“Eu perdi US$ 1 milhão no ano passado. Espero perder US$ 1 milhão no ano que vem. Neste ritmo, vou ter que fechar este jornal em… 60 anos.” (Charles Foster Kane, em ‘Cidadão Kane’)
Por que o leitor haveria de se interessar por uma pequena revista americana com tiragem de 40 mil exemplares e da qual provavelmente nunca ouviu falar? O leitor assina todos os periódicos acadêmicos que, no último século, encubaram ideias novas em economia ou educação? Suponho que não. Mas vivemos sob o impacto das ideias que vingaram.
Uso a analogia para explicar o significado da implosão de The New Republic que, na sexta-feira [5/12], perdeu 55 repórteres, redatores e editores numa renúncia em massa e foi obrigada a cancelar a publicação do número de dezembro. A revista, conhecida como TNR, comemorou 100 anos em novembro, com excelente edição especial e uma noite de gala em que o principal orador foi Bill Clinton. Naquela noite, o novo CEO da TNR, Guy Vidra, recém-contratado pelo dono, o cofundador do Facebook Chris Hughes, errou o sobrenome do editor-chefe da revista ao chamá-lo ao palco.
O momento foi um alerta sinistro. Em 2012, Chris Hughes tinha 28 anos quando comprou a TNR prometendo injetar dólares e moral na publicação fundada por um grupo de intelectuais progressistas em 1914. Ele trouxe de volta o editor-chefe Franklin Foer, amplamente admirado na disfuncional família da elite jornalística americana. A New Republic começou a recuperar sua influência no debate político e sua circulação impressa aumentou 20%. O website foi elegantemente redesenhado. Ao longo de um século, a revista teve altos e baixos, como o escândalo de plagiarismo do repórter Stephen Glass, em 1998, transformado no filme Shattered Glass. A controvertida capa sobre o livro The Bell Curve, de Charles Murray, baseado em pseudopesquisa sobre inteligência e raça, saiu em 1994. Jornalistas da TNR protestaram e a revista publicou mais de dez artigos contra as teses eugênicas de Murray. Este ano, a TNR publicou um dos melhores ensaios sobre racismo nos Estados Unidos, embora jornalistas negros reclamassem, com razão, da falta de diversidade racial na redação.
Clichês libertários
A New Republic que conheço morreu na semana passada, quando Chris Hughes demitiu Franklin Foer, o editor literário da revista há 30 anos, Leon Wieseltier, seguiu Foer porta afora e veio a renúncia em massa, graças ao estopim na mídia social que Hughes ajudou a fundar – por sorte. Em Harvard, Hughes foi parar no dormitório de Mark Zuckerberg e atendia telefones na encarnação inicial do Facebook. Não sabia escrever código e, mais tarde, ó pioneiro, inventou o “cutucar”.
Hughes é inarticulado, medroso e trouxe Guy Vidra do Yahoo. Vidra anunciou planos de uma “integração vertical”, numa demonstração de ignorância sobre o termo – será que pretende fabricar tablets e papel? Reunido com a equipe, anunciou: “I wanna break shit” e escreveu um memorando com tanta tecnobobagem que virou tema de piada.
A morte da New Republic, que será reduzida a 10 números impressos por ano, nada tem a ver com a recusa da geração do papel a aceitar a realidade digital. Pequenas publicações sempre perderam dinheiro, mas a revista, lembra um expressivo abaixo-assinado de editores que passaram por lá, é um patrimônio cultural público. Entre seus ex-estagiários e ex-focas estão alguns dos melhores jornalistas em atividade hoje.
A perda afeta quem nunca leu a revista, ao calar uma voz liberal que se dispunha a testar dogmas de direita e esquerda com rigor intelectual. O novo jornalismo digital é polarizado e o Facebook, para muitos, a única fonte de notícias, infantiliza seus usuários servindo uma dieta decidida por algoritmo.
Os clichês libertários do Vale do Silício escondem um obscurantismo assustador para a democracia.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York