Não consiste novidade o fato de que os Estados Unidos se valeram muito bem de uma estratégia de propaganda política, bancada pela mídia em geral (ou seja, muito além dos jornais impressos apenas), para se consolidarem como heróis mundiais do século 20. O personagem Capitão América, da Marvel, por exemplo, surgiu em 1940 e ganhou notoriedade ao definir, por meio das HQs, os EUA como um importante combatente do regime nazista (a capa da primeira edição trouxe o Capitão América aplicando um soco no Führer). Também não é segredo para ninguém o efeito que Hollywood criou e cria no imaginário não apenas da população americana no que diz respeito aos heróis da história. Chomsky demonstrou que isso serve, entre outras coisas, para que medidas da política externa americana ganhem apoio da população nos Estados Unidos e fora do país.
Essa articulação midiática funcionou muito bem até agora e tende a continuar funcionando, pois sabemos que muitos países, inclusive o nosso, investem rios de dinheiro nisso e não é de hoje (a propaganda nazista também promoveu verdadeiros espetáculos midiáticos). Porém, que fique claro: não estamos aqui colocando em questão a veracidade da contribuição norte-americana para os fatos históricos de que tanto se vangloriam, pois de fato os EUA são parte atuante nesses processos a que chamamos de democratização, mesmo que por vezes desrespeitando soberanias alheias. O ponto é outro. Trata-se, sim, de tentar entender como alguns discursos produzem sentido nas entrelinhas da nossa estimada imprensa nacional, dado que essa manobra de propaganda política capitalista conta com a colaboração de jornais do mundo inteiro.
Tomemos os editoriais de 19 de dezembro dos três jornais de maior circulação no Brasil: Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo (um dia após o anúncio de retomada das relações diplomáticas entre Cuba e EUA). Num tom um pouco mais equilibrado, a Folha optou por enfatizar, mesmo que superficialmente, momentos históricos desses 53 anos de desacordo entre os dois países antes de concluir, claro, que dirigentes cubanos não terão mais a possibilidade de justificar maus tratos humanos por meio de discursos antiamericanistas.
Já o Estadão e O Globo usaram da mesma estratégia linguística para enaltecer a boa vontade americana em detrimento de uma quase incerteza demonstrada por parte da “gerontocracia” cubana (a palavra é do próprio Estadão e remete a governos confiados a pessoas idosas). Ambos os periódicos usaram de um recurso curioso de linguagem para dizer que os criminosos de lá sempre são mais malvadões que os criminosos de cá. Leu-se no Globo: “Eles [EUA e Cuba] confirmaram, nessa conversa, a libertação por Cuba do empreiteiro americano Alan Gross, condenado na ilha a 15 anos de prisão, supostamente por espionagem, tendo cumprido cinco anos da pena, e com a saúde se deteriorando. Havana libertou também um espião americano preso há 20 anos. Em troca, Washington soltou três espiões cubanos, de um grupo original de cinco.”
Personalidades e representações
Por que o sujeito americano preso em território cubano é um suposto espião e os sujeitos cubanos presos em território americano são apenas espiões? E mais: por que há menção ao estado de saúde do preso americano, insinuando maus tratos, e nenhum destaque ao estado de saúde dos que estão presos nos Estados Unidos?
O Estadão se expressou de forma muito semelhante em seu editorial. Sobre o lado americano: “Além de libertar três cubanos que haviam sido presos por espionagem […]”; sobre Cuba: “Aceitou entregar dois prisioneiros americanos, também acusados de espionagem”. Pergunto de novo, por que os cubanos foram presos por espionagem e os americanos foram presos acusados de espionagem?
Trata-se de uma estratégia que não pode ser ignorada. Afinal, linguagem é poder. As palavras “suposto” e “acusados” suavizam o grau de criminalidade confirmada dos cidadãos americanos retidos em Cuba. E é assim, entre outras maneiras, que editoriais e editorias no Brasil e no mundo perpetuam essa versão dos EUA como heróis do planeta e da democracia.
Nota-se ainda que na conclusão do editorial do Globo não se desperdiçou a chance de mencionar, sempre de maneira generalizada (outra tentativa de criação de discurso), a vertente bolivariana que ligaria a atual presidência do Brasil a esses casos que devem ser combatidos pelo Capitão América.
Ler as entrelinhas desses editoriais com um pouco mais de rigor e cuidado não significa desmerecer o acordo entre os dois países, claro que não, pois esse fato consiste em mais um importante passo dado na busca de uma melhor convivência entre Estados e pessoas, e isso deve ser cada vez mais legitimado. Mas atentarmos aos discursos excessivamente apologéticos é imprescindível para entendermos que uma democracia de fato se constrói com várias personalidades e representações, e não apenas com um herói.
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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social