Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O financiamento da imprensa alternativa

Este artigo trata dos modelos de negócio aplicados ao jornalismo. Parte do pressuposto de que a política de comunicações no Brasil é concentradora e favorece o modelo comercial. Por isso, pretende identificar meios não convencionais de financiamento. Especificamente, diz respeito às formas de sustento de organizações jornalísticas que podem ser classificadas como alternativas, e os critérios utilizados para tanto. O objetivo principal é definir a viabilidade econômica destes empreendimentos, por meio do estudo de caso de três instituições que exercem suas atividades fora do modelo comercial de negócio. Entre as opções encontradas está o financiamento coletivo, levado a cabo via crowdfounding, programas de assinaturas, parcerias e doações diretas. Conclui que a sobrevivência da imprensa alternativa na era pós-industrial deve ser buscada no terceiro setor, a partir de uma mudança no paradigma de participação do público no processo de produção das notícias.

Introdução

O presente artigo pretende analisar as formas de financiamento da imprensa alternativa, com o objetivo geral de responder a seguinte pergunta: como sobreviver fora do modelo comercial de jornalismo e dentro do marco da liberdade de imprensa?

Para conhecer os meios de exercer o jornalismo independente dos grandes grupos de mídia, busca-se identificar os modelos de negócio existentes na área da comunicação, descrever a gestão financeira de veículos considerados alternativos, apontar os entraves econômicos à efetiva democratização da mídia e indicar as soluções encontradas por empreendedores para desenvolver a atividade jornalística de forma livre e financeiramente estável.

A escolha do tema justifica-se pela carência de uma construção científica voltada para as questões práticas do fazer jornalístico. Muito se discute a importância da imprensa alternativa no cenário midiático atual, porém, o foco do debate permanece voltado para o seu conteúdo. Dessa forma, o estudo acadêmico acerca da viabilidade material da produção jornalística independente se faz relevante, tendo em vista a saturação do modelo de negócio que se mantém preso às formas convencionais de sustento.

Metodologia

Esta pesquisa contempla o estudo de caso de iniciativas que buscaram meios inovadores para manter suas atividades jornalísticas, a exemplo do Estúdio de Jornalismo Fluxo, da Agência Pública de Reportagem e Jornalismo Investigativo e da Repórter Brasil.

Os dados coletados baseiam-se em entrevistas realizadas no mês de outubro de 2014 com representantes dos veículos estudados. Pesquisa documental e o acesso à bibliografia pertinente ao tema também orientam as discussões desenvolvidas ao longo deste trabalho, bem como a consulta aos sítios eletrônicos e acervos digitais dos empreendimentos analisados.

As organizações jornalísticas pesquisadas apresentam datas de criação distintas: a Repórter Brasil foi fundada em 2001, a Agência Pública em 2011 e o Estúdio Fluxo em 2014. Por essa razão, optou-se por concentrar o exame nos meios de financiamento vigentes no ano de 2014, período em que as três instituições que constituem o objeto empírico do presente artigo estão em atividade. No entanto, o levantamento de dados também abrange trabalhos desenvolvidos pelas entidades no ano de 2013, caso dos projetos jornalísticos Reportagem Pública, lançado pela Agência Pública, e Arquitetura da Gentrificação, idealizado pela Repórter Brasil, ambos viabilizados com financiamento coletivo.

Novas vozes querem ser ouvidas

A imprensa alternativa, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, carrega como essência a característica de representar grupos que, a partir de uma linguagem comum, procuram criar meios de comunicação independentes, como forma de se distanciarem do que está instituído. O surgimento de veículos alternativos nos Estados Unidos, a partir da década de 1950, quando minorias políticas passaram a criar seus próprios canais de expressão por rejeitarem o status quo vigente à época, relaciona-se, em seu viés ideológico, ao fenômeno da contracultura. (CAPARELLI, 1982)

Roszak (19XX, apud CAPARELLI, 1982, p.47) conceitua a contracultura americana da década de 1960 como:

Ideologias e atividades politicamente de esquerda e tecnologicamente conservadoras, que constituem uma alternativa cultural oposta à corrente principal do progresso tecnocrático e o domínio do atual sistema educacional, social e governamental.

Dessa forma, aproximando-se ao movimento contracultural, a imprensa alternativa tinha como função “servir como elo de ligação com as pessoas que adotassem pontos de vista semelhante e, ao mesmo tempo, elo com a comunidade, para que ela entendesse seus objetivos” (CAPARELLI, 1982, p. 47).

Identifica-se na imprensa alternativa a oposição ao que está posto, tanto no que diz respeito ao conteúdo, quanto no que se refere à forma, incluindo, aqui, os modelos de negócio aplicados ao jornalismo.

De acordo com Caparelli (1982, p.50), “há alguns pontos de contato da imprensa alternativa em relação às características do jornalismo em sua fase pré-industrial”. Este período caracteriza-se pela produção artesanal, em pequenas tiragens, que prescindiam de grandes investimentos, pois os jornais estavam vinculados aos partidos políticos, não existia um espaço físico próprio e, em geral, todo o processo produtivo era exercido por uma única pessoa, o que se convencionou chamar de jornalismo do tipo ‘one man one paper’. (CAPARELLI, 1982)

A fase pré-industrial da imprensa no Brasil começa a ser substituída pelo modo capitalista de produção nas primeiras décadas do século XX – de forma mais acentuada a partir de 1930 –, com a divisão do trabalho jornalístico e a criação de uma estrutura organizacional nas redações. Caparelli (1982, p. 52) define o período que se seguiu como o do jornal-empresa, produzido em moldes capitalistas, de tal modo que, “quem quiser fundar um jornal necessita de uma concentração muito grande de capital e tecnologia”.

A aderência da imprensa ao modelo industrial impossibilitou que muitos jornais artesanais continuassem vivos no novo mercado da informação. No entanto, após a década de 1970, a saturação desse modelo de negócio impulsionou o surgimento da imprensa alternativa, em uma lógica que resgata as características do jornalismo pré-capitalista:

Isso até que surgisse a imprensa alternativa, paralela ou nanica, a partir de 1970, revivendo uma variedade de títulos e com muitos pontos de contato com o jornalismo pré-capitalista, principalmente com os métodos quase artesanais de distribuição, o número de pessoas envolvidas no projeto, a orientação para valores ideológicos e não para o lucro como finalidade principal, a fuga de um tipo de jornalismo legado ao mundo pelos norte-americanos já em fins do século passado, a locação de terceiros para serviços de impressão (CAPARELLI, 1982, p. 52).

A imprensa alternativa surge, pois, como reação a um padrão estabelecido e vigente na sociedade, qual seja, o modelo industrial de produção e distribuição de notícias, “em razão da sua satelitização aos interesses dos grupos com poder econômico ou político” (CAPARELLI, 1982, p. 53).

Novas formas de dizer

A negação ao que está vigente – uma das marcas da imprensa alternativa mundial – não se restringe aos modelos de negócio. Também abarca inovações linguísticas, na busca por novas formas de comunicação.

Na Itália, o desejo de ir contra a ordem do discurso estabelecido fez com que, na década de 1970, pequenos grupos originados em guetos que se autogerenciavam criassem mecanismos capazes de romper com o tradicional sistema de produção e circulação da informação. Foi o caso da Rádio Alice, fundada a partir do Gatto Selvaggio, círculo político-cultural criado em Bolonha por minorias influenciadas pelos movimentos da extrema-esquerda. (GUATARRI, 1981)

Como traço característico, Guatarri (1981) identifica em Alice a subversão da linguagem: “Alice. Rádio linha de fuga. Agenciamento teoria – vida – prática – grupo – sexo – solidão – máquina – ternura – carinho. Acaba com a chantagem da cientificidade dos conceitos” (GUATARRI, 1981, p. 58).

Fenômeno semelhante também ocorreu em terras brasileiras. Com forte viés político, a imprensa alternativa no Brasil foi marcante no combate ao regime militar nos anos 1970. Em razão da censura, a necessidade de inovar a linguagem se tornou vital para a circulação dessas publicações:

De olho na possibilidade de censura, o ataque à Ditadura Militar, muitas vezes, era colocado de forma subliminar e por meio de metáforas. Eram códigos sociais que se alastravam na sociedade civil que se organizava com o intuito de derrubar o Regime Militar. Os quadrinhos, os cartuns, as charges e as tirinhas, na esteira de O Pasquim, ganhavam realce nas publicações alternativas (LEMOS; SANTIAGO, 2014).

