Repercute intensamente nas redes sociais a entrevista concedida pela senadora Marta Suplicy (PT-SP) a Eliane Cantanhêde, no Estado de S.Paulo. Disponibilizada aos internautas já na tarde de sábado (10/1), a matéria flagra a ex-ministra em um momento de profundo desencanto e animosidade tanto em relação à administração da presidente Dilma Rousseff quanto ao próprio partido, alvo de uma frase-ultimato: “Ou o PT muda, ou acaba”.
Para além da expressão dos sentimentos e impressões de Marta, a entrevista descreve um verdadeiro “racha” no interior do Partido dos Trabalhadores – e, em decorrência, do governo – entre um grupo próximo a Dilma, capitaneado por Aloizio Mercadante, e outro orbitando em torno do ex-presidente Lula, a favor de quem a própria Marta teria tentado articular a candidatura à Presidência em 2014, segundo ela boicotada pelo grupo palaciano.
Não que a maior parte dos desdobramentos relatados na entrevista fosse desconhecida do jornalismo político mais atilado. O que as falas da ex-prefeita de São Paulo fazem é, por um lado, explicitar de forma direta, sem meias tintas ou dubiedades, o grau de estranhamento entre as duas facções petistas, o que facilita a compreensão da lógica seguida por Dilma na nomeação de seu ministério, ao afastar lulistas (como Gilberto Carvalho) e criar um núcleo duro em torno de Mercadante.
Denúncia e ataques
Por outro lado, Marta fornece uma cronologia para o estranhamento entre Dilma e Lula que pode vir a insuflar uma denúncia potencialmente danosa à credibilidade do ex-presidente – já que, a se fiar na temporalidade estabelecida pelas palavras da ex-prefeita, ele teria subido aos palanques para apoiar uma candidata em quem não mais confiava, cujo primeiro mandato o decepcionara e a quem considerava despreparada para livrar o país da crise que ela própria não fora capaz de evitar.
Essa versão contrária ao ex-presidente Lula foi obtida graças à habilidade da entrevistadora, já que o alvo intencional das falas de Marta durante a entrevista é Aloizio Mercadante, contra quem não economiza acusações: “Mercadante mente quando diz que Lula será o candidato. Ele é candidatíssimo e está operando nessa direção desde a campanha, quando houve um complô dele com Rui [Falcão] e João Santana (marqueteiro de Dilma) para barrar Lula”. Mas “vai ter contra si a arrogância e o autoritarismo”, completa.
Com tal conteúdo, a entrevista provocou a ira do petismo, destacadamente de militantes virtuais e dos chamados “blogueiros progressistas”. Como aconteceu com Marina Silva durante a campanha e tem ocorrido com muitas das figuras públicas que ousam denunciar ou contrariar o partido, Marta vem sendo submetida nas últimas horas a uma verdadeira operação desqualificadora. Há desde acusações de traição, de arrivismo, de agir como uma “rancorosa”, até agressões motivadas por preconceitos dos mais diversos, notadamente o machismo do qual blogueiros ligados ao partido, como Paulo Henrique Amorim, não se furtam de lançar mão, sob o silêncio cúmplice das feministas petistas.
Volta por cima
Pode-se ou não confiar no teor das declarações de Marta. Não só ela pode ou não estar equivocada, parcial ou inteiramente, como tudo pode tratar-se de uma estratégia do próprio petismo para criar uma alternativa dita “à esquerda” do governo Dilma, com vistas a 2018. O que incomoda – e atenta contra a evolução do debate democrático – é a desqualificação pessoal e a priori de sua pessoa, com pouca ou nenhuma argumentação racional quanto ao teor de suas falas.
Para além de tais querelas, a relevância política da entrevista reflete-se tanto em marketing positivo para o Estadão, que estreia uma nova contratada, quanto para a carreira de Eliane Cantanhêde, que volta em grande estilo após ter sido demitida da Folha de S.Paulo, em novembro.
Uma das jornalistas mais informadas do país, entranhada nos bastidores da política brasileira, Cantanhêde vem sendo também uma das mais contestadas. Como colunista, consolidou-se com um texto ferino, melífluo, salpicado de uma coqueteria tão ardilosa quanto postiça, o qual teria como alvo preferencial o petismo, sendo mais raras as admoestações contra os demais partidos e suas administrações – notadamente no que concerne ao PSDB.
Naturalmente, tais características a tornaram um dos inimigos preferenciais dos petistas, que a acusam de elitismo e partidarismo, aventando alegadas ligações de familiares com o marketing tucano e, como virou praxe, apelando para tipificações machistas e classistas contra ela. De qualquer modo, estreando com essa entrevista-bomba, de intensa repercussão, Cantanhêde e o Estadão se cacifam para a cobertura política, um tanto combalida no país.
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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog