Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O homem e o jornalismo de uma época gloriosa

Em fins de outubro passado morreu nos Estados Unidos um jornalista de outra época. Foi uma das melhores definições sobre Benjamin Bradlee, diretor do Washington Post de 1965 a 1991, que morreu aos 93 anos, de Mal de Alzheimer e demência senil. Ben Bradlee era, também, um homem de outra época.

Entre as muitas reportagens publicadas sobre ele na semana de sua morte, chama atenção dos seus repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, famosos pela descoberta e cobertura do caso Watergate, no começo da década de 1970 e que provocou a renúncia do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Acusação inicial: cabos eleitorais ligados ao Partido Republicano, de Nixon, teriam instalado escutas clandestinas na sede do Partido Democrata, de oposição.

Era um caso de polícia, restrito ao âmbito municipal, a ser coberto, naquele distante fim de semana, pelo plantonista de assuntos da cidade. Como envolvia a capital do império e a sede do partido oposicionista, o repórter recebeu apoio de um colega da editoria de política. A partir daí o caso de polícia virou um polvo, com raízes amplamente fincadas no coração do governo da maior democracia do mundo. Espionagem, chantagens, fitas gravadas, dinheiro não explicado, condutas ao arrepio das leis, um vasto elenco de malfeitos que terminou produzindo a renúncia de um dos homens mais poderosos do mundo: Nixon.

Os repórteres Woodward e Bernstein lembram:

“Há 40 anos, Ben Bradlee nos expôs sua teoria geral do jornalismo e da vida: ‘nariz para baixo, traseiro para cima e passo firme rumo ao futuro’. Entendia o passado e sua importância, mas estava completamente livre dele. Passado, era história sobre a qual era preciso aprender. A analogia militar, nesse caso, é válida: um grande general, tranquilo na batalha, com o amor e o afeto de seus soldados, os quais protegia com a mesma fúria com que os enviava para a missão. Ele mesmo tinha construído um personagem original, diferente de qualquer outra pessoa de sua redação: diferente por seu temperamento, por sua atitude e até por seu aspecto físico e sua linguagem. Bradlee transformou não só o The Washington Post, mas também a natureza e as prioridades do jornalismo”.

Perenidade do papel

Essa postura diante da vida e da profissão, esses conhecimentos foram fundamentais para os quase dois anos de investigação sobre Watergate. Houve muitos momentos de dúvida, além de alta tensão e até pressões para que o jornal e sua proprietária parassem de investigar o caso e, principalmente, desviassem o curso das conclusões envolvendo o presidente. Para sorte dos repórteres e da história, Kate Graham [acionista majoritária do Washington Post] e Ben Bradlee não gostavam nem um pouco, nada mesmo, de Richard Nixon, um cidadão, segundo eles, muito pouco refinado para o exercício do mais alto cargo da América do Norte. Foi um daqueles momentos cada vez mais raros de encontro entre as vontades da redação, do público e dos chefes e donos. Aí, quando isso acontece, não dá outra: o alvo maior dança, público e país ganham. O moderno jornalismo recebeu a chancela de que precisava e venceu. E o mal, naquele momento pelo menos, perdeu.

Na redação, Bradlee assumia um papel de chefe motivador. Mas seu trabalho consistia de algo mais, acrescentou com ironia. Irônico, inquieto, insaciável e exigente, entre outros traços, marcaram a personalidade do jornalista, sempre com ar de insatisfeito. “Gosto de pressão e de jornalistas que pressionam”, dizia. Um estudioso de personalidades, disse dele, certa vez: “Há ocasiões em que bebe álcool demais, mas isso não é suficiente para satisfazê-lo”. Era mito e marca, mas também de carne e osso, com todos os defeitos de uma época. De outra época. Foi amigo próximo de John F. Kennedy, desde antes da Segunda Guerra Mundial, quando lutou na Marinha dos EUA, no mesmo período do presidente assassinado.

Vinha de família muito tradicional e rica. Os anos de Marinha e de guerra deram-lhe o toque de verniz rude que ajudou a composição final do estilo e personagem, inclusive com linguagem e expressões idiomáticas pouco usuais entre os da sua classe. “Minhas bolas estão em jogo!”, disse, no auge da crise de Watergate, quando a pressão chegou ao ponto de tentar impedir a publicação de certas reportagens. Em outra ocasião mandou para muito longe, com palavrões cabeludos, representantes da Procuradoria Federal que tentavam intimidar os jornalistas na redação. Publicou outros escândalos e muita matéria boa. Também, em pelo menos um caso, nos tempos da Guerra Fria, recusou a publicação de um documento confidencial que, na opinião dele, entregava o ouro do mocinho americano aos bandidos soviéticos. O momento de tensão e disputa internacional justificaria a decisão. O patriotismo então vigente abrangeria inclusive as redações.

