Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa à margem da lei

Um velho ditado da imprensa britânica diz que “cachorro não morde cachorro”. Isto é, um jornal não ataca outro jornal, numa espécie de acordo informal de cavalheiros. Não impede que troquem alfinetadas ou apliquem eventualmente um golpe baixo no concorrente. Mas há limites. Os dirigentes da imprensa se protegem entre si. Suas bebedeiras, infidelidades conjugais, uso de drogas, atividades obscuras e outros desvios estão a salvo da curiosidade popular.

Quando esse pacto não escrito é ignorado e os jornais mostram como realmente operam os jornais, as consequências podem ser catastróficas. A teimosia do repórter Nick Davies em investigar as atividades ilegais da imprensa no Reino Unido e a promiscuidade de jornalistas com a polícia, regada a dinheiro, drogas e prostituição, chegaram a abalar o império de mídia de Rupert Murdoch. Mais de cem jornalistas foram indiciados ou interrogados, o maior jornal dominical do país em circulação foi fechado, policiais foram presos ou expulsos por corrupção. Boa parte da cúpula da Scotland Yard e da Polícia Metropolitana foi afastada e três primeiros­ministros ficaram com a imagem arranhada.

Como isso aconteceu é o tema do livro “Hack Attack”. Tal foi sua repercussão que o ator George Clooney vai dirigir para a Columbia Pictures um filme baseado nele. Segundo Clooney, a obra tem “todos os elementos ­ mentiras, corrupção, chantagem”, e “o fato de ser verdade é a melhor parte”.

Nick Davies trabalha para o diário liberal “The Guardian”. Em 2008, ele publicou o livro “Flat Earth News”. Nas duas obras, partiu do princípio de que o jornalismo não deveria ficar livre do escrutínio a que ele mesmo submete o resto da sociedade.

Num dos capítulos, Davies mostra como a polícia encontrou, com detetives particulares, milhares de documentos com registros de escutas clandestinas dos telefones, cópias de extratos bancários e de contas de cartões de crédito e informações pessoais de artistas, políticos, personalidades públicas. Encontrou o nome dos 305 jornalistas e de jornais e revistas que tinham encomendado as informações. Os detetives foram julgados e, por questiúnculas jurídicas, ficaram livres. Nenhum dos jornalistas que pagaram pela atividade ilegal chegou sequer a ser interrogado.

Assunto velho

Menos sorte tiveram um detetive particular e um repórter do “News of the World”, conhecido como “NoW”, um tabloide de domingo de Murdoch, com 3,5 milhões de exemplares de circulação. Foram acusados e condenados por interceptar os telefones celulares de cinco pessoas, entre as quais a modelo Elle Macpherson, um deputado e membros da família real. Detetive e repórter foram presos e o editor-chefe, Andy Coulson, pediu demissão.

Davies conta como, em entrevista na BBC para falar sobre o recém­lançado “Flat Earth News”, foi colocado, sem prévio aviso, para debater com um dos editores do “NoW”, Stuart Kuttner, com fama de rude, “uma figura das sombras”. Depois de criticar o tom geral do livro, Kuttner disse, a respeito das escutas clandestinas: “Aconteceu uma vez no ‘News of the World’. O repórter foi demitido e o editor saiu”. Acrescentou que o jornalismo britânico era uma “profissão muito respeitável”.

Um ouvinte, irritado com essas declarações, entrou em contato com Davies. Identificado como “Apolo”, disse que Kuttner era mentiroso e que o “NoW” fazia escuta clandestina por atacado e era assim que conseguia a maioria das reportagens. Explicou como era fácil entrar num telefone celular, ouvir as mensagens gravadas e ter acesso ao número do telefone de quem as deixou. “Apolo” também informou que a Scotland Yard tinha apreendido documentos com uma enorme quantidade de números de celulares cujas caixas de mensagens foram violadas, mas nada fez nem sequer avisou as vítimas das escutas. Acrescentou que uma das pessoas que o “NoW” reconhecera ter grampeado estava abrindo um processo contra o jornal.

A partir daí, Davies começou a puxar o fio de uma enorme e emaranhada meada. Conseguiu o nome da vítima mencionada por “Apolo”, que tinha obtido na Justiça material extremamente comprometedor contra o “NoW”. Mas, para manter o sigilo e evitar ir aos tribunais, a News International, editora do jornal, subsidiária britânica da News Corp, de Murdoch, ofereceu um generoso acordo em dinheiro, que foi aceito.

Davies continuou colhendo informações. Bloqueado pelos altos escalões da Scotland Yard, entrou em contato com policiais de nível intermediário, com jornalistas do “News of the World”, com advogados de vítimas das atividades ilegais do jornal, com detetives e informantes.

No caminho, ficou sabendo de jornais que infectavam com “cavalos de Troia” os computadores das vítimas para roubar seus segredos? de jornais que passavam envelopes recheados de dinheiro a policiais para conseguir informações? de acordos com policiais para arrombar casas e conseguir informações? de jornalistas alardeando que “meu trabalho é tomar drogas com astros do rock”? ou de outros, aconselhados pelo jornal a dormir com prostitutas e drogar­se com elas para saber, e divulgar, quem contratava prostitutas e usava drogas? de outros repórteres, convivendo com gânsteres? ou participando das festas de arromba de fim de ano da polícia, que, segundo se dizia, eram animadas com prostitutas e drogas. A orientação era “conseguir a matéria ­ seja como for”.

Em julho de 2009, “The Guardian” publicou a primeira matéria sobre as escutas do “NoW”. Informou que Murdoch fizera um acordo de mais de £ 1 milhão para evitar revelar nos tribunais evidências sobre uso, pelos seus jornalistas, de métodos criminosos para obter informações, escreveu como estas eram conseguidas e disse que entre as vítimas havia ministros de Estado, parlamentares, artistas e esportistas. Perguntava por que David Cameron, o líder do Partido Conservador, tinha contratado como diretor de comunicação o editor­chefe de um jornal que tinha cometido centenas de atos ilegais. Afirmava que executivos de Murdoch forneceram informações erradas à comissão de cultura e mídia do Parlamento, à Press Complaints Commission (PCC), órgão autorregulador da imprensa, e ao público.

A matéria “explodiu como dinamite”, mas não com força total, segundo Davies. Algumas pessoas, entre as quais o vice­primeiro-ministro, ficaram revoltadas ao saber que sua intimidade fora violada, mas ninguém quis brigar com Murdoch e seus jornais. A Scotland Yard deu declarações enganosas, desmentindo “The Guardian”. A promotoria tergiversou. No resto da imprensa, silêncio, talvez porque usava procedimentos semelhantes.

A News International, editora do “NoW”, negou que seus repórteres tivessem acesso a telefones celulares e assegurou que todas as alegações contra o jornal eram falsas. Rebekah Brooks, ex­editora­chefe do “NoW” e do “The Sun”, o diário de maior circulação do Reino Unido, recém­nomeada principal executiva (CEO) da News International, mandou uma carta ao comitê de cultura e mídia do Parlamento para dizer que “The Guardian” tinha enganado substancial e talvez deliberadamente o público britânico.

O resto da mídia divulgou a acusação com destaque. Rebekah diria mais tarde que o caso terminaria com Alan Rusbridger, o editor do “The Guardian”, “de joelhos, pedindo clemência”.

Para piorar a situação, “The Independent on Sunday” telefonou para dizer a Davies que uma boa fonte do jornal informou que ele, Davies, subornara policiais para conseguir as informações que tinha divulgado. No “The Times”, também controlado por Murdoch, um ex­chefe de polícia, que coordenara as primeiras investigações sobre as escutas, desmentiu “The Guardian”. Fora contratado pelo “Times” como colunista, recebendo £ 7 mil libras por coluna. No “The Independent”, outro colunista afirmou que a BBC tinha conspirado com “The Guardian” para requentar um assunto velho e atacar Murdoch.

Reação explosiva

O “Guardian” prosseguiu. Mostrou novos detalhes das conexões do alto comando da polícia com os jornais de Murdoch, e estes continuaram com a ofensiva contra Davies e Rusbridger. Rebekah chegou a dizer que Rusbridger tinha um filho ilegítimo ­ uma mentira.

Davies fez acordos com os advogados das vítimas do “NoW” para obrigar a polícia a divulgar informações. Um policial mostrou documentação segundo a qual mais de 400 jornalistas tinham pedido milhares de informações confidenciais à polícia, o que era ilegal. Entre as vítimas estavam o próprio chefe da Polícia Metropolitana, o chefe do MI6, o serviço secreto britânico, jogadores de futebol famosos, jornalistas investigativos.

As coisas começaram a mudar. Rebekah, numa distração, reconheceu ante a comissão de cultura e mídia do Parlamento que “nós pagamos à polícia por informação no passado”, palavras que, posteriormente, tentou corrigir.

