Em Diário da corte (2012), coletânea de artigos do polêmico jornalista Paulo Francis, é possível extrair lições críticas sobre o fazer jornalístico. Sem papas na língua, o articulista, no texto “Bobos: jornalistas” (05/04/1980), ironicamente, menciona uma pesquisa bastante curiosa: “Tempos atrás, uma pesquisa de Harvard descobriu que os jornais eram tidos, em estima pública, abaixo de massagistas e um pouco acima de ladrões de galinha. Acho que os ladrões de galinha deveriam protestar.”
Com um poder de síntese desconcertante, Paulo Francis destacou pragmaticamente o papel da imprensa: “a função da imprensa é ajudar os poderes da Terra a dirigirem o povo”. Por isso, o jornalismo “canta as glórias do sistema”. Paulo Francis ressalta, ainda, a existência de uma “força maior” que impede “a liberdade de imprensa verdadeira”. Na opinião dele, muito pouco pode fazer um jornalista para promover, de fato, uma imprensa ética a serviço da consciência pública. Adverte, com perspicácia, o articulista: “Mesmo havendo liberdade de imprensa garantida por lei, os proprietários sabem que podem desafiar o sistema só até certo ponto, caso contrário seriam massacrados economicamente.”
Aprofundando o que disse Francis, a imprensa periódica surgiu em decorrência da necessidade de informação mercantil na florescente sociedade capitalista. Ciro Marcondes Filho, em Imprensa e capitalismo (1984), alerta que dificilmente pode-se imaginar a atividade jornalística, nascida no núcleo e inserida na lógica do modo de produção capitalista, como algo muito distinto do capitalismo. A incipiente atividade econômica da imprensa jornalística é estruturalmente montada como empresa do e para o capital. A respeito, pronuncia-se, com precisão, Marcondes Filho: “Este [o capitalismo] só existe, pelo menos nos termos que conhecemos hoje – transformando informações em mercadorias e colocando-as, transformadas, alteradas, às vezes mutiladas, segundo as orientações ideológico-políticas de seus artífices, à venda.”
Imprensa amarela e marrom
O principal efeito para o universo da comunicação é a sua subordinação às regras do livre mercado. A informação deixa de representar a verdade e defender o interesse público e passa a operar na lógica do interesse econômico. Estreitam-se ainda mais as relações entre a economia e a informação, entre o campo mercadológico e o campo midiático, com a crescente anexação deste por aquele, no quadro mais amplo de uma progressiva “mercantilização” dos produtos culturais. A liberdade de imprensa fica submetida à liberdade de empresa, conforme salienta Clóvis Rossi em O que é jornalismo (1980).
Editorialmente, o efeito é catastrófico. Surge a “imprensa cor-de-rosa”, segundo adverte Leandro Marshall em O jornalismo na era da publicidade (2003). Para um melhor entendimento do fenômeno, o autor explica as principais características deste modelo conservador e obtuso:
“A imbricação dos cânones da lógica publicitária com os princípios da imprensa e do jornalismo faz com que hoje o processo de produção, processamento e distribuição da informação midiática seja de natureza essencialmente light, relativista, transgênica, marketizada, mercantilizada e mercadorizada. Os jornais passam a ser feitos preferencialmente para agradar a todos e, sobretudo, o capital. Diluem-se as referências e os imperativos que sustentavam os pilares do jornalismo idealizado pelas cartilhas e pelos manuais.”
De acordo com a tabela das cores, a imprensa cor-de-rosa se configura como atual estágio do empreendimento jornalístico, que também se faz valer dos parâmetros editoriais tacanhos da imprensa amarela e da imprensa marrom.
Sobre a primeira, refere-se à época do surgimento do sensacionalismo, com a exacerbação das notícias para conquistar leitores. A respeito do segundo tipo, a promoção de escândalos e fofocas, além de notícias dos bastidores, dão o tom da cobertura especulativa do “jornalismo mexeriqueiro”.
Relações espúrias entre governo e mídia
Identificar padrões jornalísticos a partir de cores faz lembrar um dos filmes mais poéticos da história, Um dia, um gato (1963), dirigido pelo tcheco Vojtecj Jasný. A vida de todas as pessoas de um vilarejo é colocada de pernas para o ar com a chegada de um mágico e seu gato ao local. Isso porque o gato, que só fica de óculos escuros, tem poderes mágicos. Quando seus óculos são retirados, as pessoas para quem ele olha mudam de cor de acordo com o caráter e os sentimentos delas: os apaixonados ficam vermelhos; os mentirosos, roxos; os desonestos, cinzas; os infiéis, amarelos; e por aí vai. Imagine se o gato do filme de Jasný olhasse para os jornalistas? Na certa, saberíamos melhor suas cores e, com elas, os vícios e as virtudes desta categoria profissional tão decisiva para a formação (e deformação) da opinião pública.
