Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No olho da história

A primeira guerra fotografada “profissionalmente” foi a da Crimeia, região ao sul da atual Ucrânia, entre os anos de 1853 e 1856, numa ação expansionista do então império russo, guiado pelo czar Nicolau 1º contra os aliados do Reino Unido. Desde então, muita coisa mudou na cobertura de conflitos, mas a região, umséculo e meio depois daquelas batalhas, volta a ser palco para o fotojornalismo por razões semelhantes, envolvendo a Ucrânia e a Rússia.

Roger Fenton (1819-1869), britânico de Lancashire, fez centenas de fotos da disputa na Crimeia para ilustrar as matérias de William Russell para o Times. Entretanto, era uma visão bem peculiar a sua, com imagens quase sempre organizadas – e muitas vezes montadas – de modo muito diferente do que vemos hoje.

Fenton largou a fotografia em 1862, mas suas imagens seminais ainda hoje propõem uma discussão sobre a credibilidade dos registros fotojornalísticos, a posição de seus autores perante a sociedade, bem como o próprio conceito do jornalismo.

Nos anos 1930, os equipamentos muito pesados do inglês – negativos de vidro 8×10’’ para produção em colódio ou calótipo –, os chamados processos históricos, foram substituídos pelas câmeras mais leves 6×6 cm e pela novidade que iria marcar o meio tecnicamente, a câmera Leica de negativo 35 mm, criada em 1913 pelo engenheiro alemão Oskar Barnack e colocada no mercado em 1925. Com isso, pôde ser plenamente utilizada na Guerra Civil Espanhola. O conflito, entre os falangistas do general Franco e a Frente Popular, não produziu somente uma dicotomia entre o fascismo e a democracia, mas também uma sucessão de imagens e profissionais icônicos, entre os quais se destaca o húngaro Endre Friedmann, mais conhecido como Robert Capa. É dele a foto que mostra um miliciano supostamente sendo atingido, que simboliza o momento decisivo da fotografia, bem como um dos questionamentos mais frequentes da veracidade do meio.

Nova distribuição

Capa, por suas ligações com celebridades, também iniciaria o processo de glamourização do fotojornalista tão utilizado pela indústria cinematográfica, embora a realidade do trabalho não seja nada disso, como vemos pela quantidade de jornalistas que vêm morrendo em conflitos, que extrapolaram as guerras convencionais e se estendem às cercanias domésticas de todos nós.

A foto do miliciano causa dúvidas até hoje e representa uma espada de Dâmocles na cabeça de todo fotojornalista, a dúvida entre tomar partido e a isenção moral diante de um evento. Contudo, ainda não se provou nada contra o famoso fotógrafo. Em 2007, com a descoberta no México de uma caixa contendo cerca de 3 mil negativos seus, esperava-se pôr um fim na controvérsia.

Não aconteceu ainda de o húngaro cair de seu pedestal, e a tal “maleta mexicana”, como ficou conhecida, com imagens da guerra da Espanha – atualmente parte do acervo do International Center of Photography (ICP) de Nova York –, só serviu para pôr em questão uma coisa: se sua companheira, Gerda Taro (morta como ele no front de batalha, só que anos antes, em 1937, na Espanha), era uma profissional bem mais talentosa do que se imaginava até então.

Ao fotojornalista resta não só a concorrência dos seus pares. Algumas imagens dessa categoria entraram para a história já na guerra do Vietnã, em 1968: o lamentável episódio do massacre da vila de My Lai, onde mais de 300 civis foram assassinados por uma tropa americana.

A imagem de homens, mulheres e crianças mortos ganhou cor e as páginas mundiais pelas mãos do sargento Ronald L. Haeberle, fotógrafo do Exército, que carregava a própria câmera, além da utilizada no trabalho, com filme em preto e branco. As imagens coloridas escaparam à censura e foram amplamente divulgadas.

Em 2003, o francês Jean-Marc Bouju, da Associated Press (AP), ganhou o mais cobiçado prêmio do fotojornalismo – o de melhor foto do ano –, dado pela World Press Photo (WPP), uma organização sem fins lucrativos, que já conta com 50 anos de atividade. A imagem é de um prisioneiro iraquiano em uma base americana no Iraque sendo confortado por seu filho.

A comovente imagem do francês também criou um paradigma, no qual a estetização parece ser maior que a informação. Em 2011, o húngaro Balazs Gardi criou o Basetrack, uma ação de fotojornalistas “embutidos” no batalhão de mariners americanos no Afeganistão, enviando imagens para mídias sociais diariamente. O visual produzido por meio de um aplicativo chamado Hipstamatic, para o iPhone, também marcou definitivamente a maneira pela qual a fotografia de guerra seria conhecida.

Gardi vem promovendo outras mudanças significativas, como a crescente independência do fotojornalista das chamadas mídias tradicionais. Em amplo sentido, não há mais necessidade de trabalhar para uma publicação, e o autor pode distribuir seu trabalho no formato Creative Commons, desenvolvendo seus próprios projetos, veiculando-os em blogs e sites, e vendendo sua produção para quem quiser.

Primado da postura

A terceirização do fotojornalista é fato internacional, mas pode ser comprovada por três grandes fotógrafos brasileiros, o paulista Mauricio Lima, a gaúcha Alice Martins e a carioca Ana Carolina Fernandes, todos com ampla participação internacional, com imagens de conflitos dentro do Brasil ou no exterior, como no Afeganistão, no Iraque e mais recentemente na Ucrânia.

Novos paradigmas para a profissão também surgiram com as câmeras DSLR (digital single lens reflex), que filmam, alterando o panorama para o novo profissional, que não se limita mais ao estático, como demonstra a inclusão, em 2013, de categorias multimídia no prêmio da WPP.

Das pesadas câmeras de Fenton aos leves e potentes gadgets, o que não muda mesmo é o posicionamento do fotojornalista. A postura continua sendo uma importante ferramenta na compreensão da história, na reavaliação da vida e na definição entre a civilização e a barbárie.

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Juan Esteves é fotógrafo e crítico de fotografia, com passagens por diversas publicações brasileiras, como Folha de S.Paulo, Veja, IstoÉ, Elle e Época. Tem fotos publicadas em vários países.