Finalmente, a Scotland Yard informou a 19 membros da família real que tinham sido alvo das escutas, mas deixou de entrar em contato com grande número de pessoas na mesma situação. Entre elas, o próprio alto comando da Scotland Yard, três secretários do Home Office, equivalente ao Ministério do Interior, ao qual, supostamente, a entidade estava subordinada. Mas não esquecera de avisar Rebekah de que tinha sido grampeada pelo seu próprio jornal.

Segundo Davies, havia uma relação promíscua entre a News International e os políticos, temerosos do poder de fogo dos jornais de Murdoch. Rebekah ficou íntima dos últimos três primeiros­ministros. Seu segundo casamento, ao qual compareceu a elite política, foi uma demonstração de influência e, Davies sugere, de submissão.

O “The Sun” é apresentado como um jornal que causava terror entre os políticos e era capaz de virar uma eleição. Kelvin MacKenzie, um jornalista temido e odiado, quando foi editor do jornal teria dito ao primeiro­ministro conservador John Major, que caíra em desgraça com Murdoch: “Eu tenho um enorme balde de merda sobre minha mesa e amanhã de manhã vou esvaziá­lo sobre sua cabeça”, numa referência ao conteúdo do jornal do dia seguinte. A comissão de cultura e mídia do Parlamento divulgou o resultado de seu inquérito com sérias críticas à Press Complaints Commission, à Polícia Metropolitana e, principalmente, à News International, por permitir atividades ilegais em suas redações. O relatório foi atacado pelos jornais de Murdoch e ignorado pelo resto da imprensa.

Em maio de 2010, os conservadores ganharam as eleições, David Cameron foi indicado primeiro-ministro e Andy Coulson, o ex­editor do “News of the World”, seu diretor de Comunicação, tornou­se uma das pessoas mais influentes do Reino Unido. A respeito das “artes negras”, ele dissera à comissão de cultura e mídia do Parlamento que não sabia nada de nada: nada sobre escutas de celulares, nada sobre acesso a dados confidenciais da polícia, nada sobre qualquer atividade irregular de sua redação. “Nunca tive envolvimento com nada”.

“The Guardian”, praticamente sozinho, procurou ajuda. Passou informações à BBC, à TV Channel 4, ao “The Independent”, ao “The New York Times”, que começaram a investigar por conta própria. Depois de colocar três jornalistas durante vários meses no assunto, o jornal americano publicou declarações “on the record” de um jornalista do “News of the World” dizendo que Coulson sabia das escutas ­ e que seus jornalistas quebravam a lei. Informou também que a Scotland Yard parara as investigações devido a suas íntimas relações com o “NoW”. As informações foram desmentidas. Mas tiveram impacto.

Mais meios também passaram a informar sobre as escutas. A News International perdeu alguns casos na Justiça e indenizou várias vítimas. A Press Complaints Commission teve que pedir desculpas. Novas informações comprometedoras obrigaram Coulson a demitir­se, sem reconhecer qualquer culpa, e deixaram mal­parado o primeiro­ministro, por seu erro de julgamento ao contratá­lo. A promotoria e a Scotland Yard começaram a investigar seriamente. Descobriram escutas que antes negaram, atentados à privacidade que tinham preferido ignorar, crimes que haviam acobertado.

Finalmente, 64 meses depois de a família real ter reclamado com a polícia que havia algo de errado com os telefones, duas pessoas foram presas, acusadas de interceptar mensagens.

Na Justiça, a polícia foi obrigada a entregar material que durante vários anos dissera não existir. Mostrava que tiveram suas ligações violadas e não foram informados pela polícia o então primeiro­ministro Gordon Brown, cuja conta bancária foi invadida seis vezes? um filho de Tony Blair? Sarah Ferguson, ex-mulher do príncipe Andrew, e suas duas filhas? e uma infinidade de pessoas.

A News International desculpou­se pelo passado e ofereceu indenizar as pessoas que a estavam processando, ao mesmo tempo em que destruía evidências comprometedoras. A Scotland Yard foi impelida a abrir uma investigação sobre o suborno em larga escala de policiais pela imprensa.

Mas o escândalo não calava fundo na opinião pública. Isso mudou quando Davies publicou, em 2011, uma reportagem sobre Milly Dowler, garota de 13 anos assassinada em 2002. Escreveu que, depois de morta, o celular de Milly tinha sido invadido pelo “News of the World”, que limpou parte das mensagens para fazer lugar a outras, novas. Isso seria prova de que tinha checado seu correio eletrônico e deu aos pais a ilusão de que ainda poderia estar viva. Antes de publicar a matéria, Davies mandou um rascunho à polícia, pediu que avisassem os pais de Milly e falou com o advogado deles. O advogado do jornal aprovou a publicação.

