Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A influência permanece

Para comemorar 70 anos de existência, completados na quinta-feira (18/12), o jornal Le Monde organizou um festival; lançou em setembro o livro Le Monde. 70 Ans d’Histoire, publicado pela editora Flammarion (que afirma, com bom humor, não ser a história do jornal nem a história do mundo, mas um pouco dos dois); e foi exibido no Festival de Cinema de Cannes o documentário Les Gens du Monde, que mostra como trabalham seus jornalistas.

Le Monde é o jornal mais influente da França e um dos mais respeitados do mundo. Sua leitura é indispensável para a elite intelectual francesa, a classe política, o mundo diplomático, a academia. Poucos diários têm sido objeto de tantos livros, teses e debates. Conserva o anacronismo de ser um dos poucos vespertinos, de qualquer país, que chega às bancas depois do meio-dia. E, fato também raro na imprensa, não foge da autocrítica. O livro recém-lançado não ignora aspectos negativos do jornal, escritos por duas de suas melhores repórteres, e o filme não esconde as divergências dentro da redação.

Mas as comemorações não conseguem esconder que Le Monde ainda está tentando superar uma das graves crises de que é acometido periodicamente. No dia 14 de maio, Natalie Nougayrède, a primeira diretora em sua história, foi forçada a demitir-se depois de pouco mais de um ano no cargo. (Por extraordinária coincidência, Jill Abramson, a primeira mulher a dirigir a redação do The New York Times, o jornal mais influente dos Estados Unidos, foi demitida inesperadamente nesse mesmo dia).

Natalie fora nomeada diretora sob aclamação geral em março de 2013. Foi descrita nestas páginas como pessoa tímida, elegante e com caráter, além de ter fama de boa profissional. Destacou-se como correspondente na Rússia e como correspondente diplomática. Fora selecionada para ocupar a direção após causar forte impressão na entrevista realizada com os controladores do jornal. Ao passar pelo crivo indispensável da Sociedade de Redatores obteve 80% dos votos. As circunstâncias que forçaram sua saída, 14 meses mais tarde, refletem os problemas internos do jornal. Ela teve que demitir-se depois que 7 dos 11 editores puseram os cargos à disposição e dois diretores-adjuntos saíram sob pressão da redação.

Como escreveu o correspondente de El País, quando foi diretora, Natalie “conseguiu dar um novo voo jornalístico a Le Monde. O jornal é mais ágil e atraente, suas matérias mantêm o rigor, a boa escrita e o tom didático que o caracterizam, a página da web está mais bem desenhada e incorporou novas ferramentas para facilitar a leitura, e a informação internacional tem espaço muito destacado”.

No entanto, dois comitês de redação reclamaram da diretora. Disseram que era autoritária, exercia uma gestão disfuncional e havia uma ausência de confiança e de comunicação com a direção do jornal que os impedia de exercer suas funções. Reclamavam da falta de um piloto e de uma gestão humana. Contestavam, no fundo, a maneira de tomar decisões e o exercício do poder. Pediam que as decisões fossem compartilhadas e o estabelecimento de uma direção coletiva da redação.

Na verdade, as queixas de uma grande parte da cúpula da redação eram uma reação contra as iniciativas do jornal de adaptar-se ao mundo digital. Muitos dos jornalistas estavam preocupados com os investimentos na internet, que, em sua opinião, prejudicam o diário impresso, e não conseguiam reprimir a ansiedade de ficar obsoletos num mundo digital. Le Monde é um dos poucos grandes jornais em que as redações das versões impressa e digital não estão integradas. O papel, para seus jornalistas, é o que dá prestígio.

Novos estatutos

A crise foi detonada pela decisão de fazer alterações no aspecto gráfico do jornal e, principalmente, pelo “plano de mobilidade”, o projeto de transferir 57 dos 400 jornalistas do jornal impresso para a versão digital, o que foi considerado um rebaixamento. Isso provocou os manifestos indignados e as demissões na cúpula da redação.

A situação de Natalie já não era confortável. Ela reconhecera: “Meu inimigo pessoal é a comunicação” e teve dificuldades para lidar com uma redação politizada e combativa. Ante a revolta, decidiu adiar as mudanças para setembro, mas, isolada, desistiu. Disse não ter condições para dirigir o jornal com a paz e serenidade necessárias.

Para substituí-la, a empresa dividiu seu cargo. Tradicionalmente, o diretor de Le Monde ocupa duas funções. Uma é a direção ampla do jornal, com várias atribuições; outra é a direção específica da redação. Para esta última função foi nomeado Jérôme Fenoglio, antigo redator-chefe da versão digital; Gilles van Kote é o diretor interino do jornal.

