O Brasil mais uma vez chegou a março – quase ao findar das chuvas, como escreveu um parnasiano – sem dispor de um orçamento aprovado pelo Congresso Nacional. Não é uma novidade, nem um evento raro, mas é mais um sinal de mau funcionamento das instituições. O governo pode até trabalhar sem a lei orçamentária, mas com limitações financeiras e sem flexibilidade e segurança para programar suas atividades. Por que falta o orçamento? Porque os congressistas mais uma vez atrasaram a votação. Já o fizeram em outros anos e isso quase sempre saiu barato para suas excelências. Eles deixaram de cumprir uma de suas tarefas mais importantes e a imprensa se manteve silenciosa.
O atraso tem sido às vezes mencionado, é verdade, mas sempre como assunto complementar, quando se trata, por exemplo, de explicar um corte provisório de gastos. O contingenciamento para valer, aquele previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal, só é possível quando o Executivo dispõe de uma lei orçamentária. Não há como cumprir, antes disso, o rito da revisão bimestral de receitas e despesas. Só com essa revisão se podem realizar com alguma segurança os acertos periódicos da programação financeira.
No Brasil, o orçamento pode ser caro para os contribuintes, mas vale pouco para os parlamentares. Para eles, é sobretudo uma oportunidade para enxertar despesas de interesse paroquial na lei das finanças federais. O resto, a começar pela qualidade das projeções, é pouco relevante. O próprio ritual parece pouco significativo. No entanto, a sujeição das finanças do Estado à aprovação do Parlamento foi uma das conquistas mais notáveis contra o poder monárquico. Essa prerrogativa limitou, por exemplo, o poder dos governantes de mobilizar recursos para a guerra.
Sem diretrizes
Em todo o mundo democrático a liturgia da produção orçamentária continua importante. Ocasionalmente, a aprovação do projeto pode ser atrasada. Nos Estados Unidos isso ocorre, embora raramente, e as consequências são penosas. O governo é quase paralisado e milhares de funcionários vão para casa. Mas o atraso na aprovação da proposta orçamentária é normalmente, no Congresso americano, uma forma de pressão sobre o Executivo.
No Brasil, a tramitação do projeto emperra porque os parlamentares encontram coisas mais importantes para fazer. Isso inclui partir para festas em seus estados ou simplesmente descansar. Suas excelências também podem abandonar as obrigações em Brasília para cuidar de eleições, como no ano passado. Também isso ocorre com regularidade e ninguém se espanta quando a atividade legislativa, como no ano passado, é deixada para quando sobrar algum tempo.
Mas o desleixo vai mais longe, no caso brasileiro. Duas etapas são previstas para a programação anual das finanças públicas. A primeira envolve a elaboração e a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Se tudo funcionar direitinho, essa tarefa é encerrada até o fim de junho. Só depois disso os congressistas podem legalmente, sair para o recesso do meio do ano. A proposta de orçamento é elaborada em seguida e enviada ao Congresso até o fim de agosto.
O Executivo normalmente cumpre suas funções dentro dos prazos. Mas a história é outra quando se trata da ação parlamentar. Com frequência o primeiro semestre se encerra sem a aprovação da LDO. Mesmo assim, senadores e deputados dão um jeito de entrar em férias, contrariando a regra. Pior que isso: mais de uma vez a proposta de lei do orçamento foi mandada ao Congresso e entrou em tramitação sem ter sido aprovada a LDO, isto é, sem haver diretrizes legalmente sacramentadas. Pode parecer estranho, mas isso tem ocorrido com alguma frequência. O Executivo prepara o projeto de lei do orçamento como se houvesse diretrizes aprovadas e em vigor, mas tudo é apenas um faz de conta.
Marcação sob pressão
Em alguns anos, a LDO e a lei orçamentária só foram aprovadas muitos meses depois de iniciado o exercício legal. Afinal, como seguir com rigor os prazos, quando é preciso ir às festas juninas no fim do semestre, folgar em julho, cuidar de outros assuntos nos meses seguintes, voltar para casa nas festas de fim de ano e, é claro, descansar no verão e depois participar do carnaval?
Se alguém reclamar, suas excelências sempre poderão invocar o regime democrático para defender seu direito de deixar para depois a votação da LDO e da proposta de lei orçamentária. Quanto ao sentido democrático da própria votação dessas leis – quem se importa com isso? Ou quem se lembra dessa votação como um direito conquistado contra o poder dos reis?
Talvez mais pessoas se lembrassem desses pontos se a imprensa cobrasse com mais frequência o cumprimento dessa obrigação parlamentar. Em outros casos, a marcação em cima tem produzido resultados. Mas nem durante a tramitação da proposta a cobertura é regular e minuciosa. Em alguns anos o assunto desaparece e só volta ao noticiário pouco antes da votação. Alguém, afinal, dá mesmo importância ao tema?
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Rolf Kuntz é jornalista