Já mencionei em sala de aula que uma das primeiras ingenuidades da qual devemos nos livrar ao lidarmos com jornais e noticiários é a ideia de que os lemos para sabermos o que acontece no mundo. Por uma razão bastante óbvia: é humana, física e logicamente impossível veicular, mesmo em tempos de tecnologia digital e comunicação em rede, os fatos todos do mundo. Portanto, informar, estabelecer pautas e trabalhar com notícias é, por princípio, fazer escolhas. Alguém sempre está escolhendo por nós o que é notícia e, o que passa a ser mais drástico, o que é informação. Mais drástico porque a vida em sociedade se organiza em torno às informações. Precisamos delas para saber de que maneira procederemos e até mesmo conduziremos nossas vidas. Logo, tomar ciência das informações é saber o que fazer com os passos seguintes; num extremo, é até mesmo saber o que somos e quem seremos.
Partindo dessa dinâmica, e sem a ingenuidade de acharmos que porque há pessoas e empresas trabalhando com informações sabemos o que ocorre no mundo, temos absoluta certeza de que o máximo que absorvemos quando nos julgamos informados é aquilo que alguém decidiu que é informação. Isso não é trágico. Sobretudo para uma população que exercite o senso crítico. Certo, aqui talvez se intensifique o problema, embora o ponto do artigo não seja esse.
Mesmo cientes de que não absorveremos os acontecimentos do mundo, pois sabemos que estes precisam ser transformados em pautas e matérias, podíamos esperar um pouco mais da capacidade de variação de temas promovidos pelas empresas de comunicação do país. Não, o que está em xeque não é a capacidade de fazer variar os temas, mas sim, a vontade de deixar variar. A variação está determinada, com outras palavras, no código de ética do jornalista brasileiro: zelar pela democracia. Sabemos que não se zela por uma democracia insistindo sem variação nos mesmos temas.
Também não se pretende sugerir aqui que não se faça uma cobertura dos escândalos de propina na Petrobras. Precisamos, de fato, acompanhar as informações concernentes ao império de enriquecimento ilícito de partidos políticos e consequente financiamento de campanhas que envolvem a base do governo federal e também os partidos que fazem a base da oposição. Porém, saber de fato o que ocorre, instruir-se sobre esses problemas que devem ser denunciados, apurados e devidamente punidos, equivale a entender também que uma investigação como essa serve para salvar a saúde financeira e, sobretudo, a credibilidade da estatal; serve para entendermos quais são as partes cancerígenas da empresa para que, extirpado o tumor, a mesma volte a operar como deve.
Feitos “bons” e “ruins”
Mas o que temos visto, desde o início das delações premiadas, é um espetáculo midiático que nos faz crer que além da corrupção na estatal não existem mais pautas pertinentes que possam nos ajudar a compreender quem somos e o que podemos fazer na elaboração dessa sociedade pela qual somos também responsáveis.
Além do petrolão (opa, temos aqui já uma estratégia da espetacularização midiática: o slogan), a sociedade precisa saber, entre outras coisas, sobre os jovens negros assassinados no país e as campanhas que tentam, sobretudo via internet, nos fazer reagir nesse cenário. Precisa saber da queda da PEC 215, que foi uma vitória da cultura indígena. Precisa saber das manifestações que reúnem milhares de pessoas nas ruas de São Paulo e em outras regiões pedindo o fim da Polícia Militar. Aliás, a mídia poderia começar a esclarecer um pouco mais acerca desse assunto para que a população não pense que desmilitarizar a PM seja colocar os agentes policiais para trabalharem feito a guarda da rainha da Inglaterra; poderia explicar um pouco da origem desse conceito de militarismo que se pratica no Brasil por meio do aparelho do Estado. Enfim, poderia explicar também que tipo de relações podemos estabelecer entre o assunto predileto deles (petrolão, corrupção) com as mortes dos meninos negros, com a PEC 215, com a não reconceituação da PM, enfim, nos ajudar a entender que as coisas estão todas implicadas e que, portanto, precisam todas ser transformadas em debate. Compreender o mal da corrupção passa por esse entendimento um pouco mais amplo de que as consequências dela afetam muito mais do que nosso bolso.
Se o que ainda se tenta legitimar com as reflexões acerca da prática do jornalismo é a democracia, parece-nos um tanto estranho que uma pauta (sem os seus efetivos desdobramentos) domine os holofotes dos diferentes jornais num país que se pretende democrático. Se fosse para transformar essa pauta da corrupção num debate que nos permitisse entender quais as relações que isso implica (morte de crianças, falta de remédio em postos de saúde, falta de escola, de segurança pública, cultura, lazer etc.), poderíamos, quem sabe, espetacularizar o tema às últimas consequências. Mas quando a pauta, previsivelmente, tende a fazer ver apenas a superfície do problema e as possíveis siglas mais ou menos corruptas (como se fosse possível medir isso em níveis), acredito que a imprensa em geral passa a fazer um desfavor à população, que demonstrou em outubro deste ano, pelas redes sociais, querer fazer parte do debate democrático.
Outro ponto bastante importante: além da corrupção, do combate às mortes dos jovens negros, da situação dos nativos em território nacional, da PM e os procedimentos violentos, não nos esqueçamos que uma sociedade não se equilibra apenas em acontecimentos ruins. Ou seja, um noticiário que insiste apenas nas pautas negativas não reflete a sociedade, pois qualquer comunidade humana sobrevive em coletividade apenas se constar de feitos “bons” e “ruins”. Como todo ser humano, a sociedade é ela também uma fonte de contradições. E, em meio a isso, somos feitos, individual e coletivamente, de acontecimentos “bons” e “ruins”.
Por fim, e não menos urgente, gostaria de ver aparecer nos jornais e no debate público que eles ainda podem suscitar um pouco mais de poesia, sensibilidade, sorrisos e belezas que inquestionavelmente fazem parte da nossa vida coletiva.
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Cristiano de Sales é professor de Comunicação Social