Grosseiramente, esta publicação priva seus editores dos enfeites egocêntricos da profissão. Tragicamente, estas páginas não incluem as “cartas semanais do editor” aos leitores, abaixo de uma fotografia radiante e retocada. Online, há um correio eletrônico semanal, mas isso vem de sua editoria, e não de você, editor. Enquanto editor, você passa seu tempo numa obscuridade deplorável, apenas consolado pelo fato de que tem a melhor tarefa no jornalismo. Mas existem duas exceções indulgentes: uma rápida citação quando você é nomeado e o discurso deste líder que se despede e que tenta resumir o mundo que se chocou com sua editoria.
A coisa começa no primeiro dia e não dá trégua. Há eleições, golpes de Estado, guerras, falências e tsunamis. A ciência cospe descobertas e ideias. Uma pantomima de vilões imitadores de Putin e palhaços que adotam o estilo Berlusconi abre caminho para a primeira página. Mas no que diz respeito às coisas com que este jornal se preocupa, os últimos nove anos foram uma batalha – batalha que me deixou num estado de otimismo paranoico. Paranoia porque tanto continua sendo ameaçado; otimismo porque, em sua maior parte, as crenças que mantêm a vida deste jornal são suficientemente fortes para sobreviver.
Isso se aplica, antes de tudo, à própria Economist. Uma de minhas primeiras capas perguntava “Quem matou o jornal?” (24 de agosto de 2006) e é possível que esta publicação tenha enfrentado mais mudanças nos últimos nove anos do que ao longo do século passado [ver, neste Observatório, “Frente ampla contra os jornais de qualidade” e “Quem matou o jornal?”, por Alberto Dines]. No Dia da Mentira [April Fool’s Day, em inglês] de 2006, quando, apropriadamente, comecei neste cargo, o Twitter tinha dez dias de existência, nossa publicidade da revista impressa estava crescendo e redes sociais eram algo que tinha a ver com um almoço muito bom.
Portanto, qualquer editor moderno que não seja paranoico é um idiota. Mas meu otimismo continua ainda maior, tanto em relação à Economist quanto ao futuro do jornalismo independente. Isto se deve, em parte, ao fato de a tecnologia nos oferecer mais maneiras de alcançarmos nossa audiência. Em 2006, nossa circulação era de 1,1 milhão de exemplares, na publicação impressa. Agora é de 1,6 milhão – o impresso, o digital e o áudio. Mais de meio milhão de pessoas baixou nosso novo Espresso app; a cada semana, o número de nossos seguidores no Twitter aumenta em 70 mil. A mídia não é uma corrida para o fundo do poço, como previam os pessimistas. As pessoas querem ler sobre os curdos, sobre Keynes e o kokumi, assim como sobre as célebres Kardashians. Cada vez mais gente entra para a universidade, viaja ao exterior e precisa de ideias para continuar com emprego – e irá pagar por uma visão imparcial do mundo, na qual o editor, sejam quais forem seus erros (ou, a partir de agora, as virtudes dela), não tem rabo preso com ninguém.
Enfrentando novas batalhas
O mesmo cuidadoso otimismo se aplica ao único autêntico patrão de um editor da Economist: o dogma do livre mercado e da liberdade individual. Esse liberalismo – que começa lá atrás, quando James Wilson fundou esta publicação, em 1843 – foi atacado por todos os lados durante os últimos nove anos. Em 2006 ainda era fácil alguém se convencer de que a história estava acabando – e de que o “consenso de Washington”, da democracia e do capitalismo, iria libertar o mundo. Mas o ritmo da liberdade infelizmente estagnou.
A democracia já não é o suposto destino. Países que pareciam levemente otimistas nove anos atrás, como a Rússia e a Turquia, adquiriram czares e sultões. A primavera árabe virou inverno. Acima de tudo e de todos, as personalidades autoritárias encontraram um novo modelo na China – onde o poder gira, por cima, a cada dez anos, e o crescimento econômico é organizado por baixo. A renda per capita na China cresceu duas vezes mais do que na democrática Índia desde 2006.
A democracia ocidental também parece menos exemplar. Barack Obama pode ter acabado com a simulação de afogamento dos valores norte-americanos de seu antecessor, mas Washington continua sendo um sinônimo de congestionamento. Durante os anos em que fui editor, a cada ano uma clara maioria de norte-americanos declarou ao Instituto Gallup que estava insatisfeita com o modo pelo qual era governada. A política monetária norte-americana, que foi alvo de outro discurso de despedida em 1993, parece cada vez mais suja e mais feudal, com uma prometida competição entre Bush e Clinton em 2016.
A única maneira de se sentir confortável com a democracia americana é comparando-a com Bruxelas. Desgraçadamente inexplicável e ineficiente, a União Europeia muitas vezes é apenas mantida unida pela mulher que, de alguma forma, conseguiu ser a mais surpreendente política ocidental e a mais vacilante, Angela Merkel. Mas com que objetivo? A quase-permanente crise do euro provou ser um exercício clássico em termos de tomadas de decisão caóticas, que consistem, em sua maior parte, em concordar em jogar o lixo para baixo do tapete.
Se as políticas liberais fossem corretamente atacadas, os golpes que inundaram a economia liberal talvez tivessem sido mais dolorosos. Hoje em dia, é um lugar-comum culpar o principal acontecimento que se deu durante o meu mandato – a crise financeira de 2007-08 – ao capitalismo sem restrições. Isto, em grande parte, é uma calúnia: o epicentro era o mercado de hipotecas norte-americano, uma das indústrias mais regulamentadas do mundo, e a mão de Leviatã estava em boa parte da confusão que se seguiu. Mas parte das acusações contra o capitalismo era verdadeira – e isso dói. Nenhum liberal pode justificar um sistema em que imensos balanços bancários se equilibravam em quantias insignificantes de capital. Em 2006, as finanças não passavam de um jogo, puro e simples; e a parte mais pesada da conta coube aos contribuintes.
Isso ajuda a explicar por que persiste no Ocidente uma sensação de injustiça – visível nas ruas de Atenas, mas também nas páginas de Thomas Piketty. As pessoas culpam o liberalismo por grande parte daquilo que receiam: seja uma imigração em grande escala, as mudanças tecnológicas ou apenas aquilo que os franceses chamam mondialisation.
Tal reação não deixa de ser razoável. A globalização trouxe, sem dúvida, problemas, quando surgiu. Mas também fez um trabalho incrível ao reduzir a miséria. Desde 1990, quase um bilhão de pessoas foram retiradas da pobreza absoluta; e nem todos os 75 milhões de pessoas que compraram um iPhone nos últimos três meses de 2014 eram plutocratas. Além disso, os mercados livres podiam fazer ainda mais, e não apenas no Ocidente. Acordos de livre comércio, de um a outro lado do Atlântico e do Pacífico, iriam estimular o crescimento e a senhora Merkel poderia abrir o único mercado de serviços da Europa. A magia ainda funciona e os liberais deveriam ser muito mais ousados no sentido de realizar esse caso de otimismo.
Mas não bastava isso. Estão surgindo dois grandes debates que irão redefinir o liberalismo. O primeiro diz respeito à desigualdade. Uma sociedade mais aberta, em que os mercados globais aumentem as recompensas aos talentosos, torna-se rapidamente um mercado menos igual. Como destacou esta publicação na semana passada, os inteligentes estão se casando com os inteligentes e educando obstinadamente seus filhos, tornando, assim, ainda mais difícil que os pobres os possam acompanhar. Os liberais deveriam resistir à tendência da esquerda de punir os talentosos e, de alguma maneira, garantir a igualdade. Porém, em nome de oportunidades iguais, as necessidades progressivas devem cortar privilégios desnecessários (como lugares na universidade para filhos de ex-estudantes) e travar guerra contra o cúmplice capitalismo. A justiça privada e a Exxon são suficientemente inteligentes para não precisar de abatimento de impostos. Os 20% dos norte-americanos mais ricos recebem quatro vezes mais dinheiro público, em deduções de juros de hipotecas, do que aquilo que é gasto em habitação social para os 20% mais pobres.
Estas são causas que motivaram James Wilson, John Stuart Mill, William Gladstone e os grandes liberais do século 19, que travaram guerra contra a “velha corrupção”, patrocinada e protegida para os ricos, como as leis do milho contra as quais esta publicação se opôs. Mas eram progressistas que também acreditavam num Estado menor. Este é o segundo debate que se forma em torno do liberalismo e também é um dilema: isto porque, embora esta revista queira que o papel do governo seja limitado, alguns remédios para a desigualdade implicam o Estado fazer mais, e não menos. A educação fundamental, por exemplo. Apenas 28% das crianças norte-americanas de quatro anos frequentam uma pré-escola pública; a China espera colocar 70% de suas crianças na pré-escola por volta de 2020.
Fincando o padrão do liberalismo
A resposta é reduzindo a presença proporcional do governo, mas dirigindo-a mais cuidadosamente, mais intensamente. Na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, o Estado ainda tenta fazer coisas demais e, consequentemente, as faz mal. O Leviatã espalhou-se, invadindo nossa privacidade, ditando a curva de uma banana e produzindo códigos de impostos de uma extensão bíblica. Com cada abatimento de impostos para os que já são ricos e com cada subsídio para esta empresa ou aquele grupo de pressão, forma-se um novo lobby e a democracia sofre.
As lições estão no setor privado. No Ocidente, ele está frequentemente várias décadas à frente do setor público. Parte da resposta é simplesmente boa administração: se a Cingapura tem como pagar melhor aos bons professores e demitir os ruins, Stuttgart e Seattle também têm. Outras respostas estão em experiências conduzidas nos níveis inferiores do governo, como é o caso entre os estados norte-americanos, de gigantescos hospitais de coração na Índia e do Bolsa Família no Brasil.
A batalha pelo futuro do Estado é uma área em que o liberalismo moderno deveria fincar seu padrão e lutar, exatamente como fizeram os fundadores deste dogma. Porque, ao final, os livre-mercados e as mentes livres vencerão. O liberalismo tem a lógica econômica e a tecnologia a seu favor – assim como esta maravilhosa publicação, que agora repasso para excelentes mãos. E esse é meu último, e melhor, motivo para o otimismo.
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John Micklethwait editou The Economist desde 2006 e deixou a revista em 6 de fevereiro. Estas são suas palavras de despedida