Foi igualmente um bom administrador. Sob a direção dele, o jornal dobrou o tamanho da Redação, elevou o orçamento de US$ 3 milhões para US$ 60 milhões, além de passar a tiragem de 446 mil exemplares para 800 mil. O jornal ganhou mais de 20 prêmios Pulitzer, o mais importante da imprensa dos EUA. Bradlee não acreditava no fim do jornal em papel.

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O impacto que nunca se acaba

Depois de Watergate o jornalismo perdeu o medo. Principalmente o jornalismo moderno, de matriz norte-americana, que veio para o Brasil com os correspondentes que cobriram a Segunda Guerra Mundial sob as asas do exército dos EUA e voltaram influenciados pelas técnicas dos jornais americanos. O nariz de cera perdeu e saiu. Entrou o lead. Para ficar.

Mas algumas regras não escritas permaneciam. A defesa cega de instituições, aqui incluída a Presidência da República. Segurança nacional, defesa do Ocidente e outras ilusões se fortaleceram no biombo da Guerra Fria.

Watergate tirou a roupa do presidente infalível. Nixon ficou nu! E perdeu o emprego. A morte recente de Ben Bradlee, diretor do The Washington Post, que segurou o leme da reportagem recupera o debate sobre os limites da autoridade, a notícia e sua publicação.

Latas de lixo jamais foram iguais. Viraram fontes e deram furos. No Brasil, uma lista de compras ministerial produziu um neologismo: mordomia. Assim batizamos a bem provida feira do ministro do Trabalho do general Geisel. Crédito para O Estado de S.Paulo em meados da década de 70. Na mesma época, a Gazeta Mercantil provou com documentos: o ministro Delfim Neto mentiu sobre a inflação de 1973, que dos 12% decretados saltou para mais de 25%. Pouco tempo depois O Globo antecipava a anistia, o fim do AI-5 e uma nova esperança eleitoral. Em 1992, o movimento final, com destacado protagonismo de Veja: o farto noticiário sobre corrupção presidencial até o impeachment de Fernando Collor. Sem ditadura e sem Guerra Fria, em menos de duas décadas, o Brasil mostrou cara e coragem.

Entre Nixon e Collor tinha um muro que se desfez. Junto com Berlim, acabou um império. O russo Gorbatchov deu adeus a Lenin e sepultou de vez o fantasma que iria assolar o mundo. A Perestroika trouxe a Glasnost, misto de transparência e liberdade. Tudo foi notícia. Até a queda do próprio império.

De lá para cá só ganhamos. Talvez mais em técnica do que em conteúdo. Mas nada que mude o distante lead: a sede do Partido Democrata, em Washington, foi invadida e nela instaladas escutas ilegais.

Brasileiros lembram encontros

Três jornalistas brasilienses travaram contato com o diretor do The Washington Post: Luiz Gutemberg, André Gustavo Stumpf e Francisco Baker, que em tempos distintos dirigiram a redação do Jornal de Brasília, cujo papel, em alguns momentos de boa musculatura empresarial, chegou a ser comparado, em importância, ao primo americano rico e famoso.

O primeiro contou em seu Gutemblog que conheceu Bradlee ainda no auge. Trouxe-o a Brasília em 1974 e ofereceu-lhe um jantar no Au Bon Gourmet, o que havia de melhor na cidade. A abertura política do general Geisel dava seus primeiros sinais, e alguns ministros do novo governo compareceram. A simplicidade do poderoso jornalista surpreendeu o anfitrião.

>> Francisco Baker: “Quando cheguei a Washington, em 1994 (para a imprensa do FMI), ele já havia deixado o comando do jornal. O melhor que posso dizer é que era o sujeito certo, no lugar certo e na hora certa, quando do episódio de Watergate. Tinha o ‘substrato necessário’(as bolas, que ele mesmo citava) para enfrentar o caso. Estudou nos melhores lugares e era amigo de muita gente importante, o que certamente influiu na cobertura e no desfecho do caso, com a renúncia de Nixon, por quem não nutria nenhuma simpatia. O lento e posterior declínio do jornal foi, aliás, de toda a imprensa no mundo.”

>> André Gustavo Stumpf: “Minha timidez não me permitiu pedir um autógrafo. Quando estive na redação do WP, em 1995, depois de assistir a uma reunião de pauta, almocei no restaurante do jornal. Ele estava na mesa ao lado, tranquilo e jovial. Hesitei, mas não me apresentei. Era uma lenda. Criou um modelo de jornalismo investigativo que foi copiado no mundo inteiro. Watergate foi um momento especial na política norte-americana. Um presidente renunciou e um jornal (WP) fez história. E quem segurou as pressões foi Bradlee. Ele reinventou o jornalismo.” (L.R.)

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Luiz Recena é jornalista