Cumpre ressaltar que, embora a Constituição de 1967 tenha assegurado a liberdade de imprensa, o Ato Institucional n°5, decretado em 1968, oficializou a ditadura, sobrepondo-se à Constituição então vigente e suspendendo garantias constitucionais. Já no primeiro dia após a assinatura do AI-5, militares invadiram algumas redações de jornais (SOARES, 2014).

Como continuar dizendo?

Com o fim da censura instituída, a partir da redemocratização do país, a liberdade de imprensa foi consagrada como um direito. O art. 220, caput, da Carta Magna dispõe que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (BRASIL, 1988).

Salienta o § 1° do mencionado artigo que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV” (op. cit.). Além disso, o § 2° do art. 220 da Constituição Federal de 1988 inadmite toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. No entanto, o pleno gozo do direito de informar esbarra em outras questões, como a financeira, uma vez que toda produção de conteúdo exige recursos que a banquem.

Em que pese ser a liberdade de expressão reconhecida como uma garantia constitucional, a estrutura de negócio vigente no mercado comunicacional brasileiro limita a prática jornalística, em razão da dificuldade de financiamento encontrada pelos veículos que não se inserem nos grandes grupos de mídia. Christofoletti (2003) identifica o oligopólio como o principal impasse para a construção de um sistema de comunicação mais democrático no país, por dificultar a entrada de novas empresas e estilos no mercado:

O mercado fica concentrado em poucas redes controladas por escassos grupos empresariais. Com uma agravante: grande parte desses grupos são familiares, fato que faz prevalecer uma gerência do negócio público (comunicar) muito mais próximo do regime privado. Calcula-se, hoje, que sete grupos controlem 80% de tudo o que é visto, ouvido e lido nos media brasileiros (CHRISTOFOLETTI, 2003).

Assim, partindo-se do pressuposto segundo qual inviabilizar materialmente o exercício de um direito é o mesmo que negar esse direito, tem-se que a distribuição desigual dos meios de produção aplicados ao jornalismo faz surgir uma nova espécie de censura, desta vez, econômica, e não mais político-ideológica.

De acordo com Venício Lima, existem outras formas de censura em que o censor não é o Estado:

Quase 20 anos depois do fim da ditadura, em plena democracia, continuamos a ignorar, no Brasil, a evidência de que, junto com outras atividades anteriormente consideradas como exclusivas do Estado, a censura também está sendo privatizada (LIMA, 2004).

Dessa forma, o controle do mercado de comunicação exercido pelas empresas de mídia – reduzidas a poucos grupos familiares, alguns já associados à megagrupos multinacionais – acaba por determinar o conteúdo da informação que chegará até o público. (LIMA, 2004)

A partir deste panorama, Lima (2004) questiona a concepção de censura como exclusivamente relacionada à atuação estatal sobre a imprensa e expõe a realidade segundo qual a concentração da propriedade privada dos meios de comunicação interfere na liberdade de expressão, ao reduzir a pluralidade de fontes e diversidade de conteúdos, pilares da democracia.

As organizações pesquisadas – Agência Pública, Estúdio Fluxo e Repórter Brasil – exercem suas atividades jornalísticas em um regime democrático. Por isso, mais se assemelham à imprensa alternativa dos anos 1950 nos Estados Unidos e às rádios libertárias italianas dos anos 1970 do que a desenvolvida durante o regime militar brasileiro.

Neste contexto, esses veículos subvertem a linguagem jornalística tradicional? Como sobrevivem financeiramente? É possível ser alternativo em um regime democrático, porém, nos marcos do capitalismo e do poderio de grupos econômicos de mídia? São questões que serão abordadas a seguir.

Saídas possíveis

Desde a invenção da imprensa por Gutemberg, “um modelo de negócio se desenvolveu e se aprimorou para dar ao jornalismo o respaldo de uma indústria poderosa, respeitável e rentável” (COSTA, 2014, p. 54). No entanto, com a consolidação da comunicação digital, uma nova realidade se configurou. Nela, a receita proveniente da publicidade, dos classificados e da venda de jornais recuou consideravelmente, em razão da migração do público – e dos anunciantes – para a internet, assim como o lucro:

Esse problema, de uma forma ou de outra e de maneira geral, atinge a indústria tradicional, em especial os jornais. Cortes de custos, queda do faturamento com publicidade, perda de leitores e diminuição do tamanho vêm sendo uma constante neste negócio nos últimos anos – desde a emergência das novidades trazidas pela tecnologia e pela comunicação em rede (COSTA, 2014, p. 54).

O encolhimento das redações jornalísticas e o fechamento de jornais e revistas indicam uma crise no modelo tradicional de negócio. Para sobreviver, os criadores de conteúdo devem se reinventar, se adaptar ao modelo de jornalismo pós-industrial, cuja base está intimamente ligada à forma de se relacionar com o público, “que se acostumou a consumir informação de graça e se tornou ele próprio, além de produtor, um distribuidor. Melhor, um subdistribuidor de informação” (COSTA, 2014, p. 57).

Contribua! Apoie! Doe!

A ruptura do padrão industrial de jornalismo exige a adoção de estratégias que tornem a produção de notícias economicamente viável, sem abrir mão da qualidade e da autonomia. Para tanto, é preciso investir em um modelo de negócio em que a fonte da receita não advenha da publicidade, evitando ingerências políticas sobre o trabalho do jornalista, bem como a contaminação das reportagens por interesses individuais, garantindo-se, dessa forma, liberdade editorial.

Alberto Dines (Observatório da Imprensa, 2012) defende que iniciativas jornalísticas independentes só podem se concretizar no terceiro setor [O terceiro setor é constituído por organizações da sociedade civil que têm por objetivo prestar serviços de caráter público, sem fins lucrativos.], pois “nas mãos da iniciativa privada ou do governo perderiam a sua independência e a sua legitimidade”. Neste caminho, uma das soluções encontradas pelas instituições pesquisadas para desenvolver suas atividades passa pelo microfinanciamento.

De acordo com Fontoura e Träsel (2012, p. 41) “o microfinanciamento (do inglês ‘crowdfounding’) é um processo através do qual indivíduos e organizações doam pequenas quantias em dinheiro para uma causa específica, de modo a permitir sua execução.” Os autores ressaltam que um dos traços característicos do microfinanciamento é o subsídio de uma causa em que se acredita, “não importando se haverá retorno financeiro ou não” (FONTOURA; TRÄSEL, 2012, p. 42).

Para Marcela Donini (2014), “o público doa porque quer que o projeto seja concretizado”. Ou seja, a motivação da contribuição distingue o crowdfounding de outros financiamentos coletivos, uma vez que, neste, o objetivo não é só arrecadar dinheiro, mas reunir pessoas em torno de uma causa comum, fortalecendo a ideia de coletividade.

Além desta, Donini identifica como mais uma especificidade do microfinanciamento a existência de recompensas:

Entendo todo crowdfunding como um financiamento coletivo e normalmente sinônimo de microfinanciamento; mas nem todo financiamento coletivo é um crowdfunding se entendermos que este é o sistema que oferece recompensas extras aos doadores. Um financiamento coletivo pode ser uma simples “vaquinha” ou, no caso do jornalismo, um modelo em que há assinantes e doações únicas (DONINI, 2014, grifo nosso).

O microfinanciamento encontrou esteio no webjornalismo, tanto pela popularização das publicações online, onde as noções de participação e compartilhamento estão muito presentes, quanto pela facilidade de operacionalização do modelo pela internet, com o desenvolvimento de ferramentas em que o próprio indivíduo pode contribuir, sem a necessidade de intermediários.

De acordo com Donini (2014), o fato de vivermos em rede alterou a lógica de distribuição da informação. Se antes o fluxo era de ‘poucos para muitos’, passou a ser, com a internet, de ‘muitos para muitos’. Neste terreno fértil, o crowdfounding se desenvolveu. Embora não vá salvar o jornalismo, o microfinanciamento “se apresenta como uma alternativa para que bons repórteres dispensados das grandes redações, ou mesmo aqueles que nunca pisaram em uma [sic.] mas tem gana e habilidade para fazer um bom jornalismo, não fiquem inertes por falta de dinheiro” (DONINI, 2014).

Projetos bem-sucedidos

Em 2013, a Agência Pública lançou seu primeiro projeto de crowfounding, o Reportagem Pública, para financiar reportagens investigativas através de doações feitas no Catarse – principal plataforma brasileira de microfinanciamento (Figura 1).

