A imprensa inglesa, que tem sido assolada há anos por quase todos os tipos de problemas (financeiros, tecnológicos, éticos), ainda se mostra capaz de surpreender positivamente, mesmo quando ela é uma vez mais atingida.
Na semana passada, Peter Oborne, editor associado da revista The Spectator e principal comentarista político do jornal The Daily Telegraph, ambos de linha editorial conservadora e pertencentes aos irmãos David e Frederick Barclay, demitiuse de maneira espetacular, com uma acusação contra o diário por ter, a seu ver, minimizado a cobertura do escândalo HSBC.
Num longo artigo para o website openDemocracy, que em geral segue uma linha ideológica de centro-esquerda, Oborne disse que o Telegraph deixou de produzir e publicar reportagens que pudessem ser negativas sobre o banco HSBC, um dos principais anunciantes do jornal. Para ele, a relação entre redação e comercial (chamados de igreja e Estado no jargão jornalístico) no Telegraph tornouse inescrupulosa, o que comprometeu, a seu ver, a integridade jornalística do veículo, o qual teria se convertido em “fraude para os leitores”.
Oborne ainda afirmou que outras coberturas recentes do jornal sobre assuntos referentes a outros anunciantes e aos protestos de estudantes em Hong Kong também teriam sofrido intervenção do departamento publicitário. A empresa refutou por completo as alegações do jornalista. Disse que oferece a seus “parceiros comerciais” “uma gama de soluções publicitárias”, mas “a distinção entre a publicidade e nossa operação editorial tem sido sempre fundamental para o nosso negócio”.
Oborne, em entrevista para a BBC, conclamou o Telegraph a realizar uma investigação “independente” de suas acusações e das relações entre os departamentos comercial e de redação do diário. Mas o jornal também recusou essa possibilidade por considerálas totalmente infundadas.
Outro jornalismo
Independentemente da acurácia do que Oborne declarou neste caso específico, é indiscutível que o muro que deve separar igreja e Estado segundo os cânones tradicionais do jornalismo ocidental vem se tornando muito mais poroso desde que o modelo tradicional do negócio da notícia entrou em crise estrutural a partir da década de 1990 e com grande ênfase neste século.
Na sua versão digital, o jornalismo, mesmo o de vetustos títulos, cada vez mais define as prioridades do que vai publicar em função da quantidade de “visitantes únicos” produzida por assuntos ou autores.
A grande capacidade que agora existe de acompanhar o comportamento da audiência deu vazão a ideias de produzir o que desde 2013 vem sendo chamado de “native advertisment”, basicamente conteúdo jornalístico criado ou provido por um anunciante.
É quase (ou exatamente) o mesmo que antes se chamava de “matéria paga”, um anúncio em formato de reportagem ou artigo, que, pelas regras do bom jornalismo, deveria ser caracterizado graficamente como tal de modo a que os leitores pudessem identificálo como algo diferente do produzido pela redação de forma independente.
Quando a crise da imprensa começou a se agravar, a “matéria paga” virou “advertorial”, em que a caracterização gráfica diferenciadora já era menos explícita. E agora o “native advertisment”, adotado até por veículos que sempre foram referência de alta qualidade, praticamente derruba a separação entre igreja e Estado.
Há nuances no “native advertisment”. Ele pode vir na forma de conteúdo do anunciante acoplado com o material editorial, mais ou menos na forma do anúncio tradicional (com a diferença de que, antigamente, o departamento comercial não tinha acesso ao “espelho” da redação, ou seja, ao planejamento de que assunto entraria em que espaço, de modo a evitar que, por exemplo, um anúncio de uma peça de teatro saísse ao lado de uma crítica da peça, o que só aconteceria por acaso? agora, ao contrário, o encadeamento de conteúdos é proposital).
Mas ele também pode ser muito mais ostensivo, quando o conteúdo editorial é simplesmente comprado por um anunciante sem que fique clara a associação, mais ou menos como o que se faz em novelas e é conhecido como “merchandising”, quando o nome de um produto ou provedor de serviços aparece perto ou na fala de um personagem sem que isso fique caracterizado como um anúncio.
O que o “native advertisment” vai causar à credibilidade dos veículos que o adotam é difícil prever, talvez impossível. A sociedade e seus valores têm se modificado de tal maneira que é perfeitamente concebível que ninguém mais se importe com isso, como quase ninguém mais se importa em proteger a própria privacidade.
Mas, sem dúvida nenhuma, o jornalismo que deriva dessas mudanças é diferente, quem sabe fundamentalmente diferente, do que vinha sendo praticado fazia séculos no mundo ocidental.
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Carlos Eduardo Lins da Silva, livredocente e doutor em comunicação pela USP, mestre em comunicação pela Michigan State University e editor da revista Política Externa