A reação foi explosiva. Para o primeiro­ministro, era “um ato repugnante”. Anunciantes tiraram milhões de libras em publicidade do “NoW”? jornaleiros se recusaram a vender o jornal. A polícia divulgou que outras duas meninas assassinadas na mesma época também tiveram o celular violado pelo jornal. Outros escândalos igualmente escabrosos surgiram nos dias seguintes.

Digressões primárias

A News International fechou, então, o “News of the World”, o jornal em língua inglesa de maior circulação do mundo, fundado em 1843, deixando mais de 200 pessoas sem emprego. Ninguém entendeu no momento uma decisão tão drástica.

Foi, na verdade, uma ação estratégica. A News Corp de Murdoch, que controlava 39% da BSkyB, uma operadora de TV por satélite, quis adquirir os restantes 61% do capital, num valor estimado de £ 8,2 bilhões. Precisava da aprovação do governo. Para melhorar sua imagem deteriorada, o grupo quis fazer um gesto dramático e fechou o jornal. Esse golpe de teatro, porém, não surtiu efeito e a compra da BSkyB não foi aprovada. Os outros jornais passaram a bater no rival caído que antes os assustava.

Nesse período, Rebekah Brooks teve momentos difíceis. Seu primeiro marido foi à polícia, com um lábio partido, para denunciar que tinha apanhado da mulher ­ aparentemente, porque pulara a cerca. O “The Sun”, que ela dirigia, fazia na época uma campanha contra a violência doméstica. Meses depois, se divorciaram por adultério. Mais tarde, tornou­se público que ela, ainda casada, mantivera um caso com Coulson durante nove anos.

Quando a situação ficou insustentável, Rebekah teve que se demitir, sendo consolada com uma indenização de £ 16,5 milhões. Foi presa e submetida a julgamento, assim como vários ex­jornalistas do “NoW”. Para surpresa de parte da imprensa, foi declarada inocente? Coulson foi condenado e está cumprindo pena. Outros executivos do grupo e membros da cúpula da polícia também perderam seus empregos. Murdoch teve que dar explicações no Parlamento. A empresa, com o novo nome de News UK, pagou compensações a mais de 700 pessoas e um número muito maior abriu processos na Justiça contra ela. O custo total do escândalo superou US$ 1 bilhão, fora a queda das ações na bolsa.

Intrigante nessa narrativa é que um detalhe fundamental da reportagem sobre Milly Dowler, a jovem assassinada, estava errado. O “NoW” tivera realmente acesso a seu celular, mas, ao contrário do que Davies escreveu e do que a polícia acreditava no momento, o jornal não apagou nenhuma das mensagens gravadas. Essa informação só foi conhecida vários meses mais tarde e Davies tem a honestidade de contar o episódio em pormenores.

Davies afirma que poucas coisas mudaram e que seu livro não é uma história sobre jornalistas, mas sobre o jogo, o uso e o abuso do poder. Diz que Murdoch é agora mais poderoso do que antes, ganha muito mais dinheiro e até lançou um jornal, “The Sun on Sunday”, para substituir o News of the World? e que a imprensa continua agindo de maneira irresponsável.

Isso é verdade. Mas, como Davies mostra no livro, a sociedade inglesa tem anticorpos para reagir quando percebe que os abusos de poder são excessivos. Apesar dos riscos a que se expunham, umas 30 pessoas do “News of the World” o procuraram para passar informações, assim como pessoas de outros jornais, da polícia e do Judiciário. Sempre teve total apoio do editor, Alan Rusbridger. Davies reconheceu, numa entrevista, que quase todos os jornalistas são pessoas decentes e honestas e que muita gente ainda quer ser jornalista por motivos idealistas.

Ele exagera ao afirmar que Murdoch pode ser considerado o homem mais poderoso do mundo e que apavora governos com seu poder. Também faz digressões algo primárias sobre os perigos do que chama de “neoliberalismo”. Mas “Hard Attack” deveria ser lido por qualquer pessoa que tenha interesse pela imprensa? mostra que, quando deixa o corporativismo de lado, cachorro pode morder cachorro.

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Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição, e da História dos Jornais no Brasil, a ser publicada proximamente pela Companhia das Letras