O acionista majoritário de um jornal é um leitor como outro qualquer? Esse sonho de jornalistas não é ficção. É a realidade no grupo que edita o Le Monde (que publica, entre outros, o jornal diário e o Courrier International, além do Le Monde Diplomatique). A prova de que os acionistas não interferem no conteúdo editorial foi mais uma vez – se fosse ainda necessária – revelada no caso da publicação das contas secretas do banco HSBC.
Em duas edições seguidas, o jornal divulgou, num furo mundial associado a outros órgãos de imprensa estrangeiros, o SwissLeaks, a monumental evasão fiscal de bilhões de dólares de milionários de diversas nacionalidades, inclusive alguns milhares de brasileiros, organizada na Suíça.
No dia seguinte à primeira publicação pelo Le Monde de alguns nomes de contribuintes franceses – de uma lista de 3 mil que para escapar do fisco francês se beneficiaram da proteção do guarda-chuva da sucursal suíça do banco HSBC – dois dos três acionistas do jornal, Mathieu Pigasse e Pierre Bergé, se mostraram publicamente, em entrevistas, em total desacordo com a decisão editorial.
A autonomia dos jornalistas do Le Monde é simplesmente impensável num país tropical que se pensa abençoado por Deus, no qual jornalistas são meros empregados de um patrão que define a linha editorial de A a Z. Mathieu Pigasse, diretor-geral do Banco Lazard, conhecido por suas posições de esquerda e por seu gosto pela imprensa (detém parte do grupo Le Monde,juntamente com Pierre Bergé e Xavier Niel, além da revista Les Inrocks), denunciou a decisão editorial de publicar nomes como um certo “populismo” ou “macartismo fiscal”. Mas declarou-se “orgulhoso” pelo trabalho de investigação feito pelos jornalistas do Le Monde, provado mais uma vez pelo furo internacional.
Milionário discreto
Pierre Bergé – ex-companheiro de Yves Saint-Laurent, criador e responsável pelo sucesso da marca do estilista –, que viu a publicação de nomes como uma espécie de “delação”, lembrou: “Eu me comprometi por escrito a não intervir no conteúdo do jornal, o que sempre respeitei. Mas não me comprometi a me calar e não criticar as matérias”.
De fato, o código de ética do jornal, assinado por seus três acionistas ao comprar o título em 2010, diz que o papel deles é “definir a estratégia da empresa e não tentar pesar sobre o sentido da informação”, como assinalou a Société des rédacteurs du Monde (SRM), que lamentou essa “tentativa de intrusão no conteúdo editorial do jornal”. O presidente atual da SRM, Alain Beuve-Méry, afirmou que, como leitores, tanto Pigasse quanto Bergé podem se expressar e criticar o jornal à vontade. Como acionistas, têm que respeitar a código de ética, ou charte d’éthique,que assinaram.
E o que diz essa charte d’éthique é sem ambiguidades:
“A independência editorial dos jornais do grupo Le Monde em relação aos acionistas, anunciantes, poderes públicos, políticos, econômicos, ideológicos e religiosos é condição necessária a uma informação livre e de qualidade”.
Mais claro, impossível.
Esse problema de intrusão do acionista no conteúdo editorial ainda não se colocou para o novo proprietário do jornal Libération, que passou há algumas semanas para as mãos do discreto milionário franco-israelense Patrick Drahi, que, associado a Marc Laufer, comprou ainda a revista semanalL’Express, além de outros títulos da imprensa semanal e mensal. Patrick Drahi é proprietário do canal all news de Israeli24news e não dá entrevistas.
Futuro da empresa
Fundado em 1973 por jovens esquerdistas vindos do maoísmo, sob a inspiração de Jean-Paul Sartre, que foi seu primeiro diretor, o Libération viveu uma grande crise financeira no ano passado. Dela resultaram muitas demissões e aposentadorias antecipadas para enxugar o quadro da redação do jornal.
Em fevereiro de 2014, o diário viveu uma grande crise, com greve da redação e muito debate público, através do próprio jornal, que não queria ser transformado em “objeto cultural” ou simples marca Libé.A crise foi fruto da queda de braço dos jornalistas com os acionistas de então, que tinham um projeto empresarial que desagradava à redação.
Homem discreto, Drahi foge da imprensa. Assim, não se sabe ainda o que ele pretende para o futuro empresarial do jornal, que aumentou as vendas, beneficiando-se nesse início de ano com o interesse dos leitores pela imprensa escrita depois dos atentados de janeiro em Paris.
Mais de um site não francês na internet atribuiu a compra de Libération à família de banqueiros Rothschild, misturando fantasia e realidade já caduca. Nenhuma dessas “notícias” falava de Patrick Drahi. Na realidade, Edouard de Rothschild deteve parte do capital de Libération por diversos anos, até 2014, quando se retirou do jornal.
As notícias que atribuem aos Rothschild o controle de Libération não passam de desinformação, característica principal das teses conspiratórias. Segundo elas, os representantes do mal querem dominar a imprensa francesa (afinal não foi no Libération que Charlie Hebdo foi realojado imediatamente após o atentado?) para continuar a campanha de difamação dos muçulmanos. A paranoia é o principal motor dos conspiracionistas.
******
Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris