Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O caso do otimismo liberal

Grosseiramente, esta publicação priva seus editores dos enfeites egocêntricos da profissão. Tragicamente, estas páginas não incluem as “cartas semanais do editor” aos leitores, abaixo de uma fotografia radiante e retocada. Online, há um correio eletrônico semanal, mas isso vem de sua editoria, e não de você, editor. Enquanto editor, você passa seu tempo numa obscuridade deplorável, apenas consolado pelo fato de que tem a melhor tarefa no jornalismo. Mas existem duas exceções indulgentes: uma rápida citação quando você é nomeado e o discurso deste líder que se despede e que tenta resumir o mundo que se chocou com sua editoria.

A coisa começa no primeiro dia e não dá trégua. Há eleições, golpes de Estado, guerras, falências e tsunamis. A ciência cospe descobertas e ideias. Uma pantomima de vilões imitadores de Putin e palhaços que adotam o estilo Berlusconi abre caminho para a primeira página. Mas no que diz respeito às coisas com que este jornal se preocupa, os últimos nove anos foram uma batalha – batalha que me deixou num estado de otimismo paranoico. Paranoia porque tanto continua sendo ameaçado; otimismo porque, em sua maior parte, as crenças que mantêm a vida deste jornal são suficientemente fortes para sobreviver.

Isso se aplica, antes de tudo, à própria Economist. Uma de minhas primeiras capas perguntava “Quem matou o jornal?” (24 de agosto de 2006) e é possível que esta publicação tenha enfrentado mais mudanças nos últimos nove anos do que ao longo do século passado [ver, neste Observatório, “Frente ampla contra os jornais de qualidade” e “Quem matou o jornal?”, por Alberto Dines]. No Dia da Mentira [April Fool’s Day, em inglês] de 2006, quando, apropriadamente, comecei neste cargo, o Twitter tinha dez dias de existência, nossa publicidade da revista impressa estava crescendo e redes sociais eram algo que tinha a ver com um almoço muito bom.

Portanto, qualquer editor moderno que não seja paranoico é um idiota. Mas meu otimismo continua ainda maior, tanto em relação à Economist quanto ao futuro do jornalismo independente. Isto se deve, em parte, ao fato de a tecnologia nos oferecer mais maneiras de alcançarmos nossa audiência. Em 2006, nossa circulação era de 1,1 milhão de exemplares, na publicação impressa. Agora é de 1,6 milhão – o impresso, o digital e o áudio. Mais de meio milhão de pessoas baixou nosso novo Espresso app; a cada semana, o número de nossos seguidores no Twitter aumenta em 70 mil. A mídia não é uma corrida para o fundo do poço, como previam os pessimistas. As pessoas querem ler sobre os curdos, sobre Keynes e o kokumi, assim como sobre as célebres Kardashians. Cada vez mais gente entra para a universidade, viaja ao exterior e precisa de ideias para continuar com emprego – e irá pagar por uma visão imparcial do mundo, na qual o editor, sejam quais forem seus erros (ou, a partir de agora, as virtudes dela), não tem rabo preso com ninguém.

Enfrentando novas batalhas

O mesmo cuidadoso otimismo se aplica ao único autêntico patrão de um editor da Economist: o dogma do livre mercado e da liberdade individual. Esse liberalismo – que começa lá atrás, quando James Wilson fundou esta publicação, em 1843 – foi atacado por todos os lados durante os últimos nove anos. Em 2006 ainda era fácil alguém se convencer de que a história estava acabando – e de que o “consenso de Washington”, da democracia e do capitalismo, iria libertar o mundo. Mas o ritmo da liberdade infelizmente estagnou.

A democracia já não é o suposto destino. Países que pareciam levemente otimistas nove anos atrás, como a Rússia e a Turquia, adquiriram czares e sultões. A primavera árabe virou inverno. Acima de tudo e de todos, as personalidades autoritárias encontraram um novo modelo na China – onde o poder gira, por cima, a cada dez anos, e o crescimento econômico é organizado por baixo. A renda per capita na China cresceu duas vezes mais do que na democrática Índia desde 2006.

A democracia ocidental também parece menos exemplar. Barack Obama pode ter acabado com a simulação de afogamento dos valores norte-americanos de seu antecessor, mas Washington continua sendo um sinônimo de congestionamento. Durante os anos em que fui editor, a cada ano uma clara maioria de norte-americanos declarou ao Instituto Gallup que estava insatisfeita com o modo pelo qual era governada. A política monetária norte-americana, que foi alvo de outro discurso de despedida em 1993, parece cada vez mais suja e mais feudal, com uma prometida competição entre Bush e Clinton em 2016.

A única maneira de se sentir confortável com a democracia americana é comparando-a com Bruxelas. Desgraçadamente inexplicável e ineficiente, a União Europeia muitas vezes é apenas mantida unida pela mulher que, de alguma forma, conseguiu ser a mais surpreendente política ocidental e a mais vacilante, Angela Merkel. Mas com que objetivo? A quase-permanente crise do euro provou ser um exercício clássico em termos de tomadas de decisão caóticas, que consistem, em sua maior parte, em concordar em jogar o lixo para baixo do tapete.

Se as políticas liberais fossem corretamente atacadas, os golpes que inundaram a economia liberal talvez tivessem sido mais dolorosos. Hoje em dia, é um lugar-comum culpar o principal acontecimento que se deu durante o meu mandato – a crise financeira de 2007-08 – ao capitalismo sem restrições. Isto, em grande parte, é uma calúnia: o epicentro era o mercado de hipotecas norte-americano, uma das indústrias mais regulamentadas do mundo, e a mão de Leviatã estava em boa parte da confusão que se seguiu. Mas parte das acusações contra o capitalismo era verdadeira – e isso dói. Nenhum liberal pode justificar um sistema em que imensos balanços bancários se equilibravam em quantias insignificantes de capital. Em 2006, as finanças não passavam de um jogo, puro e simples; e a parte mais pesada da conta coube aos contribuintes.

Isso ajuda a explicar por que persiste no Ocidente uma sensação de injustiça – visível nas ruas de Atenas, mas também nas páginas de Thomas Piketty. As pessoas culpam o liberalismo por grande parte daquilo que receiam: seja uma imigração em grande escala, as mudanças tecnológicas ou apenas aquilo que os franceses chamam mondialisation.

Tal reação não deixa de ser razoável. A globalização trouxe, sem dúvida, problemas, quando surgiu. Mas também fez um trabalho incrível ao reduzir a miséria. Desde 1990, quase um bilhão de pessoas foram retiradas da pobreza absoluta; e nem todos os 75 milhões de pessoas que compraram um iPhone nos últimos três meses de 2014 eram plutocratas. Além disso, os mercados livres podiam fazer ainda mais, e não apenas no Ocidente. Acordos de livre comércio, de um a outro lado do Atlântico e do Pacífico, iriam estimular o crescimento e a senhora Merkel poderia abrir o único mercado de serviços da Europa. A magia ainda funciona e os liberais deveriam ser muito mais ousados no sentido de realizar esse caso de otimismo.

Mas não bastava isso. Estão surgindo dois grandes debates que irão redefinir o liberalismo. O primeiro diz respeito à desigualdade. Uma sociedade mais aberta, em que os mercados globais aumentem as recompensas aos talentosos, torna-se rapidamente um mercado menos igual. Como destacou esta publicação na semana passada, os inteligentes estão se casando com os inteligentes e educando obstinadamente seus filhos, tornando, assim, ainda mais difícil que os pobres os possam acompanhar. Os liberais deveriam resistir à tendência da esquerda de punir os talentosos e, de alguma maneira, garantir a igualdade. Porém, em nome de oportunidades iguais, as necessidades progressivas devem cortar privilégios desnecessários (como lugares na universidade para filhos de ex-estudantes) e travar guerra contra o cúmplice capitalismo. A justiça privada e a Exxon são suficientemente inteligentes para não precisar de abatimento de impostos. Os 20% dos norte-americanos mais ricos recebem quatro vezes mais dinheiro público, em deduções de juros de hipotecas, do que aquilo que é gasto em habitação social para os 20% mais pobres.

Estas são causas que motivaram James Wilson, John Stuart Mill, William Gladstone e os grandes liberais do século 19, que travaram guerra contra a “velha corrupção”, patrocinada e protegida para os ricos, como as leis do milho contra as quais esta publicação se opôs. Mas eram progressistas que também acreditavam num Estado menor. Este é o segundo debate que se forma em torno do liberalismo e também é um dilema: isto porque, embora esta revista queira que o papel do governo seja limitado, alguns remédios para a desigualdade implicam o Estado fazer mais, e não menos. A educação fundamental, por exemplo. Apenas 28% das crianças norte-americanas de quatro anos frequentam uma pré-escola pública; a China espera colocar 70% de suas crianças na pré-escola por volta de 2020.

Fincando o padrão do liberalismo

A resposta é reduzindo a presença proporcional do governo, mas dirigindo-a mais cuidadosamente, mais intensamente. Na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, o Estado ainda tenta fazer coisas demais e, consequentemente, as faz mal. O Leviatã espalhou-se, invadindo nossa privacidade, ditando a curva de uma banana e produzindo códigos de impostos de uma extensão bíblica. Com cada abatimento de impostos para os que já são ricos e com cada subsídio para esta empresa ou aquele grupo de pressão, forma-se um novo lobby e a democracia sofre.

As lições estão no setor privado. No Ocidente, ele está frequentemente várias décadas à frente do setor público. Parte da resposta é simplesmente boa administração: se a Cingapura tem como pagar melhor aos bons professores e demitir os ruins, Stuttgart e Seattle também têm. Outras respostas estão em experiências conduzidas nos níveis inferiores do governo, como é o caso entre os estados norte-americanos, de gigantescos hospitais de coração na Índia e do Bolsa Família no Brasil.

A batalha pelo futuro do Estado é uma área em que o liberalismo moderno deveria fincar seu padrão e lutar, exatamente como fizeram os fundadores deste dogma. Porque, ao final, os livre-mercados e as mentes livres vencerão. O liberalismo tem a lógica econômica e a tecnologia a seu favor – assim como esta maravilhosa publicação, que agora repasso para excelentes mãos. E esse é meu último, e melhor, motivo para o otimismo.

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John Micklethwait editou The Economist desde 2006 e deixou a revista em 6 de fevereiro. Estas são suas palavras de despedida