Trabalhar ao vivo, na televisão, é sempre muito complicado. Os críticos de sofá não têm a mínima ideia do que o repórter já enfrentou antes de aparecer na telinha para dar as informações mais recentes.
Para complicar, quem está do lado de cá não imagina o que está sendo dito naquele fone no ouvido do repórter. “Acelera”, “corta”, “acabou”, “fala mais um pouco” — eu mesmo já ouvi de tudo enquanto tentava desenvolver um raciocínio ao vivo, com limite de tempo e “segurando” toda a emissora.
A experiência sempre ajuda. Tive a sorte de fazer 100 transmissões ao vivo de automobilismo, nos boxes, o que me deu certa capacidade de improvisação. Quando Fernandinho Beira-Mar foi preso na Colômbia, usando o celular fiz uma entrevista ao vivo com o promotor do caso, traduzindo simultaneamente, direto das escadarias da Fiscalia, em Bogotá.
Mas nunca cheguei perto de gente como o Arnaldo Duran, que veio da escola do rádio. Se você colocar o Duran para falar ao vivo sobre qualquer assunto, em qualquer lugar do planeta, ele toma conta da situação de maneira formidável. É capaz de apurar uma informação logo ali na sua frente, sem perder o fio da meada.
Duran na verdade integra um grupo de veteranos que resiste em todas as emissoras, Globo inclusive. Antes de ser o repórter que aparece na TV, o “famoso”, Duran expõe sua humanidade no vídeo, sem nunca se imaginar celebridade.
Segunda mão
No campo das transmissões ao vivo, a Globo é refém de seu próprio formato. É tudo tão certinho, tão quadrado, que quando alguém destoa chama a atenção.
No meu tempo, nem mesmo as entradas ao vivo eram improvisadas. O texto era escrito de antemão e pré-aprovado. Se alguém imaginava que aquilo estava sendo dito “no calor dos acontecimentos”, estava enganado.
Hoje, talvez mais que nunca, a Globo é um império editorialmente verticalizado. Isso exige repórteres bem adestrados ou amarrados.
Assim, a emissora será sempre pega de surpresa quando seus profissionais forem forçados a improvisar, por conta de acontecimentos ao vivo, em situações que fujam ao controle dos chefes.
A repórter Cecília Malan foi criticada nas redes sociais por supostamente ter se assustado com tiros em Paris. Normal.
O que me surpreendeu é que, provavelmente sem querer, ela entregou um dos segredos dos correspondentes internacionais de hoje.
Foi quando disse que não tinha condições de contar as novidades por falta de internet.
Registro, antes de avançar, que minha carreira de correspondente internacional começou antes da era Google. Na Manchete, em Nova York, a gente furava as mensagens em fita antes de enviá-las por telex para a editora internacional Teresa Barros, no Rio de Janeiro. Nossas transmissões eram, de fato, via satélite. Dez minutos Nova York-Rio custavam 1.500 dólares.
Quando o correspondente viajava, às vezes contava com o apoio de uma agência internacional, como a Reuters. Mas, na maioria das vezes, tinha mesmo de dar duro: fazer entrevistas, apurar fatos, checar informações com as fontes originais.
Eu sempre preferi dar um tom pessoal às minhas reportagens para escapar da interferência de superiores hierárquicos que estavam muito mais distantes — e menos informados — do que eu sobre os acontecimentos.
Dei sorte. Em Moscou, em 1988, alijado por sorteio de uma entrevista coletiva que encerrava a cúpula Gorbatchev-Reagan, trombei por acaso com o líder soviético dentro do Kremlin. Saiu uma entrevista exclusiva, quando o objetivo original era apenas mostrar as lindíssimas igrejas então convertidas a museus no centro de poder da URSS.
Infelizmente para os correspondentes internacionais, esse tempo acabou.
Hoje eles se tornaram reféns de seus editores no Brasil.
Enquanto estes acompanham dezenas de fontes de informação em tempo real, os repórteres, quando muito, têm uma visão local do evento.
Em Paris, a repórter da Globo reclamava acesso à internet com razão: queria saber o que estava acontecendo longe de seu posto de observação.
É isso o que as emissoras esperam dos correspondentes: que eles ajudem a mascarar o fato de que a maior parte do que transmitem é produzido por terceiros.
São dados e imagens de segunda mão vendidos como de primeira.
O pecado e o crédito
Foi-se o tempo de correspondentes como o Reali Júnior, que morou tanto tempo em Paris que era reconhecido inclusive por autoridades locais e tinha fontes, muitas fontes, francesas.
Ao longo dos últimos anos os salários despencaram e ser promovido a correspondente passou a ser, acima de tudo, uma questão de status.
Boa parte do trabalho é feito com “pacotes” de imagens e informações comprados de agências internacionais.
Nos grandes eventos, com transmissões ao vivo, a presença física do correspondente não significa necessariamente que esta equação se altere.
Para as empresas, o correspondente de autonomia limitada, além de mais barato, é mais fácil de controlar editorialmente.
Os veteranos foram sacrificados no altar da redução de custos.
Jovens repórteres aceitam com mais facilidade ler o que outros escrevem. Uma boa presença no vídeo é o que mais conta.
O público, sem acesso aos bastidores, fica fascinado ao se ver representado no centro dos acontecimentos.
Muitas vezes é isso mesmo: uma grande representação.
Neste sentido, o “pecado” de Cecília Malan deveria servir de crédito: ainda que inadvertidamente e por um breve momento, ela abriu a cortina da ilusão.
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Luiz Carlos Azenha é jornalista, editor do Viomundo