A crise reflete a perplexidade da redação diante do futuro e o arraigado conservadorismo profissional de parte dos jornalistas. Mas a crise é também um sintoma da militância da redação, talvez a mais conflituosa das principais publicações da França e a única com o poder de aprovar ou vetar diretores, poder que tem exercido com grande facilidade: na média, ninguém chegou a ocupar o cargo por mais de dois anos nos últimos dez e, em todos os casos, menos um, o ocupante saiu de maneira involuntária. Nas últimas décadas, Le Monde esteve dividido em facções ideológicas, que travaram uma verdadeira guerra civil no seio da redação, fazendo alianças para ocupar a direção ou para derrubar o diretor.

Erik Izraelewicz, o antecessor de Natalie, foi acusado pela redação de “gestão brutal das equipes”, de seguir uma linha editorial morna, de “opacidade na tomada de decisões”, de cometer múltiplas infrações aos princípios éticos do jornal e de deslizes comerciais. Um jornalista disse que ele era um peixe vermelho num bando de piranhas. Izraelewicz morreu poucos dias após ser criticado, vítima de um enfarte fulminante dentro da redação, e a Sociedade de Redatores se derramou em elogios ao dizer que era “um dos mais dotados de sua geração”, que “a integridade era sua marca de fábrica”, “um servidor da informação e um mestre do jornalismo econômico e internacional.”

Por sua vez, Éric Fottorino, o antecessor de Izraelewicz, enfrentou as críticas dizendo que a Sociedade de Redatores se comportava de “maneira irresponsável” e seu presidente “não tinha medido bem sua responsabilidade ou sua irresponsabilidade”, e o acusou de “brincar de bombeiro incendiário”. Afirmou que era “impossível administrar um grupo dentro desse contexto”.

Le Monde foi criado por um ato de vontade do general Charles de Gaulle, então primeiro-ministro, que queria para a França um grande jornal, respeitado internacionalmente. Ele ordenou em 1944 ao ministro da Informação: “Refaça Le Temps! Escolha um diretor cujo passado de resistente [contra o alemães] e sua competência de jornalista não possam ser contestados”.

Le Temps tinha sido o jornal de referência da França até a guerra, de grande prestígio, apesar da baixa circulação; “a burguesia feita jornal”, segundo o político de esquerda Jean Jaurès; “o maior jornal da República” para o polemista de extrema-direita Charles Maurras. Le Temps exerceu considerável influência sobre a imprensa brasileira. Mas era oficioso. Sua informação internacional era pautada pelo Ministério das Relações Exteriores.

Não podia ser relançado depois da ocupação alemã. Tinha a fama de ser controlado por setores empresariais e esperou demasiado tempo para deixar de circular depois da invasão alemã. Politicamente, seu retorno era inviável. Le Monde ocupou seu lugar.

Para dirigi-lo foi nomeado Hubert Beuve-Méry. Antigo correspondente de “Le Temps” em Praga, ele pedira demissão por não concordar com a linha de apaziguamento do jornal em relação à Alemanha de Hitler.

Le Monde ocupou a antiga sede do Le Temps, usou as velhas rotativas de 1911, deu emprego a seus jornalistas e atraiu seus leitores. Como ele, era vespertino. O primeiro número circulou na tarde de 18 de dezembro de 1944, com data do dia seguinte, hábito que continua até hoje. Queria “assegurar ao leitor informações claras, verdadeiras e, dentro do possível, rápidas e completas”.

Beuve-Méry era um cristão austero que deu ao jornal uma orientação austera. Como De Gaulle queria, fez um grande jornal, em pouco tempo o mais influente da França e respeitado no exterior, mas, ao contrário de seu antecessor e do que De Gaulle esperava, não se tornou uma publicação oficiosa. Foi furiosamente independente. “Vocês não verão atrás de mim nem banco, nem igreja, nem partido político”, dizia. Sua orientação era clara: “Dizer a verdade, custe o que custar. Sobretudo se custar”. Partia do princípio de que “a objetividade não existe, mas a honestidade, sim”.

Realmente, o jornal não era objetivo, mas suas informações permitiam que o leitor formasse a própria opinião, o que lhe deu uma penetração em todas as gamas do espectro político. L’Humanité, o órgão do Partido Comunista Francês, o acusava de ser um instrumento da burguesia e da ideologia dominante. Os conservadores o consideravam um “aliado dos comunistas” e “a cabeça do filo-sovietismo burguês na França”.

Para manter a independência, Le Monde não assumia compromissos, não se endividava com os bancos nem aceitava subvenções. A redação, mal paga, participava dessa austeridade. Numa ocasião, ao nomear um correspondente, o diretor disse: “Você é muito mal pago”. Mas, em lugar de dar-lhe um aumento, acrescentou: “Espero que seus pais o ajudem”.

O jornal não admirava Moscou nem mostrava simpatia pelos comunistas, mas não era um anticomunista por princípio e teve um distanciamento crítico em relação aos Estados Unidos durante a Guerra Fria; em certas ocasiões adotou um antiamericanismo primário que nada tinha a ver com o debate de ideias. Em 1950, Étienne Gilson, respeitado filósofo católico, membro da Academia Francesa e professor do Collège de France, escreveu uma série de artigos no jornal criticando a Aliança Atlântica e defendendo uma neutralidade armada para a Europa, sem apoiar a União Soviética ou os EUA. Le Monde abriu também suas páginas para os defensores da aliança, mas o jornal e Gilson sofreram uma virulenta campanha pelo seu “neutralismo”.

Dois dos três principais acionistas do jornal – o terceiro era Beuve-Méry – deixaram a sociedade. Vários jornalistas e colaboradores saíram. Em 1951, pressionado, o diretor pediu demissão, provocando uma reação em cadeia. A redação não aceitava outra pessoa no comando e os leitores exigiam seu retorno. Num movimento apoiado por De Gaulle, Beuve-Méry reassumiu o cargo e, pelos novos estatutos da sociedade, a redação ficava com uma grande parte do capital e tinha o poder de escolher e demitir o diretor. A solução abria a porta para problemas futuros.

Papel + internet

Nos anos 1950, para enfraquecer ou acabar com Le Monde, foram lançados vários jornais financiados por grandes empresas, mas não tiveram vida longa nem chegaram a afetar a sua circulação, que na década seguinte chegou a 355 mil exemplares. A situação financeira da empresa era sólida a ponto de poder substituir as vetustas rotativas do começo do século – amarradas com barbante e fita adesiva, segundo o diretor – por equipamentos novos adquiridos sem financiamento externo.

Com a substituição, em 1969, de Beuve-Méry por Jacques Fauvet na direção, houve mudanças profundas. Sem a autoridade moral do fundador, a Sociedade de Redatores ganhou força e os chefes de seção se tornaram mais autônomos. Em lugar da austeridade anterior, os jornalistas passaram a ganhar os salários mais altos do mercado. A redação inchou, assim como as outras áreas da empresa, os gastos dispararam. Apesar do aumento da receita, o jornal se tornou deficitário.

Pior ainda. Na década de 1970, Le Monde deixou de lado a preocupação com a isenção e permitiu que alguns jornalistas vestissem suas reportagens com um roupão ideológico. Em política exterior adotou uma posição terceiro-mundista e de firme oposição aos Estados Unidos. Por ocasião da Revolução dos Cravos em Portugal, o correspondente do jornal justificou a censura imposta pelo Partido Comunista a um jornal socialista alegando que o país não estava preparado para uma liberdade não vigiada. Le Monde mostrou simpatia pela China de Mao Tsé-tung, apesar das vítimas de sua política do “salto para a frente” e da Revolução Cultural. No Camboja, aplaudiu o Khmer Vermelho. Quando os guerrilheiros ocuparam Phnom Penh, a capital, o correspondente escreveu: “A cidade foi libertada”. Le Monde não estava só nessa avaliação do regime. O escritor americano Noam Chomsky justificou a morte de 1,7 milhão de cambojanos pelo ditador Pol Pot como um “genocídio esclarecido”. Posteriormente, o jornal reconheceria seus enormes erros.

Em política interna, Le Monde também escolheu lados, criticando o presidente Valéry Giscard d’Estaing, elogiando seu rival Édouard Balladur e apoiando de maneira acrítica a candidatura e os primeiros anos da presidência de François Mitterrand – anos depois passaria a combatê-lo. Essa atitude custou ao jornal a perda de prestígio e de um grande número de leitores.

A direção do jornal era disputada pelas diversas facções de uma redação extremamente politizada e dividida ideologicamente. Um diretor eleito pelos jornalistas não chegou a tomar posse, depois de uma intensa campanha interna de seus opositores. Outro não conseguiu terminar o mandato ante a recusa da redação de fazer cortes para enfrentar um déficit em crescimento. Quando foi contratado um diretor fora do jornal, não conseguiu impor-se a uma redação dividida e teve que sair.

Uma nova etapa começou com a nomeação de Jean-Marie Colombani, que trabalhara para derrubar os diretores anteriores. Ele modernizou o jornal e impôs um “novo contrato de leitura”, com um estilo mais contundente; trocou a antiga preocupação de analisar e explicar pelo “furo de reportagem” e o “jornalismo de investigação”. A mudança permitiu a publicação de reportagens exclusivas e também de informações apressadas e erradas, que precisou retificar, e de notícias triviais: a princesa Diana e o programa de televisão equivalente ao “Big Brother” frequentaram a primeira página.

Para enfrentar os déficits crônicos, em lugar de cortar despesas, Colombani preferiu crescer e construir um grande grupo de comunicação. Aumentou o endividamento, passou a comprar jornais e revistas e fez alianças com grupos políticos. A aventura terminou quando ele perdeu a confiança da redação e teve que sair. Deixou a empresa muito pior do que quando a encontrou. Seus sucessores se desfizeram de grande parte das aquisições, mas não conseguiram colocá-la em pé financeiramente.

Como principal jornal da França, Le Monde foi duramente combatido tanto por adversários ideológicos como por antigos membros da redação. Um jornalista, que saiu por discordar da orientação, escreveu que servira com paixão durante 17 anos e, em troca, o jornal lhe deu “os mais belos anos” de sua vida e ninguém pode sair dele sem deixar lá uma parte do coração. Muito mais crítico, La Face Cachée du Monde, livro publicado em 2003, é parcial e contém erros factuais, mas algumas informações sobre o período de Colombani, nunca desmentidas, causaram estragos que ainda perduram.

Em 2010, a situação de Le Monde era insustentável. Tinha perdido € 44 milhões em 2008, € 25 milhões em 2009 e a projeção para o ano era de um prejuízo de € 15 milhões. A dívida chegava a € 100 milhões. Faltava dinheiro para pagar os salários. Disputada por vários grupos, a empresa foi vendida a três empresários: Pierre Bergé, sócio da casa Yves Saint Laurent; Xavier Niel, que controla uma empresa de telecomunicações; Matthieu Pigasse, diretor do banco Lazard Frères e dono da revista de música Les Inrockuptibles. Conhecidos como “BNP”, sigla do Banque Nationale de Paris, eles detêm dois terços do capital de Le Monde e se comprometeram a investir nele € 110 milhões. A redação teve que entregar as ações que detinha, mas manteve o direito de veto na escolha do diretor. As finanças melhoraram e em 2011 e 2012 obteve resultados operacionais positivos, mas um dos novos donos teve uma explosão de irritação quando em 2013 o jornal perdeu quase € 2 milhões, para uma receita de € 367 milhões, que ele considerou inadmissível. Em 2015 espera voltar a ser rentável.

A oposição interna às mudanças não parou. Em setembro, a empresa apresentou um projeto de reorganização do pessoal, que foi congelado quando funcionários da área administrativa, em protesto, cortaram a energia da gráfica e o jornal não circulou. Mas as reformas continuaram. Foram transferidos 29 jornalistas da versão impressa para a digital e em outubro Le Monde apresentou sua nova feição gráfica, “mais clara e arejada”, isto é, com menos texto, mas artigos mais longos e, principalmente, foi dada maior ênfase à internet. Os jornalistas escrevem indistintamente para os dois meios. O jornal impresso reflete o conteúdo da versão digital, numa ação integrada considerada necessária ante a queda contínua da circulação. Em meados deste ano vendia 302 mil exemplares, ante 353 mil em 2006. A reforma deixou clara a predominância da internet sobre o papel, apesar de este ainda representar 85% das receitas.

Nesse período, Le Monde continuou sendo o melhor diário da França. É bem escrito, bem informado, com jornalistas que, apesar de tudo, conhecem sua profissão e têm orgulho de exercê-la num jornal de referência. Até La Face Cachée reconheceu que a áurea de Le Monde continuava inigualada. Há, porém, o perigo de interferência de alguns dos sócios na redação.

Hoje, apesar dos problemas, Le Monde está em melhores condições de enfrentar o futuro do que em qualquer outro momento das últimas décadas – o que não garante os resultados. É o jornal francês que mais investiu e avançou na adaptação ao mundo digital, que proporciona 15% de suas receitas. Seus proprietários acreditam que o jornal pode ser rentável seguindo uma estratégia que combine o papel com a internet e eles têm recursos para investir no jornal e fora dele. Lançaram a edição francesa do “Huffington Post”, compraram neste ano o prestigioso semanário de esquerda Le Nouvel Observateur, pretendem adquirir o TF1, um canal de notícias na televisão, e há rumores de que estão interessados no jornal Libération. Mas o futuro de Le Monde dependerá da qualidade do seu conteúdo, seja impresso em papel ou divulgado na internet.

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Matías M. Molina é autor de História dos Jornais Brasileiros, obra a ser lançada proximamente pela Companhia das Letras