FIGURA 1 – Captura de tela do projeto Reportagem Pública na plataforma Catarse
Reportagem Publica Catarse.jpg
Fonte: catarse.me – Reprodução

O projeto chegou ao final do período de arrecadação com grande apoio do público, como explica Natália Viana, codiretora da Pública:

Durante a campanha de arrecadação, que durou 45 dias entre agosto e setembro de 2013, conseguimos reunir R$ R$ 58.935 de 808 apoiadores, uma média de 72 reais por apoiador. Em troca, publicamos 12 reporagens [sic.] investigativas ao longo de 6 meses no nosso site e na nossa rede de republicadores (já que funcionamos como uma agência). (VIANA, 2014).

Além de receberem as recompensas previstas para cada valor de doação (Figura 2), todos os apoiadores passaram a fazer parte do Conselho Editorial e puderam escolher, por meio de votação, quais propostas de reportagem seriam contempladas com as bolsas, entre as 48 pré-selecionadas. As pautas eleitas pelo conselho foram realizadas com curadoria da agência e as reportagens produzidas publicadas no site da Pública.

FIGURA 2 – Esquema de recompensas do projeto Reportagem Pública
ESQUEMA RECOMPENSAS PÚBLICA.jpg
Fonte: catarse.me

A Repórter Brasil também apostou no crowdfounding em 2013, com o projeto Arquitetura da Gentrificação, organizado pela jornalista Sabrina Duran via Catarse (Figura 3).

FIGURA 3 – Captura de tela do projeto Arquitetura da Gentrificação no Catarse
Arquitetura da Gentrificaç?o Catarse.jpg
Fonte: catarse.me – Reprodução

Nos 40 dias de duração da campanha, os 316 apoiadores somaram R$ 20.227,00 em doações. O valor arrecadado custeou três meses de investigação sobre o processo de gentrificação [Gentrificação é o nome que se dá à expulsão de moradores pobres de determinada região por meio de um conjunto de medidas socioeconômicas e urbanísticas marcado pela hipervalorização de imóveis e encarecimento de custos.] na cidade de São Paulo (Figura 4). As informações coletadas foram apresentadas em uma série de reportagens especiais no site da Repórter Brasil.

FIGURA 4 – Fases do projeto Arquitetura da Gentrificação
Projeto Gentrificaç?o.png
Fonte: catarse.me

Muito além da “vaquinha”

O microfinanciamento não é a única alternativa ao modelo convencional de custeio utilizada pelas iniciativas jornalísticas estudadas. A Agência Pública também recebe apoio financeiro da Ford Foundation, da Society Foundation e da Omidyar Network (Figura 5).

FIGURA 5 – Captura de tela do site da Agência Pública

Fonte: apublica.org – Reprodução

Com o apoio da Ford Foundation, a Pública já realizou três concursos de microbolsas para reportagens investigativas, escolhidas por uma comissão julgadora composta pelos consultores da agência. As microbolsas financiaram projetos de jornalistas interessados em trabalhar de maneira independente, sem vínculo de exclusividade com veículos de mídia (PÚBLICA, 2014).

De igual modo, as fontes de custeio da Repórter Brasil são múltiplas. A receita da iniciativa é obtida por quatro vias principais: convênios com instituições federais, governos estaduais, Ministério Público e Poder Judiciário; parcerias com universidades, institutos e fundações brasileiras e estrangeiras; patrocínios e anúncios de empresas; e doações de pessoas físicas e jurídicas (REPÓRTER BRASIL, 2014).

O coordenador de jornalismo da organização, Daniel Santini avalia que a pluralidade dos meios de arrecadação mantém a independência da instituição: “Apostar não em uma, mas em várias formas de captar recursos ajuda a garantir que a organização não dependa de uma só fonte” (SANTINI, 2014).

Em 2012, a organização passou a receber doações diretas de pessoas físicas e, em 2013, implantou o sistema de assinaturas (Figura 6). Segundo Santini (2014), “por entender que o apoio direto de leitores fortalece nossa independência, temos tentado ampliar e melhor estruturar essa base”.

FIGURA 6 – Captura de tela do site da Repórter Brasil
Apoie Reporter Brasil.jpg
Fonte: reporterbrasil.org.br – Reprodução

Já o financiamento do Estúdio de Jornalismo Fluxo baseia-se, no seu primeiro ano de vida, em contribuições de apoiadores ou membros, que são convidados a participar de diferentes formas (Figura 7).

FIGURA 7 – Captura de tela do site do Fluxo
Participe do Fluxo.jpg
Fonte: fluxo.net – Reprodução

Autodeclarado como um veículo em construção, “o Fluxo é também um campo de testes de uma nova viabilidade econômica para a produção de informação. Dispensando anunciantes comerciais e buscando sua independência financeira na relação direta com sua audiência” (FLUXO, 2014). A proposta de aproximar o jornalismo produzido pelo Fluxo do seu público orienta a forma de custeio do empreendimento:

Não contamos com anunciantes, nem com “consumidores” de informação; mas com uma audiência a fim de estabelecer uma relação inteligente e viva com a notícia, com seu contexto, e com quem a produz. Que seja capaz de difundir, corrigir e viabilizar nossa produção. Que nos ajude a refletir. E que entenda seu papel na construção de um novo ambiente de mídia. Na proposição de pautas, no financiamento, nas críticas e na construção permanente do nosso canal. (FLUXO, 2014)

Nesta esteira, a palavra consumidor é substituída por viabilizador, parceiro, amigo. Para arrecadar dinheiro, o Fluxo sugere dois modelos de contribuição financeira: apoio mensal de R$ 15,00 (Figura 8) e associação como membro, mediante pagamento de uma mensalidade no valor de R$ 100,00. O estúdio também aceita doações avulsas de qualquer valor, além de equipamentos de infraestrutura (FLUXO, 2014).

FIGURA 8 – Captura de tela do site do Fluxo

Como apoiar o Fluxo.jpg
Fonte: fluxo.net – Reprodução

O Fluxo amplia a compreensão de mídia alternativa para além da questão financeira:

Não se trata apenas de sustentar o Fluxo. Acreditamos que a derrocada do modelo industrial do jornalismo abre uma porta para a transformação da mídia. Em vez de poucos e enormes veículos, muitos e menores. Mais ágeis, econômicos e especializados. Mais próximos de seu público e bem mais transparentes. Colaborando com o Estúdio Fluxo você está apoiando um projeto específico. Mas, mais importante do que isso, está fazendo parte de um movimento global, de uma importante tarefa dessa geração: testar e estabelecer novos modelos econômicos para uma imprensa mais plural, democrática e conectada com o presente. (FLUXO, 2014, grifo nosso).

Com essa conformação, o aproxima-se da imprensa alternativa americana dos anos 1950, realizando um movimento de contracultura, em razão do forte elo que pretende estabelecer com a comunidade, conforme explicitado por Caparelli na primeira parte deste artigo.

Também acessa as rádios libertárias que despontaram na Itália na década de 1970, uma vez que subverte a linguagem jornalística tradicional, principalmente no que diz respeito à maneira de dialogar com o público, haja vista a ironia encontrada na campanha de arrecadação do Fluxo, conforme figura 8. As figuras do discurso relacionadas a signos evangélicos, como fé, oferta e pastorturra – resultado da junção das palavras pastor e Torturra (sobrenome do jornalista idealizador do Fluxo) – são índices de dízimo e constroem o tema da doação, que também é alcançado pela aforização da expressão DOE e pela metáfora do culto religioso, em um diálogo interdiscursivo.

Jornalismo público

A Agência Pública adotou a licença Creative Commons (CC) na gestão dos direitos autorais sobre as reportagens produzidas. Dessa forma, permite o compartilhamento do conteúdo postado em seu site – sem alterações e com o devido crédito –, formando uma rede de republicadores e parceiros (Figura 9).

FIGURA 9 – Captura de tela do site da Agência Pública
Republicadores.jpg
Fonte: apublica.org – Reprodução

De igual forma, a Repórter Brasil adotou, em 2012, a licença aberta Creative Commons 2.0, admitindo a livre reprodução gratuita de todo conteúdo produzido, desde que citada a fonte.

Antes, em setembro de 2011, a Repórter Brasil – até então constituída como uma organização não governamental (ONG) – foi reconhecida pelo Ministério da Justiça como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Tal fato permitiu, além do recebimento de doações dedutíveis do imposto de renda por pessoas jurídicas, a celebração de parcerias públicas, ampliando as hipóteses de financiamento. Santini (2014) cita como exemplo o convênio firmado pela Repórter Brasil com o Escritório das Nações Unidas contra o Crime Organizado (UNODC) e o Ministério da Justiça, “trabalho que resultou em uma oficina de treinamento para jornalistas de todo o país, em um relatório sobre a cobertura da mídia e um guia com recomendações para abordar o tema”.

