O atentado terrorista na sede do jornal francês “Charlie Hebdo”, que matou 12 pessoas no coração de Paris na última quarta-feira [7/1], reverberou nas redações de veículos satíricos em todo o mundo. Quatro dias depois do ato de violência, jornalistas de algumas das mais ácidas publicações de humor disseram ao Globo que seguirão em frente, ainda mais combativos e ousados nos temas que abordam. Entre eles, o assunto mais polêmico também é a religião, mas a católica. Alguns contaram já terem sofrido ameaças virtuais, outros foram agredidos fisicamente. Em comum, diretores de redações que lidam com a sátira acreditam que o humor não tem terreno proibido e não deve classificar nenhum assunto como tabu.
Diretora da revista “Barcelona”, considerada a “Charlie Hebdo” argentina, Ingrid Beck refuta qualquer possibilidade de recuo do humor. Defensora de um estilo crítico de fazer rir, fundamentalmente político, causou enorme polêmica quando, em outubro de 2014, colocou na capa da revista uma imagem do Papa Francisco usando batom e brincos, uma brincadeira com o documento lançado pelo Vaticano defendendo a mudança de postura da Igreja com relação aos homossexuais.
– Sofremos ameaças virtuais principalmente dos conservadores, dos fascistas. A Igreja em si não se pronunciou, o que me parece muito bom. Acho que foi uma das grandes polêmicas, mas é essa a ideia. Quando nos metemos em temas como religião, na verdade não estamos falando dela em si, mas da instituição católica. A crítica é sempre política. Se a Igreja quer interferir na política, então nos metemos com ela, que é o fundamentalismo que temos aqui. Mas nunca demos um passo para trás. Muito pelo contrário, a gente fica mais provocador ainda – afirmou.
‘Único limite é código penal’
No dia do ataque à redação francesa, o jornalista chileno Patricio Fernández voltou no tempo. Lembrou-se dos primeiros anos do semanário “The Clinic”, que surgiu em 1998, quando convivia com ameaças de bomba no prédio do jornal e era comum os profissionais deixarem o local às pressas. O diretor de redação, que já satirizou Maomé e causou polêmica com capas sobre o ditador Augusto Pinochet, contou já ter levado um soco de um político de extrema-direita e assistido, incrédulo, a manifestantes que defecavam na porta da redação.
– Voltei a lembrar que a intolerância existe, e que a violência brutal não desaparece, só adormece. Esse jogo é complexo, porque a sátira nasce justamente para colocar em jogo a liberdade, o atrevimento. O que acontece com o humor e a sátira depois do atentado é que vem a pergunta de se vale a pena, se tem sentido questionar algumas coisas. E só essa pergunta já é muito perigosa.
Ian Hislop, editor da “Private Eye”, a prima inglesa menos contundente do “Charlie Hebdo”, publicou ontem uma declaração com destaque na página da revista satírica na internet em que se diz chocado com um ataque assassino contra a liberdade de expressão na Europa: “Eles pagaram um preço muito alto para exercer a sua liberdade cômica. Muito pouca coisa me parece engraçada hoje”, afirma.
Fundador da revista espanhola “Mongolia”, o jornalista Fernando Rapa acredita que o humor deve esbarrar em apenas um limite: o Código Penal.
– Se uma pessoa se sente ofendida, que denuncie. Agora, com o reconhecimento das novas minorias, o humor cada vez tem mais espaço para falar. Mas você não pode falar de nada, porque está, em teoria, destruindo as minorias. A única coisa que o humor faz é dessacralizar o poder. Por que não pode falar mal da religião, se ela é uma invenção?
‘Ideias valem mais que balas’
A “Mongolia”, que homenageou o “Charlie Hebdo” na edição desta semana, tem um histórico de polêmicas virtuais. Em uma das edições impressas, estampou uma imagem do rei Juan Carlos I, que renunciou ao trono no ano passado, coberta com marcas de tomates.
– Os jihadistas do catolicismo nos amedrontam muito, via Twitter, e-mail. Mas fazemos isso há anos e não vamos mudar. Se diminuirmos nossa força, as balas de Kalashnikov terão mais valor do que nossas ideias – disse.
O jornalista lamentou o ocorrido na França, país que, segundo ele, tem uma relação contraditória entre a cultura do humor e o extremismo religioso que se volta contra ele.
– Um país com plenas liberdades, saudável, é um país com muitos veículos satíricos. A França é um exemplo, um país com a máxima liberdade de expressão, por um lado, porque tem veículos satíricos regionais, como não se vê por aí. Mas um país onde se enfrentam a máxima liberdade de expressão e o máximo nível de burrice, que é a religião.
Quase dez anos depois de desencadear uma crise sem precedentes na pequena Dinamarca com a publicação de 12 caricaturas de Maomé, o editor do jornal “Jyllands-Posten”, Flemmming Rose, se posicionou em um vídeo na página do periódico. “Dá um frio na espinha. Pensar nas pessoas em Paris, no que estão vivendo agora. Apesar do choque, não estou surpreso. Se olharmos para o que aconteceu na Europa nos últimos dez anos, desde que as caricaturas de Maomé foram publicadas no jornal, ameaças e até violências aconteceram uma atrás da outra. Aqui no “Jyllands-Posten”, vivemos com medo”, afirmou.
À época em que foram publicadas, as caricaturas desencadearam atos de violência por todo o país. O cartunista Kurt Westergaard, autor de uma famosa caricatura de Maomé com um turbante-bomba, vive sob proteção policial há anos. Ele sobreviveu, em 2010, a uma tentativa de atentado em sua casa. Agora, reabilitou com pequenas mudanças o antigo desenho e colocou-o à venda em apoio ao “Charlie Hebdo”.
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Leticia Fernandes e Vivian Oswald, do Globo