o pressuposto equivocado de que as reportagens sobre ciência devem estar ligadas aos artigos científicos pode inibir repórteres de jornais regionais a entrarem com mais frequência nos fascinantes e amplos campos da ciência, que vão da cardiologia à botânica, da superfície da Terra aos confins do universo. Certamente podemos pensar e agir além dos papers.
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Carlos Henrique Fioravanti é jornalista e escreve sobre ciência, ambiente e tecnologia desde 1985. Foi repórter, editor e colaborador em jornais (como O Estado de S. Paulo e Valor Econômico) e revistas do Brasil (como Globo Ciência e Pesquisa Fapesp), dos Estados Unidos (Nature Medicine) e da Inglaterra (Lancet)