A opção pelo modelo de constituição sem fins lucrativos e o licenciamento dos direitos autorais por Creative Commons restabelecem a função elementar do jornalismo de prestar um serviço público. Entender o fazer jornalístico como uma permuta, e não como a comercialização de um produto, é vital para a sobrevivência dos veículos nos novos tempos, com todas as transformações que ainda estão em curso.

Considerações finais

Considerando que o modelo de negócio baseado na publicidade compromete sobremaneira a isenção dos veículos, tem-se que a produção de um jornalismo efetivamente independente só existe quando não se curva a interesses privados, individuais e de mercado. Se o jornalismo deve ter como objetivo apenas o interesse público, o modelo ideal de financiamento deve vir do público.

Logo, a sobrevivência da imprensa na era pós-industrial está intimamente ligada à forma de se relacionar com o leitor. No entanto, não se trata de uma relação fornecedor/consumidor, mas de algo simbolicamente mais complexo: a integração do leitor no fazer jornalístico, que passa a exercer papéis menos restritos dos que lhe eram permitidos tradicionalmente. Por isso, o conceito de alternativo na atualidade está fortemente relacionado às ideias de participação, interatividade e construção coletiva.

Ademais, a busca de alternativas para o financiamento da atividade jornalística na sociedade civil, instalando-a no terceiro setor, transforma as organizações pesquisadas em agentes de cidadania. Ao colocar o financiamento de inovações nas mãos de pessoas comuns, desconcentra poderes e relativiza o domínio dos grandes grupos de mídia, contribuindo para tornar os meios de comunicação mais democráticos e plurais.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

CAPARELLI, Sérgio. Comunicação de massa sem massa. 2ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 1982.

CHRISTOFOLETTI, Rogério. Dez impasses para uma efetiva crítica de mídia no Brasil. XXVI CONGRESSO ANUAL EM CIÊNCIA DA COMUNICAÇÃO. Belo Horizonte: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2003.

COSTA, Caio Túlio. Um modelo de negócio para o jornalismo digital. REVISTA DE JORNALISMO ESPM. São Paulo, p. 52-115, abr.-maio-jun. 2014.

DONINI, Marcela. A vaquinha não foi pro brejo: como o financiamento coletivo pode ajudar o jornalismo. Ebook. 2014. Disponível aqui, acesso em 29 out. 2014.

FONTOURA, Marcelo; TRÄSEL, Marcelo. Microfinanciamento e pluralização: comparação das coberturas do webjornal participativo Spot.Us e da imprensa americana. INTEXTO: UFRGS. Porto Alegre, n.27, p. 38-54, dez. 2012.

FLUXO. Website. Disponível aqui, acesso em: 31 out. 2014.

GUATARRI, Felix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. 2ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

LEMOS, Cândida; SANTIAGO, Magda. O Almanaque Humordaz e o discurso dos cartunistas na oposição à Ditadura Militar. Belo Horizonte: Centro de Investigação da Mídia da UNA, 2014. No prelo.

LIMA, Venício Artur de. “A privatização da censura”. Disponível aqui, acesso em 18 out. 2014.

OBSERVATÓRIO da Imprensa. Apresentação: Alberto Dines. Convidada: Natália Viana. Episódio: Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Exibido em 23 out. 2012.TV Brasil. EBC. Disponível aqui, acesso em: 29 out. 2014.

PÚBLICA. Website. Disponível aqui, acesso em: 31 out. 2014.

REPÓRTER BRASIL. Website. Disponível aqui, acesso em 31 out. 2014.

SANTINI, Daniel. Entrevista. Mensagem eletrônica recebida por tiagomattar2@gmail.com em 25 out. 2014.

SOARES, Glaucio Ary Dillon. “Censura durante o regime autoritário”. Disponível aqui, acesso em: 01 nov. 2014.

VIANA, Natalia. Crowdfunding: o leitor faz parte do jornalismo. Mensagem eletrônica recebida por tiagomattar2@gmail.com em 14 out. 2014.

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Fernanda Fonseca, Mariana Lacerda, Robson Sales, Sibele Fonseca e Tiago Mattar são estudantes de jornalismo