Considerando ainda o universo das cores e a imprensa, os jornais, editorialmente, poderiam muito bem acatar a sugestão trazida pelo educador Rubem Alves no livro O quinto poder: consciência social de uma nação (2008), a saber: “Que os jornais sejam divididos em duas seções. Uma de nome ‘Acho Bem’, em cores alegres. Outra, de nome ‘Acho Mal’, em cores sinistras. Assim, o leitor poderia escolher o seu menu: ou comidas de cheiro bom ou pratos em decomposição.”
Lendo os jornais, a gente tem a impressão de que só existe no mundo o pútrido, o escabroso, o indecente, o violento, enquanto a delicadeza, quando noticiada, aparece como regime de exceção, algo além do humano até. Há coisas lindas acontecendo de forma silenciosa e invisível, iniciativas coletivas baseadas em ideais elevados, como justiça e verdade. A mídia positiva, ao trazer à baila tais feitos, contribui para que o povo seja melhor.
Porém, percebemos que os fatores econômicos estão, infelizmente, ditando o comportamento ético da sociedade. Ilustrativo, nesse contexto, é o caso referente a Alfred Doolittle, o limpador de chaminés da peça Pigmaleão (1913), escrita por George Bernard Shaw. Doolittle tentava que o professor Henry Higgins pagasse pelo “uso” da sua filha Liza. Chocado pela insolência de Doolittle, o amigo de Higgins, coronel Pickering, pergunta: “Você não tem moral, homem?” “Não tenho dinheiro para isso, governador”, responde Doolittle, sem se embaraçar. “Nem você teria, se fosse tão pobre quanto eu.”
Seja rico, seja pobre, o poder econômico corrompe quem confunde valor com preço. Corrupção acontece quando a esperteza vence a inteligência. Dignidade, por sua vez, ocorre nos momentos em que a inteligência triunfa sobre a esperteza. Informa Conceição Freitas, na crônica “O jornalista e as empreiteiras” (Correio Braziliense, 20/11/2014), que Samuel Wainer, um dos mais importantes jornalistas brasileiros do século 20, “recebia volumosos agrados financeiros tanto de Getúlio quanto de Juscelino para manter de pé o Última Hora”. Publicações como o livro Notícia do Planalto: a Imprensa e Fernando Collor (1999), de Mario Sergio Conti, e a dissertação de mestrado intitulada A média da mídia: estudo da relação entre o endividamento da Globopar e a omissão de informações no noticiário de O Globo (2002), defendida por João Wady Cury, na ECA-USP, mostram, com riqueza de detalhes, as relações espúrias entre o governo e a mídia, arquitetando conchavos que lesam o povo brasileiro.
É para o cidadão que a imprensa deve existir
Mario Sergio Conti e João Wady Cury apresentam, respectivamente, argumentações cabais sobre o conluio sórdido, que envolve a mídia e os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, quando gozavam da condição de presidente da República. Conluio é um termo bastante apropriado, pois significa ajuste malicioso combinado entre agentes (governo e mídia), com o objetivo de enganar um terceiro elemento (povo), desrespeitando o padrão ético-normativo. Conti salienta o relevante papel da grande imprensa na promoção da candidatura de Fernando Collor a chefe de Estado:
“Fernando Affonso Collor de Mello foi eleito governador aos 37 anos porque constituíra essa mensagem contra uma casta de privilégios, aos marajás. E porque soube propagandeá-la na campanha eleitoral e, antes dela, no jornal, nos rádios e na televisão de sua família, dona do mais poderoso grupo de comunicação de Alagoas. Ele continuava com a mensagem. Mas faltava-lhe a máquina para alardeá-la em escala nacional. Collor agora precisara da grande imprensa”.
Collor, durante sua campanha, contou com apoio do proprietário da Rede Globo, Roberto Marinho. “Vou influir o máximo a favor dele”, foram palavras do empresário em uma entrevista à Folha de S.Paulo na época da campanha. Conti, ainda, traz em seu livro comentários de Marinho a favor de Collor, a saber: “Eu soube que há emissoras de TV que não te apoiam. Quero que você me diga quem são porque vou conversar com eles”. “Mas não estão te tratando bem? Você precisa ser bem tratado”. Outra corrupção escandalosa envolvendo governo e mídia como comparsas se deu na gestão de FHC. Cury, conforme resumo de sua pesquisa, “analisa a relação entre o endividamento do maior grupo brasileiro de comunicação, as Organizações Globo/Globopar, e os possíveis reflexos dessa dívida na cobertura jornalística de O Globo sobre os dois principais fatos do ano de 1998 em política e economia: a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso e a privatização das empresas de telecomunicações do sistema Telebrás, da qual a Globopar foi compradora de três operadoras de telefonia celular”.
Assim, o conluio do vento com a chuva provocava estragos, enquanto “dormia/a nossa pátria mãe tão distraída/sem perceber que era subtraída/em tenebrosas transações”. Diante do livro chamado Brasil, emperramos na “página infeliz da nossa história”. Prosseguindo com a música “Vai passar” (1984), de Francis Hime e Chico Buarque, ainda esperamos “ver de perto uma cidade a cantar/a evolução da liberdade/até o dia clarear”. Dificilmente, as coisas vão mudar positivamente se o jornalismo continuar sendo encarado como a arte de prender a atenção da inteligência humana apenas o suficiente para ganhar dinheiro com isso. Muito bem alerta Eugênio Bucci, em Sobre ética e imprensa:
“Discutir ética na imprensa só faz sentido se significar pôr em questão os padrões de convivência entre as pessoas, individualmente, e de toda a sociedade no que se refere ao trato com a informação de interesse público e com a notícia. A isso precisam se subordinar não apenas os jornalistas, mas também os seus patrões e as corporações em que funcionam os veículos de comunicação. Essa discussão só tem um interessado: o cidadão. Ninguém mais. É para ele que a imprensa deve existir – e só para ele. Às vezes, parece que todos nos esquecemos disso […]”.
É verdade que a atividade jornalística se converteu num mercado, mas, atenção, esse mercado é consequência, e não o fundamento da razão de ser da imprensa. Do direito fundamental a que corresponde a imprensa, o direito à informação, resulta a ética que deveria reger os jornalistas e as empresas de comunicação – e deveria reger também os vínculos que ambos estabelecem com as suas fontes (as pessoas que fornecem as informações aos jornalistas), com o público e, sobretudo, com o poder (econômico, político ou estatal). Quando o poder age no sentido de subtrair ao cidadão a informação que lhe é devida, está corroendo as bases do jornalismo ético, que é o bom jornalismo, e corrompendo a sociedade.”
Jornalismo é serviço público, não espetáculo
Afeta também a credibilidade dos jornais a confusão entre “opinião pública” e “sondagem de opinião”, adverte a filósofa Marilena Chauí, no livro Simulacro e poder: uma análise da mídia (2006). Conta a intelectual que a opinião pública, em seus inícios liberais, era definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão. Fortes indícios indicam que este espírito questionador, primado da opinião pública consciente e plural, movimentou arrojados propósitos de cultura. Convém, nesse sentido, recorrer a reflexão lúcida de Paulo Francis, presente em A aurora da minha vida (09/11/1980): “Cultura é essencialmente a capacidade de manter duas ideias opostas na cabeça e ainda assim tomar posição.” O jornalista chega a sentenciar, ainda, que “cultura é conflito e maturidade intelectual, é certeza com dúvidas”. Partindo dessa perspectiva emancipatória, cabe ao jornalismo de matriz cultural desarticular “o clube do elogio mútuo”, conforme feliz expressão de Paulo Francis, em Cinema à moda da casa (18/06/1989).
Como veículo da pluralidade ideológica, a imprensa livre convoca autenticamente as origens da palavra diversidade, a saber: o diferente, o dessemelhante, o que aparta do caminho, o que distrai; a digressão, em suma: tudo o que diverte, isto é, descaminha, desvia, diferencia. É nesse contexto que faz todo o sentido do mundo o fabuloso dizer de Rosa Luxemburgo: “A liberdade é quase sempre exclusivamente a liberdade de quem discorda de nós.” Quando o jornalismo ajuda a promover a liberdade real no mundo, deixa de prevalecer o “sentimento de horda”, que se faz sentir, por exemplo, nas sondagens de opinião. Salienta Chauí que a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos, e sim, que se vai buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido. Desse modo, procura-se fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de sentimentos.
Acontece que “a sociedade é maior do que o mercado. O leitor não é consumidor, mas cidadão. Jornalismo é serviço público, não espetáculo”, como preconiza Alberto Dines.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários