O que há em comum entre a Operação Lava Jato no Brasil, e o chamado Caso Nisman na Argentina? Aparentemente, nada. Até porque se um trata de denúncias de corrupção na Petrobras, a estatal petroleira, o outro envolve a estranha morte de um procurador federal. Em comum, no entanto, os dois têm servido, não para denunciar irregularidades e possíveis desmandos, mas para que a maior parte da mídia comercial nestes dois países deixe de lado o compromisso com a informação e o esclarecimento da opinião pública e assuma o papel de oposição ou, como preferem alguns, de verdadeiro golpismo midiático, contra os governos de Dilma Rousseff e Cristina Kirchner.
Em todos os países democráticos, é tradicional a mídia aguardar 100 dias de funcionamento do novo governo – tempo para que ele se instale e diga a que veio – antes de dar início às cobranças e críticas que são importantes, necessárias e representam a sua própria razão de ser. Igualmente, em todos os países democráticos, a mídia assume apoios a determinados partidos políticos e candidatos, o que não a impede de noticiar e cobrir o que se passa no processo eleitoral como um todo. Dito de outra forma, apoios e simpatias político-partidárias ficam restritos às páginas de opinião. No Brasil e na Argentina, estes aspectos básicos do jornalismo foram e estão sendo propositalmente esquecidos.
Depois de uma campanha eleitoral em que os principais veículos de mídia no Brasil (Veja, Globo – jornal, rádios e TVs – e jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo) mesmo se auto-definindo como “imparciais”, atuaram como porta-vozes da oposição, era de se esperar que, passado o pleito, respeitassem a vontade da maioria da população. Esta regra, além de fazer parte do jogo democrático, é essencial para quem se proclama defensor intransigente da liberdade de imprensa. Mas não é isso que está acontecendo no Brasil, assim como não é o que se passa na Argentina.
Em outubro, os argentinos irão às urnas escolher o novo ocupante da Casa Rosada, mas a esmagadora maioria da mídia local, antes mesmo da definição dos nomes que participarão da disputa, já tomou partido: querem derrotar a chamada “Frente para a Vitória”, o peronismo de centro-esquerda, que dá sustentação ao governo de Cristina Kirchner.
Não interessa informar
A forma com que a mídia brasileira tem “coberto” a Operação Lava Jato, jogando apenas nas costas de políticos do PT e da chamada “base aliada” a responsabilidade por corrupção na Petrobras, deixa visível que informar não é o interesse maior. É nítido que a corrupção na Petrobras não começou agora e muito menos é “privilégio” dos governos do PT. Também na Argentina, quando as investigações sobre a morte do procurador Alberto Nisman ainda estão em processo (ele teria se suicidado ou foi morto?) a mídia comercial “antecipa-se” e joga no colo de Cristina Kirchner este cadáver. Segundo a mídia comercial argentina, partindo do tosco pressuposto de que se ele iria denunciá-la e ao chanceler de seu governo, Timerman, como pessoas que estavam tentando encobrir os responsáveis pelo atentado terrorista que, em 1994, matou 85 pessoas na entidade judaica Amia, em Buenos Aires, esta morte só ao governo interessaria.
A realidade, nos dois casos, é muito mais complexa. Nunca se falou tanto em corrupção no Brasil porque nunca a corrupção foi tão combatida. Some-se a isso que as denúncias envolvendo a Petrobras acontecem exatamente no momento em que a empresa, em que pese todos os problemas, se torna a petroleira número um do mundo e se prepara para explorar as cobiçadas reservas do pré-sal. A mídia brasileira “cobre” o assunto sem mencionar os interesses estrangeiros em jogo, e muito menos a importância estratégica e geopolítica do petróleo e do pré-sal. No caso da Argentina, cada dia fica mais nítido que vários setores (nacionais e internacionais) têm interesse em transformar uma investigação policial em uma crise política capaz de abalar o governo. Não por acaso, na última semana, de forma mais discreta por parte da mídia brasileira, começou-se a falar em impeachment para Dilma Rousseff, e de maneira escancarada, pela mídia argentina, em antecipação das eleições presidenciais.
Os embates entre o golpismo midiático e os governos brasileiro e argentino estão longe do fim. Em ambos os casos, é nítido o interesse da mídia em confundir a opinião pública, levando-a à percepção de que os dois países vivem à beira do caos. Percepção que poderia ter como consequência colocar as massas nas ruas exigindo o fim dos “desmandos” e, por tabela, o fim desses governos. Caso contrário, como explicar as permanentes manchetes catastróficas ligadas à Petrobras, à chamada crise hídrica e à inflação que, ao invés de informarem, acabam infundindo medo e desespero à população? É curioso que esta mesma mídia que dá tanto espaço aos “problemas” no Brasil e na Argentina faça apenas ligeiras menções aos 61 corpos encontrados em Acapulco, no México de Peña Nieto. Igualmente, como entender que essa mesma mídia ignore a rede do narcotráfico que toma conta do Paraguai no pós-Lugo?
Página 12 vs. oposição midiática
Não é papel da mídia difundir a versão oficial dos fatos, quase sempre rósea, mas, igualmente não é papel da mídia dar voz apenas às críticas ou aos setores que fazem coro com elas. No entanto, é isso que tem acontecido aqui e na Argentina. A Argentina – em que pese enfrentar um momento difícil em termos econômicos, em guerra aberta com os fundos biltres em função de sua dívida externa – está bem mais preparada, do ponto de vista da comunicação, para lidar com tais dificuldades.
Ao contrário do Brasil, a Argentina possui um diário de circulação nacional, Página 12, de esquerda, que tem cumprido o papel de desafinar o coro da oposição midiática. Some-se a isto que a Argentina conta com uma televisão pública de qualidade que cobre todo o seu território e, o mais importante, já aprovou e está implementando a Ley de Medios, como se tornou conhecida a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual.
Acusado pelos veículos da mídia comercial de ser “chapa branca”, Página 12 está longe disso. O diário tem se caracterizado por procurar contextualizar as questões, evitando as leituras simplistas e distorcidas da realidade. A título de exemplo, no chamado Caso Nisman, Página 12 tem levantado aspectos que convenientemente não são mencionados pela mídia comercial. E aqui vão três exemplos.
Primeiro, enquanto a mídia comercial trata a última pessoa que, até o momento, viu Nisman com vida, como seu auxiliar e “técnico em informática”, o Página 12 mostrou que Lagomarsino integra o serviço de inteligência argentino. Uma diferença e tanto! Segundo, ao contrário de acusar o governo de Cristina Kirchner por negligência pela segurança de Nisman, os agentes incumbidos de tal não estavam trabalhando no dia de sua morte, o jornal mostrou que a ausência se deveu à disputa velada no órgão de segurança entre setores pró e contra o governo. Disputa semelhante à que acontece no Brasil em se tratando da Polícia Federal. Mais ainda: mostrou como a partidarização desta instituição é um problema grave que precisa ser enfrentado não apenas por um governo, mas pela democracia argentina. Terceiro, o Página 12 mostra que não faz sentido que um setor dos procuradores argentinos (equivalentes a membros do Ministério Público) cobre do governo a apuração da morte de Nisman, quando eles próprios, como integrantes do Poder Judiciário, dispõem de atribuição legal e instrumentos para tanto.
TV pública e desmonte do circo midiático
Nesta mesma linha de contextualização dos fatos tem atuado a TV pública argentina, através de seus telejornais e também de debates e discussões envolvendo políticos, jornalistas, cientistas políticos e especialistas em direito e mídia. Ao contrário de tentar minimizar ou desconhecer as denúncias e críticas que estão sendo formuladas, a TV pública tem colocado o dedo na ferida, contribuindo para desmontar o circo midiático em torno dessa morte. Mais ainda, de forma didática, tem mostrado as falácias, incongruências e inconsequências da oposição midiática. O grupo Clarín, o maior da Argentina, entre outras coisas, já comparou o caso Nisman a um possível Watergate e, indo além, tem chamado a presidente Cristina Kirchner de “assassina”.
Valendo-se de uma denúncia que foi desmentida pela suposta fonte no dia seguinte, o Clarín chegou a afirmar que Nisman foi morto porque ia pedir a prisão de Cristina Kirchner e de seu chanceler. Foi dentro deste contexto, por exemplo, que o chefe de gabinete de Kirchner rasgou, durante uma coletiva de imprensa, no dia 02/02, páginas do Clarín que continham estas inverdades. A foto de Jorge Capitanish rasgando páginas do jornal correu o mundo e foi apresentada, inclusive no Brasil, como mais um “atentado à liberdade de imprensa” praticado na Argentina. Excessos à parte, esta mesma mídia nada divulgou sobre a pesada artilharia com que o Clarín atinge diariamente a Casa Rosada, com a conivência de parte do próprio Poder Judiciário.
As desavenças entre o grupo Clarín e os governos argentinos não são de agora. Além de ter atuado diretamente na “guerra suja”, com seu dirigente Hector Magnetto tendo participado de sessões de torturas à esposa de um empresário concorrente, o grupo Clarín tem lançado mão de todo tipo de expediente para não se adequar à Lei dos Meios. Por essa legislação, o grupo deveria já ter se desfeito de mais de 200 licenças de emissoras de TV por cabo e mais 19 canais abertos, pois a legislação destina um terço destas licenças à mídia comercial, com as outras duas partes cabendo, respectivamente, à mídia comunitária e à mídia de interesse público.
Nova liminar para o Clarín
Pelo visto, esta disputa ainda vai longe, apesar da Suprema Corte Argentina ter determinado que a Lei dos Meios é legal e deve ser cumprida. Mesmo assim, na quinta-feira (5/2) o Clarín publicou, em página inteira, o teor de nova liminar que conseguiu para adiar, por mais seis meses, o início dessa adequação. O argumento utilizado foi o de sempre: estar sendo “perseguido” pelo governo argentino e de, no caso, a legislação ter caráter de “grave atentado à liberdade de imprensa”. Detalhe: praticamente todos os demais grupos de comunicação já se adequaram à lei.
Para os setores que apoiam o governo Dilma e têm cobrado que ele trave a “batalha da comunicação”, observar o que está acontecendo na Argentina chega a ser didático. Ao contrário do acreditam alguns desses setores, a Lei dos Meios não é uma panaceia. O caso argentino mostra que sua própria adoção e, sobretudo, sua implementação consistem em desafios a serem enfrentados. Desafios ampliados após a vitória, aqui, de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados. Na Argentina, essa luta já dura cinco anos e promete ir longe, sem falar no risco de voltar à estaca zero ou ser revogada caso seus adversários vençam as eleições. Claro que nenhum candidato de oposição defende abertamente a revogação da Lei dos Meios, que tem forte apoio popular, mas muitos candidatos falam em necessidade de “liberdade de imprensa” com a mesma velha conotação de “liberdade de empresa” que vigora no Brasil.
Mas se uma Lei dos Meios não é a solução para travar, imediatamente, a batalha da comunicação no Brasil, o país já dispõe de alguns elementos para tanto. A exemplo da Argentina, o governo brasileiro suspendeu a publicidade oficial em veículos que não têm cumprido minimamente o compromisso de informar. Neste sentido, o caso da revista Veja é exemplar. O governo pode, no entanto, ir além, contribuindo para a pluralização das vozes ao estimular a mídia comunitária, por exemplo. Neste balaio existe muito gato escondido, a começar por políticos detentores de canais educativos e comunitários, mas a Anatel sabe, de cor e salteado, quem é quem e alguns casos não resistem a uma fiscalização por mais sumária que seja.
TV Brasil, uma desconhecida
É fundamental destacar ainda que o país já conta, deste 2007, com a TV Brasil, a emissora pública brasileira. Criada no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a expectativa de todos os setores comprometidos com a democratização da comunicação no país era de que ela finalmente surgisse com força e espaço para ser uma alternativa de fato às TVs comerciais. Sete anos já se passaram e a emissora, em que pese possuir programação de qualidade, está longe de cumprir a função para a qual foi criada.
A TV Brasil continua uma ilustre desconhecida pela maioria esmagadora da população. Em sinal aberto, ela é captada apenas em umas poucas cidades, além das capitais São Paulo, Rio de Janeiro, São Luís e Distrito Federal. Sua presença no Maranhão é um capricho que vem de longa data e pode ser atribuída aos interesses da família Sarney. O argumento oficial é que no atual espectro eletromagnético não há espaço para novas emissoras. Argumento que não se justifica se levado em conta o interesse público e o fato das concessões serem privativas da União. Há promessas de que ela atingirá todo o país com a digitalização. Mas quando isto ocorrerá?
Outro aspecto importante a ser observado é que, se no governo Lula a TV Brasil avançou e esperava-se que este avanço fosse maior e que ela se consolidasse, no governo Dilma, o que se pode observar, é que a direção da emissora navega num mar sem bússola. Como emissora pública, ela tem obrigação de dar espaço a todas as versões e de promover o debate, mas a sua atuação tem sido marcada pela timidez editorial e pela falta de clareza de seu papel social.
Sociedade despolitizada
Ao contrário dos governos de Cristina Kirchner, nem Lula, e menos ainda Dilma, tiveram a preocupação de contribuir para a politização da sociedade. Aliás, a esquerda brasileira, só agora, e mesmo assim a duras penas, começa a perceber a importância e o papel estratégico da comunicação e da mídia em uma sociedade democrática. A militância e as “ruas” são fundamentais, mas militância e “rua” assistem televisão e ouvem rádio e se a versão que recebem é apenas a de um setor, isto acabará e já está tendo consequências. Some-se a isto que sem banda larga universalizada, as redes sociais estão longe de poderem enfrentar a mídia comercial.
Em outras palavras, o PT e as esquerdas brasileiras não deram a devida importância à comunicação e estão pagando caro por isso. Pode-se objetar que o governo Lula esteve, desde o início, sob pesada artilharia. Basta lembrar as denúncias envolvendo o mensalão petista. Pode-se argumentar que Dilma enfrentou em seu primeiro governo os desdobramentos destas denúncias, com o midiático julgamento do mensalão petista, transmitido em tempo real pela TV Globo (em especial a Globo News) entre outros veículos. Também neste caso é importante salientar a parcialidade da mídia comercial brasileira que continua escondendo várias irregularidades associadas à oposição, a exemplo do mensalão tucano mineiro, anterior ao petista e que está prestes a prescrever sem ter sido julgado. O mesmo acontecendo em se tratando de denúncias envolvendo a participação de tucanos, desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso, na Operação Lava Jato.
Não é válido também o argumento que em momento de crise não se deve enfrentar a mídia por mais que ela tenha posicionamentos golpistas. Mais uma vez, a Argentina tem lições a dar ao Brasil. Se não fosse esse enfrentamento, o governo de Cristina Kirchner não estaria no seu quarto ano e com muitas chances de fazer seu sucessor. Afinal, engana-se quem acredita que interesses inconfessáveis internos e externos tenham quaisquer preocupações com cordialidades.
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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade