A revista New Republic, de Washington, publicação de conteúdo político, cultural e opinião, acaba de comemorar seu 100º aniversário. Tornou-se uma lenda nos círculos políticos, intelectuais e literários, em grande parte porque foi ali que alguns dos mais destacados jornalistas do país iniciaram sua carreira. Assim, quando o novo proprietário forçou a saída de dois de seus principais editores na semana passada, metade da redação se demitiu e a mídia americana se enfureceu.
Parece uma perfeita expressão simbólica do momento. O novo proprietário, Chris Hughes, ex-colega de quarto de Mark Zuckerberg em Harvard, amealhou uma fortuna de meio bilhão de dólares investindo no Facebook quando este começava a engatinhar. Hoje com 31 anos, ele tinha 28 quando adquiriu a New Republic, há quase três anos. Por outro lado, Franklin Foer, o principal editor que ele demitiu, tem 40 e trabalhou por quase 15 na revista, em diversos momentos. O outro demitido, o brilhante e carismático editor literário Leon Wieseltier, ali esteve por 31 anos, desde que Hughes estava ainda na barriga da mãe.
Sua decisão desencadeou automaticamente um debate e uma série de críticas. O bárbaro da era digital destrói preciosas instituições culturais. Um jovem imaturo e superficial humilha profissionais mais velhos e experientes. Meras visitas a páginas e simples cliques passariam a substituir reflexões cultas e ponderadas há muito arraigadas numa memória institucional.
Havia alguma verdade em tudo isso. A revista viveu grandes e admiráveis momentos. Wieseltier dirigiu por muito tempo a melhor seção de livros do país. Em parte, o furor provocado pela decisão de Hughes explicava-se pelo fato de que os jornalistas, que sofreram ao longo dessa época de mudanças radicais na mídia, podiam finalmente manifestar-se e expressar sua ira sem medo de comprometer o emprego ou sua posição com críticas à chefia, atual ou futura. Todo um mundo estava desaparecendo.
No momento em que jornais e revistas estão diminuindo de tamanho em todo o país, em que o New York Times tenta eliminar, por meio de aquisições e demissões, cem cargos na redação e as editoras só querem contratar os nascidos na era digital – jovens que conhecem unicamente a internet –, as medidas adotadas por Hughes sintetizam vividamente todos os conflitos e tensões desta época. Seu erro fatal foi ter permitido que seu novo CEO declarasse que queria transformar a revista numa “companhia de mídia digital verticalmente integrada”, fazendo com que parecesse desprovido de inteligência emocional.
Cultura e valores
Por todas essas razões, quando alguns ex-editores e redatores da New Republic fizeram um abaixo-assinado implorando a Hughes que não destruísse uma revista que fora “o maior exemplo e foro do liberalismo americano”, “uma espécie de repositório da confiança do público” e “não… um negócio”, a mídia explodiu em aplausos.
Enquanto isso, formava-se uma reação antagônica. Na opinião de alguns, era o cúmulo que esses jornalistas mimados reclamassem de que a New Republic não fosse uma empresa. Ao fazer essa afirmação, ignoravam a realidade econômica do presente, acrescentavam. A revista estava perdendo US$ 5 milhões ao ano. Sua circulação, páginas de publicidade e visitas às páginas caíam vertiginosamente ou estagnavam. Ninguém, por mais rico que fosse, poderia pensar em investir numa instituição moribunda. E de todo modo, afirmava-se, a New Republic prosperara antes da era da internet e aqueles dias haviam passado. Aliás, bastava ver onde fora postado o indignado abaixo-assinado: no Facebook!
Não foi só isso. Um terceiro grupo afirmou que a New Republic deixara havia décadas de ser o orgulho do liberalismo. O proprietário anterior, Martin Peretz, ressaltaram, escrevera artigos questionando a inteligência dos negros e dos árabes e publicara um trecho de um livro infame, The Bell Curve, defendendo o argumento de que a sociedade deveria se organizar de acordo com o QI das pessoas. Além disso, em 1994, a revista publicara orgulhosamente uma matéria de capa atacando o projeto de Bill Clinton sobre a reforma da saúde, artigo que posteriormente se revelou cheio de falsidades e incorreções, mas conseguiu matar o projeto de lei.
Eu mesmo fui redator da New Republic por alguns anos, saindo por razões demasiado complexas para serem analisadas num espaço tão limitado. As pessoas frequentemente se demitiam por motivos não muito claros – essa era a natureza do lugar. Pois por trás do debate atual sobre a ideologia da revista, do lugar que ela ocupou na história e na cultura americana e do fato de ela constituir um teste para a era digital há uma verdade inconteste. Por trás do aparente conflito de princípios está o incontestado choque dos egos.
Ao adquirir a revista, Hughes tomou uma estranha decisão. Manteve os dois principais editores, que representavam a era anterior da publicação. E procurou diminuir o poder de ambos enquanto os mantinha nos respectivos cargos. Na verdade, antes que ele os demitisse, a revista se tornara quase irreconhecível para seus leitores mais antigos. Entretanto, Foer e Wieseltier jamais protestaram. Se Hughes quisesse transformar New Republic numa revista de culinária, eles teriam permanecido. Pedir a uma pessoa que reveja seus valores é uma coisa; pedir que abra mão do poder que tem é outra completamente diferente.
A função dos jornalistas é vasculhar os bastidores dos fatos, mas eles não gostam de falar de fatos que lhes digam respeito. No caso, o que havia na história de Wieseltier era que o editor se tornara notório por articular a demissão, um após o outro, de vários editores que ameaçavam sua posição e haviam se tornado mais visíveis do que ele, ou de profissionais de que não gostava. Foer, agora quase universalmente definido como o “queridinho”, é um doce de pessoa, mas também um bajulador e um fantoche, o que em Washington é sinônimo de “queridinho”. Ocorre que ambos estavam no caminho de Hughes.
Quanto aos jornalistas que defendiam a revista e se demitiram em massa, nenhum deles fez um protesto público quando Peretz publicou um artigo racista e outro em que defendia a eugenia. Ninguém se demitiu quando a revista soou histericamente os tambores de guerra, pedindo desvairadamente a invasão do Iraque – a decisão política de consequências mais devastadoras da história americana. Ninguém expressava indignação quando Peretz, que certa vez me disse em tom de desafio que odiava Hillary Clinton porque ela o esnobara numa festa, atacava e difamava as pessoas das quais não gostava.
Agora, as pessoas falam do que aprenderam na New Republic, que durante décadas foi o ponto de partida de longas carreiras no jornalismo. O que eu aprendi é que por trás da retórica grandiloquente, das expressões elevadas sobre liberalismo, confiança do público e um século de “tradição” está o que alguém definiu como “choque de apetites”. Os editores da New Republic tinham belos ideais, mas raramente os puseram em prática. O que está afundando a revista agora não é um choque de culturas, ou de valores. É o fato puro e simples, que nada tem a ver com seu conteúdo intelectual, de que caráter é destino.
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Lee Siegel é escritor e crítico cultural americano. escreve para The New York Times, The New Yorker eThe Nation